segunda-feira, 25 de julho de 2016

Norman Rush - Mortals - efeitos de consciência

É uma equação esdrúxula, mas a melhor forma de resumir o Norman Rush para mim é David Foster Wallace + formação clássica + Dostoievski. Esdrúxula, como toda equação que trata de literatura, e também por tomar como base interpretativa um autor que é mais jovem do que o discutido, mas ela ajuda a entender um pouco do fascínio que o livro alcança.

Ele é David Foster Wallace no ímpeto que também tem de fazer um relato preciso dos movimentos de consciência de um personagem. Se a defesa clássica da prosa de ficção sobre outros meios mais rápidos de transmissão de narrativas (cinema, quadrinhos, etc) é que apenas ela tem o poder de naturalizar a consciência de outra pessoa, colocando os pensamentos em meio à ação sem sobrepesar o andamento da história, o Norman Rush sem dúvida seria um dos cúmulos desse aspecto supostamente intrínseco à nossa desvalorizada arte. Tudo que ocorre no livro é mediado (e por vezes interrompido em sua continuação) pela consciência meticulosa e obsessiva do protagonista, a ponto de que os acontecimentos (que são até bastante dramáticos e envolventes) parecem que são apenas o acompanhamento do principal que é a subjetividade do personagem e sua capacidade reflexiva.

 Por mais inteiros que pareçamos por fora (em geral para pessoas que não nos conhecem bem), somos frequentemente uma bagunça por dentro, e mesmo as nossas certezas mais aparentemente sólidas são alcançadas por contradições rapidamente resolvidas intra-cranianamente na medida em que nos deparamos com novas informações. Nossos raciocínios não alcançam as conclusões com as quais vivemos e agimos na vida de maneira imediata, e mesmo essas conclusões que parecem sólidas feito pedra desaparecem até mesmo sendo substituídas pelo seu oposto ante uma situação nova: a máxima clássica de que o personagem bem-feito é aquele capaz de surpreender o leitor é apenas xerox da realidade que somos capazes de surpreender a nós mesmos com nossas próprias reações. Um trauma superado ressurge como se estivéssemos na estaca zero, nos vemos mais covardes (ou quem sabe mais corajosos) do que esperávamos em certo momento urgente, somos incapazes de seguir com planos a princípio perfeitamente traçados.

O raciocínio de Ray Finch, protagonista do livro, é construído aos olhos do leitor como num programa de tutorial de como-se-faz, como-se-é-humano, numa naturalidade que o que termina por surpreender é como isso figura como surpreendente, estranho sendo que os outros livros não sejam assim. Um exemplo micro disso é o momento em que ele está diante do novo chefe babaca dele, sintetizado na frase “He hated Boyle, but not really”; os manuais de como-fazer-literatura provavelmente corrigiriam isto por algo do tipo “ele quase odiava Boyle”; aparentemente muito melhor que duas formulações em que a segunda efetivamente corrige a primeira. Uma construção o mais precisa possível a princípio seria melhor do que duas em luta, mas não é apenas o efeito (de consciência) que é valoroso, sua cópia de como funciona a cabeça de uma pessoa: o conteúdo resultante é também diferente. Naquele centésimo-de-segundo antes de vir o próximo pensamento, o protagonista estava realmente com aquela conclusão a respeito de seu chefe. O livro é inteiro assim (geralmente em frases bem mais alongadas), feito de percepções que se acumulam e se substituem sem nunca ficarem confusas, e sim uma precisão ao mesmo tempo absoluta e borrada, criando uma proximidade quase estranha com a realidade.

Quanto à formação clássica, é na verdade uma expressão incorreta, já que não se trata das grandes figuras da antiguidade (Cícero, etc), e sim uma erudição naturalizada relativa à tradição literária da língua inglesa. A diferença com Foster Wallace, que de fato tinha toda essa formação gigantesca que a nós (mais) mortais parece francamente inatingível, é que ele trazia o mundo midiático como tema constante de sua obra, enquanto o Norman Rush (seu personagem, mas, convenhamos, claramente também o autor) tem todo o estranhamento despudorado com o ““”emburrecimento“”” (aspas entre aspas) do mundo contemporâneo que se espera de um estereótipo de intelectual, como uma lamentação de que o vocabulário comum atual é supostamente menor do que o nos anos 1950 (para mencionar uma das muitas lamúrias ocasionais de Ray).

No entanto, o efeito dessa formação sólida do autor, reproduzida no protagonista, é um texto desavergonhadamente inteligentíssimo, carregando sua cultura como quem carrega aspectos de sua pessoa que são naturais (e não longamente adquiridos), não hesitando em exibir um dos efeitos que a leitura contínua e compulsiva produz na mente de quem embarca nessa jornada. Parece que o francês tem uma expressão “mobiliar sua mente” no que diz respeito ao hábito de leitura, quando me parece mais próximo do real é uma espécie de povoamento fantasmático da consciência, em que figuras literárias que lhe causaram impacto como que aparecem de repente em meio aos seus pensamentos, seja para ecoar de novo uma frase que tenha ficado por um tempo ou permanentemente (às vezes nos lançando numa busca de origem, “quem mesmo que falou isso?”), ou para dar uma opinião (imaginária, claro, reconstituída pelas impressões do próprio leitor, mas que ressoa como inteiramente verídica) sobre o que se tem diante de si, não apenas em momentos de fruição de obras de arte.

