quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

The Hateful Eight - O Sade Negro, Branco, Mexicano...

Pulp fiction foi um dos filmes que marcou a minha vida: aos nove ou dez anos de idade decidi gastar minha cota semanal de locadora com aquela fita de capa vermelha com letreiro amarelo, meio esquisita, e depois penei para tentar explicar no colégio o filme ótimo que tinha descoberto. “O filme é sobre o quê?”, perguntavam, querendo saber se era realmente comparável a Independence Day, ou Duro de Matar, outros Grandes Filmes da época. O filme pra sempre vai ter pra mim um espaço especial, exagerado, como se tivesse inventado sozinho o cinema autoral, fora dos enquadramentos rígidos das fórmulas de ótimo rendimento de bilheteria. Sempre vou ter um carinho pelos filmes dele, mesmo que sua queda às vezes exagerada para o trash sobrepese a sutileza que frequentemente alcança.

Xxx

Spoilers dos Hateful Eight, claro

(citado de memória, com uma ou outra imprecisão, provavelmente)

-  E a Minnie, ainda fuma o cachimbo dela?
- Ela fuma cigarros enrolados a mão, Red Apple
-  Eu só estava te testando.

Esse trecho exemplifica o novo filme do Tarantino de maneira mais perfeita do que primeiro aparenta: é uma obra que é pelo menos um terço maior do que precisava ser, sendo fácil de apontar quais trechos poderiam ser cortados para um filme mais ágil, “melhor”. Na cena, já tinha ficado explícita (declarada, mesmo) a desconfiança do Samuel L Jackson em relação ao Mexican Bob. Só a pessoa mais estúpida não entenderia a partir da resposta  que a pergunta tinha sido um teste, e mesmo assim o Samuel vai lá e fala, quando um olhar ou um silêncio teria sido bem mais expressivo. Ou mesmo um corte, porque o pessoal já tá sentado há quase duas horas (não cheguei a olhar o relógio, mas a sensação era essa) e até agora foi só montando o desenlace final.

Não que se trate de a montagem de um cenário particularmente complexo. Hateful Eight realmente é um filme de uma hora e meia espichado em três horas. Vamos repassar por um resumo da história: carruagem interrompe sua viagem de inverno duas vezes no meio do caminho para a hospedaria, primeiro pegando outro caçador de recompensas (que lhe mostra uma carta de Abraham Lincoln), depois o futuro xerife da cidade-destino; chegam na hospedaria, onde ocorrem algumas confusões de natureza não muito complicadas, flashback de pessoal chegando lá antes, e desenlace final. Mesmo com os diálogos alongados em tensão do Tarantino, é difícil imaginar que não daria pra contar essa história com competência e expressividade em no máximo duas horas.

Não que eu seja da turma que clama sempre por maximização de eficiência narrativa por parte de escritores e cineastas: o caminho mais curto nem sempre é o melhor, o longo frequentemente permite um aprofundamento nos detalhes, caracterização, psicologia, temas secundários, etc. Não é isso que acontece com o Hateful Eight, mas é difícil achar que Tarantino em seu oitavo filme acabou incorrendo em vários erros parecidos, em sequência, acrescentando sem querer uma hora no filme.

O primeiro take do filme já é um aviso: o crucifixo embaixo da neve, com a carruagem no fundo, durando muito mais do que precisa, mesmo para o estabelecimento de uma atmosfera de lonjura e desolamento. Ruth, desconfiado, pede para Warren se aproximar “slow, like molasses”. Personagens são introduzidos de novo e de novo a cada pessoa nova que aparece na história, o mesmo caso sendo narrado várias vezes, às vezes sem nem mudança de perspectiva ou com aparição de detalhes novos. E todo mundo esperando o grande clímax, há um tempão, já.

(Nada contra filmes que montam tudo para um final grandioso: Cães de Aluguel faz isso de maneira parecida, sem por isso cansar quem assiste, mantendo interesse na montagem.)

E o clímax, por si só, é imensamente insatisfatório do ponto de vista intelectual. Todas as pistas que o Warren usa para desmascarar o que está acontecendo na hospedaria são inacessíveis a quem acompanha a história, diminuindo a potência detetivesca vamos-resolver-um-mistério-juntos do filme: o gosto do guisado, a placa mexicanos-e-cães que não está mais lá, a poltrona que sentimentalmente não é só um lugar para sentar, o doce preso entre as tábuas - o filme só revela a origem da relevância do detalhe com o flashback, que vem depois do Warren desmascarar a trama toda. Já o envenenamento do café é mostrado com antecedência, colocando-nos ao lado da algemada, que só fica assistindo lentamente ao desenlace, ver quem vai cair na armadilha, distanciando-nos da surpresa estrondosa de algo de repente estar dando muito errado. Um dos últimos takes do filme, com Warren e o xerife segurando juntos a corda para enforcá-la, o foco intenso nas faces de êxtase extraordinário da vingança, para mim foi o que deu sentido ao filme inteiro: é um filme sádico, em que o sadismo chegou a penetrar na estrutura da narrativa. Sádico, aqui, no sentido mais simples e de base da palavra, se desvencilhando de todas as complexidades da obra do pensador bizarro do final do século 18: gostar de ver dor nos outros, no caso fundamentado pelo fato de ser retribuição por erros anteriores de quem sofre as torturas.

