terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Primeira página e meia

Um pedaço da ficção em que venho trabalhando, a primeira página e meia. Acho que estabelece bem o tom da história:

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No tampo da baia, a vibração. Uma pausa, breve, de criar uma esperança, e depois de novo, vibrando. Não era uma mensagem, era ligação. Claro, ela não era de mensagens, ela era de ligar, fazer o celular tocar e tocar. A espera por resposta seria inadmissível, mesmo o instantâneo não era rápido o bastante, e devia já estar se incomodando com a demora, em leve xingamento sobre como as pessoas conseguem ser tão irresponsáveis, esquecerem seus aparelhos no silencioso. Antes fosse esquecimento.
Não, não precisou esticar o pescoço para poder ler na tela do aparelho que deveria ter ficado dentro da bolsa, esquecido, e não ali, gemendo seu vibrar contra a madeira prensada de cor clara e vagamente agradável da mobília de seu trabalho. Outra vibração, insistindo. Sentiu o olhar da colega ao lado em pergunta, como se tivesse o direito de perguntar qualquer coisa, você não vai atender isso aí não.
Não. Já não bastava aquela noite que estava para perder, bem na beira do fim de semana que chegava sempre com ares de finalmente, precisava perder também sua paz agora da tarde, ou o que restava dela ante a expectativa do evento por vir. O sorriso fotogênico de sua mãe com seus óculos elegantes emoldurando os olhos de um azul que ela não havia herdado, a tela acesa projetando para ninguém e o teto aquele rosto e nome, insistentes, vibrando. A tela se apagou com o fim da chamada, mas já sabia que seria questão de segundos até que recomeçasse.
Não tinha como ser diferente. De novo a vibração, aquela iluminação inútil, o desgaste. Como se nunca pudesse sair de perto, descer ao restaurante do tribunal para tomar um café que não fosse o de licitação disponível nas garrafas térmicas velhas e encardidas que sempre vazavam pelas laterais respingando na parte externa dos copinhos descartáveis, ir ao banheiro com aquele cheiro forte de detergente para esconder o de urina sem querer contaminar o telefone com todas as bactérias resistentes às limpezas matinais, ir à sala da chefia para ter uma conversa mais demorada que não fosse sujeita a interrupções das mais aleatórias e inúteis, barulho de mensagem às vezes só propaganda oferecendo empréstimo para milhares de números vazados ou vendidos usando até a flexão de gênero errada, não importa, ainda conseguiam seus trouxas (palavra aliás unisex, nada mais justo). É dívida, perguntou a colega ao lado, sorrindo da própria piadinha.
Não, é minha mãe, vai ter jantar hoje na casa dela, com meu irmão e o marido dele. E você não vai atender? Ela não respondeu à colega, que emendou ainda com um vai que ela precisa que você compre alguma coisa pra levar. Dicas de convivência vindas de alguém que não conhece a pessoa sendo discutida, sempre muito úteis. Óbvio que não faltava nada para o jantar, nunca faltaria. Estaria tudo comprado desde pelo menos terça-feira, preparado desde ontem, exceto o precisava ser fresco, que estaria sendo preparado nesse momento ou até mais tarde um pouco. Qualquer parafuso fora do lugar seria corrigido ou eliminado muito antes de qualquer pedido por ajuda, salvo em caso de incêndio.
E não, a ligação estava vindo do número fixo, quanto a isso estava tudo certo.
Aliás, por que afinal precisaria ser numa sexta feira, a última aula que ela dava era na quinta à tarde, poderia ter marcado na quinta. Não sabia das aulas do papai naquele semestre, mas sem dúvida seria uma informação irrelevante.
Desistiu, e pegou o aparelho.
– Por que tanta demora? – antes mesmo de um alô.
Hoje tá bem movimentado aqui, mãe. Uma mentira que ela sabia que não convenceria ninguém, mas a incredulidade foi bem absorvida pelo do breve silêncio que seguiu sua desculpa.
– Bem, tanto faz. Eu queria te pedir para você chegar um pouquinho mais cedo hoje, preciso da sua ajuda com uma coisa.

Ai, mãe, já tava combinado tudo com a babá, o horário, ela só tem o carro dos pais a partir das sete e meia.