sexta-feira, 25 de novembro de 2016

A análise da sexta-feira

Aviso: spoiler do livro novo do Laub, o tribunal da quinta feira, em um nível última-página mesmo. Discuto questões do livro tomando como pressuposto o conhecimento da história toda, isto é, não me dou o trabalho de apresentar as situações a serem analisadas.

            Don Delillo, em seu romanção Submundo, elege o World Trade Center como metáfora perfeita para a segunda metade do século XX vivida nos Estados Unidos: é tanta exuberância que o pessoal vai lá e constrói não um arranha-céu e sim dois, um a cópia do outro, do lado do outro. O livro foi publicado em 1997. É daquele tipo de coisa que até o sujeito mais politicamente libertário do mundo ia achar razoável que a CIA espionasse o cara. Em 1992 ele também previu em seu romance Mao II que com o fim da guerra fria as cartas da geopolítica seriam dadas pelo terrorismo. Como todos sabem, nossa literatura não é tão universal quanto a americana (não temos PIB per capita o bastante para isso), e assim cabe a nós previsões bem menos grandiosas: o primeiro comentário que vi nas redes sociais a respeito do livro do Laub (que não fosse as divulgações editoriais/jornalísticas do tipo “em novo livro, Michel Laub discute...”) se deu na forma exata em que o escândalo narrado em suas páginas é inaugurado para discussão pública. Um post vago, curto, que é seguido por um comentário pedindo especificidades e a pessoa responsável pelo ato de vaguebooking dando a resposta da charada de imediato.
            Só é possível imaginar que a resenhista-express do romance em rede social não tenha lido o romance e sem querer tenha dado ao Laub um mínimo de mérito que lhe seja devido, o de saber em detalhes como que se dá esse fenômeno que o livro pretende discutir, o mimimi de macho que se diz oprimido ou a prática linchamento online. Claro, não que a concessão desse mínimo seja minimamente garantida em discussões dessa natureza, nessa luta meio fácil contra os fascistas (todos podem e devem participar, é tudo claramente delineado em bem e mal, a pauta disponível a ser reaberta todos os dias) é sempre péssima estratégia ceder qualquer centímetro de território.
            O que me incomodou no livro do Laub, na verdade, foi a coisa da AIDS. Mas antes disso cabe discutir o que há de ser mais discutido sobre o livro: explicito aqui pros que não entenderam ainda via entrelinhas que estou do lado anti-linchamento e não anti-mimimi. Não que reputações devam sempre ser mantidas ilesas a partir de erros cometidos, que certos atos merecem ser trazidos à tona para exposição e discussão, mas acho que de fato existe uma gana ensandecida em muitos de participar do justiçamento da vez, a cooptação imediata de acontecimentos particulares por narrativas sociais maiores, mesmo que corretas, antes de se ouvir o outro lado ou  pelo menos terceiros que poderiam opinar, nesse mínimo resguardo que a sociedade civilizada conseguiu de construir algo assemelhado a justiça. Dar esse espaço é dar espaço ao Inimigo, que, se pudesse, pisotearia em todos nós o tempo inteiro; nosso grito de guerra é nossa defesa e nosso ataque para que isso possa deixar de acontecer. Como vivemos em uma sociedade machista (e é difícil imaginar que alguém de inteligência mínima vá discordar disso), e a luta se impõe como importantíssima, toda denúncia de machismo tende a reverberar como verdadeira, em seus mínimos detalhes, sem que nada da desavença possa ser enquadrada como mal-entendido ou mesmo interpretação enviesada por animosidade. Quanto mais gritarmos, mais avançaremos na causa por uma sociedade mais igualitária e etc, cabendo sempre acreditar em toda denúncia, repetir todas as palavras de ordem que cabem à história ainda sendo revelada; caso contrário, você é parte do problema, e não da solução. Quem pede calma não pede nada, ou quer que tudo continue como está.
A medida do que constitui justiça é, com a exceção de casos monetários, sempre arbitrária; quanto vale em dinheiro ou tempo um ato de dano moral, ou mesmo corporal? O acerto perfeito é impossível de se encontrar, o que talvez leva alguns a acreditar que o exagero não existe. Foi possível encontrar mesmo em macacos um instinto de indignação a respeito do que é justo e não justo (um experimento já clássico em que para macacos diferentes se entregava recompensas diferentes pela mesma tarefa, o prejudicado sempre reclamando, desprezando seu prêmio fajuto), e ainda assim acredita-se que a noção de equanimidade seria das capacidades mais altivas e sofisticadas do ser humano. Como se não houvesse impulso ou afã de conseguir controlar um mínimo o caos da existência, aproveitar ao máximo, sem qualquer medida, aquela oportunidade de produzir um exemplo. A realidade, no entanto, geralmente é bem mais complicada do que um bom exemplo deve ser.