E a primeira coisa que se aprende amargamente sobre um sádico é que ele não é apressado, mas também não é sutil: ele quer que tudo demore o máximo possível, para saborear toda dor e angústia, sem usar esse tempo a mais para qualquer aprofundamento que não seja mais-do-mesmo; quer também que o sofredor saiba o que está acontecendo, por que está acontecendo, várias vezes, cada repetição um novo tapa ou agulhada, para que não tenha dúvida. E é meio que isso o que o filme faz com quem assiste, explica várias vezes, alonga, espicha, demora, desnecessariamente, pra quê tudo isso. Em entrevistas, Tarantino nunca escondeu seu afeto pelo gênero do Torture Porn, americano ou asiático, do detalhe da crueldade, da encenação explícita de jogos de poder, e nunca essa potência de Id ficou tão explorada em sua obra quanto nesse filme, que mesmo tendo menos mortos que Kill Bill e Django (tem menos gente, no filme), é sem dúvida o mais violento de todos. Existe até mesmo uma extensão organizacional desse lance sádico: finalmente me dei conta (com atraso, reconheço) que todo vilão que explica todo seu plano diabólico e brilhante antes de matar o mocinho faz tanto por sadismo quanto por orgulho idiota, uma vez que deve ser o filme que mais tem “antes-de-eu-te-matar-deixa-eu-te-explicar-uma-coisa” da história do cinema, parecendo até uma compilação paródica de youtube.

O personagem-filósofo do filme chega a falar que a diferença da civilização ao punir é a falta de paixão de quem puxa a alavanca (ou alguns anos pra frente, assina a sentença, fecha a porta do camburão, etc), para ele tanto-fazendo quem é na corda. Falta de paixão não é um termo que caiba a qualquer um dos personagens do filme, ou mesmo a qualquer filme do Tarantino.

O que me leva a outro aspecto que serve de apoio ao desajeitado-proposital do filme: o resenhista do av club (e provavelmente outros, claro) revelou que os personagens do filme todos tem nome de diretores de filmes-B e personagens secundários de filmes de John Wayne. Não seria o aspecto desajeitado, involuntariamente compensando certa incompetência e falta de fluência com explosividade emotiva e empolgação também uma espécie de homenagem a esses tristes artistas que frequentemente comovem mais pelo que eles tentam do que pelo que eles conseguem? Quem nunca teve essa experiência, vale a recomendação do documentário American Movie, de 1999, comovendo mesmo sendo bem abaixo de filme-B (mais perto do Z do que do B).

Levando em consideração o lado político do filme (nada sutil, de novo: “você não sabe o que é ser negro nos Estados Unidos”, soa como um chavão do Black Lives Matter, de 2015, sendo que o filme acontece nos anos 1870), em que o Samuel Jackson fala da promessa fajuta de liberdade e integração feita pelo Norte americano (uma metáfora com os uniformes que é bem elegante e que não vou lembrar palavra-por-palavra), esse desajeito de novo ganha força de propósito. Um filme meio malfeito para um país meio malfeito: um país cheio de promessas irrealizadas, figuras messiânicas perdidas (assassinadas, frequentemente), que comove mais pelo que promete e quer do que pelo que consegue e realiza. É um país em que o negro sagaz precisa inventar uma carta do Abraham Lincoln pra poder receber respeito (aliás, lance absurdamente genial do filme, vale ressaltar), mas é também o país rm que, diferente de um mundo com o Sul triunfante, permite a criação dessa fantasia para servir de salvo-conduto. Existe a merda da realidade, bagunçada, envenenada de ódio e ressentimento que não se desprende de nada que se faça vários anos depois, mas existe o sonho, que mesmo continuamente frustrado, resiste, como direção e força. Nem que seja apenas para um alento final.

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Agora, claro, permanece a questão do filme longo demais (talvez realçado pelo fato de eu ter visto ele às 21h50, tendo chegado na fila do cinema meia hora antes da sessão das 20h30 para encontrar os ingressos dela esgotados), desajeitado, lançando mini-desafinos a cada fala completamente desnecessária, explicação repetida, etc etc. Foi uma experiência parecida que tive lendo The Keep, da Jennifer Egan, empolgado ao terminar o Visit From the Goon Squad. O livro é quase todo narrado por um escritor meio incompetente, aluno de turma de escrita criativa. As últimas páginas são extraordinárias, coisa de dar arrepio mesmo: a professora dele toma a voz, para narrar as circunstâncias que os uniram. Ainda que seja um livro que o leitor tenha de se empurrar para continuar lendo, quase largando, um pouco a contragosto, fica óbvio que não foi imperícia artística que construiu aquilo, que fazia parte da verossimilhança da coisa. Ainda assim, resta o saldo de quase trezentas páginas meio desafinadas lidas para poucas boas (até mesmo ótimas) ao final. Existem projetos estéticos que mesmo inteiramente bem-sucedidos deixam o leitor/espectador/ouvinte pensando se ele não poderia ter aproveitado seu limitado tempo de uma maneira melhor.

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PS: eu aqui tentando construir cuidadosamente (ou mais ou menos) meu argumento de como se trata de um filme sádico, pinçando momentos para exemplificar, quando no finalzinho da escrita do texto me dou conta que o primeiro nome do protagonista é MARQUIS, hahaha.