segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Sobre Noite dentro da noite, de Joca Reiners Terron

O cadáver de um gato pode ser apreendido tanto como a coisa mais distante quanto a coisa mais próxima que se pode ter de um gato. A morte é tanto a definição quanto a anulação da vida, todo ser vivo é mortal. A escrita consagra e encerra os assuntos por ela discutidos, por mais que se faça um parágrafo final protocolar convidando a discussões posteriores. Uma membrana cria a separação e mantém o contato entre duas substâncias diferentes, vizinhas.

O fascínio racionalista do ser humano encontra em poucas outras coisas além do quebra-cabeça um exercício que esteja à altura de seus delírios de dominação. Milhares de pequenos pedaços que por si só dizem nada ou quase nada, um pouco de uma curva de um queixo erguido para retrato demorado, o espaço escuro entre uma maçã e uma pera em cima de uma mesa de um anônimo, um branco indefinido que pode ser tanto parede quanto paisagem, mas com sagacidade e paciência (os mais pacientes afirmariam que a paciência seria a principal inteligência, ignorando a rima irritante) é possível recuperar depois de várias horas a totalidade da imagem e do sentido. É a capacidade humana concentrada em seu ímpeto incansável de domar o universo: podemos colocar o mundo sob nosso controle, se nos esforçarmos no sentido certo.

O universo, sim, cede alguns centímetros, talvez apenas para nos entreter, ou se entreter, ou, muito mais provável, indiferentemente, sabendo ou não que seu principal, o improvável, o irrazoável, o caos, não está a alcance do nosso controle. As questões que ficam sem solução não por falta de inteligência, ou esforço, ou recursos, e sim apenas por não ser o tipo de questão que tenha resposta, ou resposta recuperável, essas não são alvo de discussão ou deliberação razoável, está nas mãos de um Deus que cada vez mais convence menos pessoas de sua existência.

O cerne principal do Noite dentro da Noite me parece ser esse. Uma subversão profunda e estrutural das expectativas da lisura de um entendimento pleno.  Narrativas de origem pessoal, de resistência política, de espionagem, como quase todas os outros gêneros, partem do princípio de um movimento da ignorância para o conhecimento, do errado para o certo. A vida, no entanto, não propicia esse movimento com a naturalidade das narrativas, e talvez seja essa a justificativa da existência dessas histórias, a capacidade que têm de em parte acalmar temporariamente esses anseios sem correspondência. O alemão que apesar de sua aparente vida de homem comum NA VERDADE trabalha para o nazismo, o garoto que apesar de ter sido criado para tomar como normal todas as injustiças sociais de seu mundo NA VERDADE entende o sistema capitalista e resolve combatê-lo, o homem que segue sua vida estudantil e profissional dentro das expectativas NA VERDADE precisaria desvendar vários segredos a respeito de seu passado para recuperar seu Eu Legítimo. A normalidade anterior, errada, na verdade seria suplantada apenas para a substituição de outra, talvez mais correta ou bonita, mas ainda assim dotada de uma estabilidade de entendimento perfeito.

O instrumento que temos a nossa disposição para construir uma imagem de mundo que nos possibilita a sobrevivência, essa víscera em forma de noz (em uma das vívidas e brilhantes expressões do romance), até consegue enganar por longos períodos no que diz respeito sua capacidade de captar a realidade de maneira completa. Afinal, é o cérebro que conta e ouve a história, o enganador e o enganado. É ele que rege e depois entende por normal e razoável o mundo que o ser humano criou para sua própria espécie. Que produz esquecimentos aparentemente sem qualquer critério, a ponto de esquecermos o que esquecemos. Dependurado por inteiro nesse órgão frágil, falho, o mundo na verdade é bem mais movediço do que pode parecer.