É talvez a lição mais interessante que pude tirar do Desonra, do Coetzee, demorando algumas releituras a tomar nota. O protagonista, em sua arrogância de sabido, disserta várias vezes a respeito do arquétipo do bode expiatório. Um animal é colocado para o sacrifício para expurgar todos os males da comunidade, sendo esse comportamento verificável em várias sociedades humanas. É difícil não ver isso na fúria das pessoas contra acusados de qualquer coisa, principalmente da transgressão-tabu do zeitgeist: não é só aquele crime que está produzindo aquela fúria, e sim tudo que há de errado (ou genericamente mal) no mundo, projetado no criminoso. Não é a pessoa, e nem mesmo o crime, e sim o Mal inteiro sendo malhado ali. Daí a grandiosa cena do julgamento do protagonista de seu cargo de professorzinho na Africa do Sul, o que deve ser o foda-se mais bem composto de toda a literatura, sua indisposição em participar daquele circo institucional, que priorizava o que toda instituição sempre prioriza, sua própria reputação. Ele de fato estava sendo usado pro sacrifício, para dar as mostras esgarçadas de um progresso na verdade intangível. Isso tudo, no entanto, não quer dizer que ele não seja de fato culpado: a desmedida de quem corrige não torna ninguém inocente. E o fato do culpado de fato ser culpado não impede que outra injustiça esteja sendo cometida.
É uma coisa até curiosamente desconversada pela conclusão do livro, a surpresa final, que é o que achei mais marcante no romance e que discutirei daqui a pouquinho. Para além da invasão de privacidade feita pela ex-esposa em entrar no email de outra pessoa, outra pessoa que sequer divide mais sua vida com ela, está a exposição de dois terceiros, uma garota de vinte anos que, sim, realmente teve relações com um homem casado, mas que está no início de uma carreira que pode de ser muito prejudicada pela exposição, e o amigo, cujo único crime a ser exposto para o mundo foi a forma de fazer piada via mensagem particular, sua forma de lidar com o que a vida lhe reservou (fazer piada de si mesmo, naquela máxima de que rir de algo que te mete medo faz com que você tenha menos medo). Se o caso exposto haveria de servir para muitos como exemplo da luta para tornar o mundo menos machista, também serviria de lenha pra fogueira dos infernos que se reserva no além-morte (ou mesmo em vida, para os que se julgam ungidos dessa missão) para homossexuais, em lutas que são delineadas em outros círculos (quadrangulares, pentecostais)  bem diferentes de discussão de redes sociais. Cada lado, inclusive o dos machistas e dos homofóbicos, consegue encontrar seus respectivos culpados no escândalo do romance, uma das ótimas sacadas da trama.
A sacada de base mais genial do livro, no entanto, foi a de situar a discussão inteira no mundo profissional da publicidade, ou pelo menos ter como seu meio de expressão as palavras de um publicitário. A atuação em redes sociais do adulto comum (e provavelmente também a dos adolescentes) é a de publicitário de si mesmo, fazendo todos os dias ou quase todos o login em nossa plataforma de relações públicas para falarmos que está tudo bem, que estamos indo muito muito bem; os que falam que estão mal ou que está tudo errado no geral aproveitam a oportunidade para pavonear o quão bem eles conseguem expressar como as coisas estão mal. Até quem diz a verdade está se vendendo como o cara que diz a verdade: não há escapatória, todos as vias e palavras estão afetadas pelo meio. É uma plataforma para se esculpir como perfeição, deixando de lado tudo que é desagradável e o que não cabe. O risco principal, além de uma vida em paranoia cercado de perfeitos gênios-em-tudo, é de acabar se acreditando naquela imagem artificial, sacrificando tudo que fica no caminho. Não tenho dúvidas que a ex-esposa acreditava no próprio blábláblá de que estava dando uma oportunidade ao protagonista de amadurecimento; em público, sim, sob todos os xingamentos imagináveis, melhor lugar pra refletir não há.
O protagonista reconhece o próprio erro, como não poderia deixar de fazer, em uma maneira meio em passant; sua preocupação principal, claro, está em sua sobrevivência mental mais básica, e não em pedir desculpas repetidamente para quem vai nunca cogitaria se sujar em pensar em ouvir. Sua imaturidade, principalmente em casar com uma mulher que parece que só evidenciava incompatibilidades fundamentais de personalidade, inclusive no campo sexual, explode da pior forma possível, e essa reconstrução passa a ter de ser feita publicamente porque foi para aí que foi arrastada, diante de gente para as quais ele é só um nome, ou arquétipo.