O romance, claro, evoca temas condizentes com essa estrutura instável para sustentar sua complexa construção de realidade. É o que requer a empreitada literária, um ponto fixo para determinar as movimentações violentas do resto do livro. Um acidente em que o garoto bate a cabeça, a epilepsia, o trauma, as torturas. O estabelecimento de um estrato onírico subjacente aos acontecimentos, uma liberdade unidirecional, só para baixo, mantém um tom de um pesadelo permanente. A ambientação do pântano, o terreno em que nem mesmo o chão é confiável, sendo alternadamente terra ou lama ou água, ou barranco de queda perigosa, numa umidade em que o próprio ar parece água, nunca vem a ser descritivamente substituída por outras quando a história carrega os personagens para outros lugares como o Rio de Janeiro, ou Buenos Aires; a única exceção vívida sendo a surrealista neve vermelha de Medianeira. Os porões de tortura, literais ou figurativos (a violência a céu aberto, testemunhas caladas pelo medo da morte ou pela morte), suscitam também outro grau de incerteza, a das confissões arrancadas a alicate, a princípio entendidas como verdades absolutas desenterradas que em vez disso são qualquer fala que faça com que a tortura acabe, diferentes sessões com um mesmo aprisionado revelando verdades diferentes, desesperadas, sondagens para ver quais seriam as palavras mágicas para qualquer libertação. A única palavra máxima para tratar o momento, no entanto, seria inútil: azar. Azar de nascer onde ter nascido, de ter desenvolvido alguma consciência do absurdo do mundo e, sobretudo, azar de ter sido capturado. Azar de se ver cercado ou refém dessa criatura mesquinha, violenta e cruel que é o ser humano.

Com essas complicadas bases de realidade fundando o romance, é permitido ao lirismo espesso, barroco e apoteótico da narrativa uma constância maximalista a princípio insustentável, em que o eventual fraquejamento de um ou outro exagero que não cabe (diferente de todos os outros exageros que cabem e carregam mais adiante a força do romance) não compromete um equilíbrio sempre posto em pontos de desequilíbrio, e tampouco cansa a dicção maximalista, uma vez que ela não opera em uma normalidade que busca qualquer coisa próxima com o cotidiano. É um universo pútrido, tanto no aspecto físico e fisiológico quanto no moral-histórico, a ambientação da ditadura inteligentemente desenvolvida não como um passado a-ser–compreendido-para-ser-superado e sim como momento de mero desnudamento das forças sempre presentes na sociedade brasileira, ou mesmo latino-americana: levando em consideração a atuação das polícias da maior parte do país, nas suas tentativas desastrosas de conter a violência urbana de um dos países mais perigosos do planeta, o slogan “tortura nunca mais” foi criado e saudado como superação em uma sociedade em que se tortura ainda mais do que na época ditatorial.

O lirismo do livro é um da textura, essa característica de descrição bem mais difícil de apreender do que linha ou cor, o que mais se perde de um quadro ao vê-lo em reprodução do que na vida real (a representação correspondendo a muito menos do que o representado). Característica mais pertencente ao tátil do que ao visual, uma espécie de sensação cega. Que exige, ou valoriza, a presença, a experiência que não seja a partir do reportado. E mesmo o contato direto não é suficiente para estabelecer certezas, servindo apenas de garantida de uma não-diminuição dos sucessivos impactos, para os quais é impossível qualquer tipo de preparo mínimo.

Fica claro logo nas primeiras páginas que o romance não quer menos do que se inscrever na minguada listagem de obras primas da literatura brasileira, Cronica da casa assassinada, Grande sertão: veredas, Dom casmurro, A hora da estrela, etc. Todos os xingamentos externos naturais a essa ambição provavelmente já foram pronunciados, provavelmente de antemão, e serão repetidos por muito tempo ainda, como pretensioso, artificioso, metido, “se acha demais”, etc, assim como já foram arremessados contra os livros de lugar já assegurado no cânone. O erro do autor, nessa visão de ódio automático ao contemporâneo, é querer se igualar aos gigantes, como se alguém alcançasse qualquer coisa extraordinária sem antes mirar alto, e o erro fosse vergonhoso a ponto de invalidar a tentativa. Noite dentro da noite, de Joca Reiners Terron, em toda sua radical originalidade, mira altíssimo, em um alvo que a gente só descobre que existia por ter sido acertado. É um romance extraordinário, grandioso, um monumento.