A coisa da AIDS, contudo, me soou estranha, no início. Tenho bastante aversão a metáforas a respeito de doenças, por histórico próprio de minha família; as diversas formas de finitude e suas imprevisibilidades são pra mim o indicativo mais distinto que podemos ter que estamos sob o jugo de forças aleatórias e insondáveis do universo. O narrador presta seu tributo ao clichê da questão, de todo mundo desse meio intelectual que já leu o livrinho ótimo da Sontag sobre o assunto, a tuberculose sendo poética no século dezenove, o câncer sendo rancoroso no século XX, mas o negócio ficou meio entalado mesmo assim, parecendo de início como único defeito de um livro que de tão bem feito chega a causar espanto, tendo em vista o quão recente é seu assunto principal.
O twist no aproximar do final da narrativa me pareceu uma forçada de barra na dramaticidade que já estava mais que aguçada o bastante no decorrer do livro. Para além da repetição básica da técnica do trauma arcaico anteriormente vista em o Diário da Queda (o pessoal deixando o menino cair no livro anterior, e no novo Walter deixando a travesti ser espancada) e a agressividade toda dos comentários, o livro já estava um tanto carregado, não precisando daquela dosagem a mais, e a ambiguidade do final me soando um tanto desequilibrada: se o resultado do teste fosse negativo, para que tanta tensão?
Nas páginas que provavelmente serão as mais finamente repenteadas da literatura brasileira recente, a questão é colocada em aberto, mas a mera existência da questão faria com que um dos possíveis resultados soasse improvável: se fosse negativo, para que tanto crescendo e suspense? Soa a princípio um pouco fajuto. A grande decisão que a garota deveria tomar só seria grande se fosse positivo. Talvez fosse uma questão de decidir em de fato construir uma vida ao lado dele, uma rejeição definitiva da possibilidade de se pintar como vítima da situação inteira e sair pelo caminho mais fácil, um pacto real e definitivo com o narrador. E todo aquele papo anterior sobre AIDS, todos aqueles detalhes, seriam meio que à toa? A situação por si só do amigo e o vazamento das mensagens dariam mérito a no máximo metade do espaço que foi gasto discutindo especificidades. A dúvida inteira, ainda, dá um eco meio bizarro para a conversa-zoeira entre os amigos, de decidir infectar a garota, ganhando uma literalidade quase que de mau-gosto.
Pensando um pouco mais, no entanto, não seria isso o que metaforicamente um relacionamento amoroso profundo acarreta? De certa maneira, quando amamos e temos nesse amor o convívio entranhado de subjetividades distintas ocorre certo contágio mútuo (ainda que parcial) de personalidades, a forma como o outro parece entrar em nossa pessoa? Mesmo nossos pensamentos mais particulares, a pessoa aparece dando pitacos imaginários, pensamos sem esforço em como o outro reagiria diante de alguma coisa nova que nos deparamos, ficando acompanhados mesmos quando estamos sozinhos. Não daria para entender o período de superação de um amor perdido como uma espécie de desintoxicação daquela pessoa, de nossa subjetividade aprender a viver sem a substância fornecida pela outra subjetividade? Nesse sentido, depois de digerir o livro por algumas horas, pude entender melhor essa possibilidade do final do livro, até que me ocorreu outro caminho, talvez mais engenhoso.
A confusão de datas relativas a Walter pode ser falsa, ou falseada. Ele talvez soubesse que o amigo teria se infectado somente após o contato com a ex-esposa (contato que talvez nem tenha existido).  Ela não saberia da doença do amigo? Teria ficado calada por esse tempo inteiro? (não lembro desse detalhe, esse texto conta com uma só leitura do livro). Os dois teriam ficado os quatro anos do casamento sem qualquer sintoma? Parece possível, mas um pouco improvável. Seria eu o único a sentir uma mudança na natureza dos acontecimentos da narrativa, nessa reta última, em que de repente o encadeamento de vários acontecimentos super específicos e intricados de repente se mostra como decisivo? Tudo deslizava num vai-e-volta de ambientação complexa, um andamento titubeante, até que de repente uma máquina de algumas engrenagens afiadas se revela como fundamental: plot twist numa história que subsiste de recuperar/ruminar um passado complexo, dissipado.

Assim, esse caminho que me aparece como possível, o que o protagonista apresenta agora em público como conclusão de sua defesa poderia ser, na verdade, nas entrelinhas, com o fim em aberto que de outra forma me parece um pouco artificioso e literário demais (eterno risco das narrativas de primeira pessoa), uma espécie de reivindicação possível daquilo que eles, o narrador e sua namorada, teriam perdido com essa exposição pública. Da mesma forma como o jeito semi-BDSM que os dois consensualmente transavam e gozavam juntos não dizia respeito a ninguém que não estivesse envolvido diretamente no ato, pois sabemos que não era só o adultério o escândalo, a resposta daquela pergunta-bomba sendo só deles seria uma forma dos dois terem de novo um mundo próprio, privativo, singular, que quem fosse de fora poderia apenas especular de forma inútil e infinita a respeito dos detalhes, em parâmetros que eles pudessem ter algum controle, uma espécie de retorno distorcido à forma como as coisas já foram e deviam ser.