Percebemo-nos habitando aquele espaço a princípio da burrice, de ficar pensando várias vezes “esse cara é mesmo muito inteligente”; é claro que existem várias inteligências diferentes dentro do conceito uno de inteligência, seja rapidez de raciocínio, erudição (até os burros, por insistência, conseguem algum acúmulo), aptidões múltiplas e nada-complementares. Mas com o tempo nos vemos voltando (e até ansiando pela experiência desse retorno) de simplesmente nos admirarmos com a capacidade (ou conquista) incomum e improvável de certas obras, em que de repente de novo tudo que concerne a mente parece ser uma questão classificável e que estamos diante de alguém extraordinário como que naturalmente.

Já a parte Dostoievski, vem muito da constatação do Foster Wallace da disposição desabrida do russo de fazer sua obra um palco para discussões detidas e do mais alto nível de seriedade. Qualquer leitor/espectador mais interessado vai se dando conta que a lacuna é parte fundamental de qualquer obra de arte; não só não é possível falar tudo, como é nada desejável falar o máximo. O que muitos artistas optam por fazer a partir daí é de certa forma contornar de várias formas suas questões principais: uma tristeza é expressada por silêncios, ou pelo cenário, em vez de jogada na mesa, o texto se alongando como que em órbita em relação a um centro tornado tabu. O pessoal do new-criticism chamava isso de objetivo-correlativo, se me lembro corretamente: não é possível falar de amor, portanto falamos de primavera, flores, etcéteras. O risco de ignorar essa boa regra é sair da ineficácia (“que tédio, outra história que metaforiza pela tempestade as inquietações humanas”) e cair no ridículo ou ensaístico/analítico, transformar a narrativa em um tratado descritivo pretensamente minucioso das emoções humanas.

Dostoievski não tinha medo de encenar longas discussões a respeito dos tópicos que considerava importantíssimos, espichar monólogos que buscavam expressar com exatidão exaustiva o estado de espírito de seus personagens, exatamente o quão comovidos ou destruídos eles estavam pelo mundo circundante. A mesma coisa com o Rush. Nunca li um livro tão disposto a falar longamente do amor e da paixão, sexual e de afinidades, aquela intimidade aprofundada que se desenvolve como se fosse um pedaço sempre tateável da subjetividade de uma pessoa. Seu primeiro romance, Mating, um relacionamento que se inicia; o Mortals, um relacionamento já de muitos anos, enfrentando uma crise. Não é apenas nesse sentido: os romances tem ambientação em Botswana, com os personagens americanos descrentes e mesmo assim encantados com o lugar, e acaba por passar por discussões a respeito de geopolítica, cultura local, papel dos Estados Unidos no mundo, sem que (como parece mais comum) sejam coisas mencionadas apenas para constarem como existentes e serem rapidamente colocadas de lado, para o romance tratar do que realmente importa, a narrativa e o enlace emocional.

A naturalidade com que o livro desenvolve essas três frentes, a minúcia da consciência, a gigantesca carga cultural e a importância do assunto tratado, é absolutamente espantosa. Parece contemporaneamente mais seguro apostar no ressalto do que há de artifício em arte, narrar apenas depois de avisar várias vezes que há muito que não será narrado, a nova forma de erguer a cabeça é abaixar a cabeça. Mortals chega a ser quase um livro do século dezenove em sua pretensa solidez. Tem seu quê de excessivo e digressivo, trechos inteiros que poderiam ser cortados sem prejuízo para o todo (meia página falando mal da transformação/consagração de Joyce de escritor realista em puzzlemaker, pontuada por um singelo “fuck him”); pela recepção crítica que teve, parece que seu livro mais recente, Subtle Bodies, mais curtinho, sofre justamente por certo desajuste de velocidade: demora demais para construir seu mundo sem ter o espaço e demora necessários para o acúmulo e o efeito de resolução. Lerei. Norman Rush para mim está na categoria de grandeza que até os fracassos interessam.

J.G. Ballard diz na introdução de seus contos reunidos que lamenta a queda de status que a short story sofreu durante seu tempo de vida: no início de carreira eram várias as revistas literárias (de ficção científica ou não) que buscavam novos talentos e conseguiam vendagem para se manter, enquanto hoje parece que o campo virou quase todo para os romancistas. Ele fala que acha isso curioso, pois conhece vários contos perfeitos e nenhum romance perfeito. Já eu acho que está justamente aí um dos segredos dessa predominância: essa imperfeição é como um efeito de realidade, em que nem tudo cabe a uma máquina central de sentido, encaixado com exatidão: há sobras, excessos, espaços em branco que não são meticulosamente esculpidos por um texto-moldura. Certo aspecto intangível de inacabado, do livro que de certa maneira poderia continuar e não continua, o livro que poderia calar e se alonga. Claro, muito difícil de definir qual a medida disso em que realmente entra no espaço do erro e da imperícia, mas essa dificuldade de definição é também indício de que algo que é real foi capturado.

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Trechinho, traduzido por este que vos posta:

It never changed for him, seeing her again after a day’s separation, or even less. He felt a flowing, objectless gratitude so strong it weakened him. He wanted her touch. It was permanent with him. She put her hands on him and slipped one hand through the unbuttoned top of his shirt. She was wearing a plain white sundress and she was barefoot. The shape of her heavy hair against the light and the scent of it as he put his face into her hair were perfections, were absolute things. He was forty-eight. She was thirty-eight. A pleasure he had was catching flashes of surprise in people’s expressions when she told her age, which she was always truthful about. He often had the satisfaction of seeing people look at him, obviously wondering what it was about him that they weren’t seeing that made it reasonable for a woman of this quality to be with him, be his. He had always looked his exact age. And he also liked seeing them being given pause by someone at her level of physical beauty dealing with people so much more nicely than she should be, on their past experience of great beauties, which she was, which she was. These were instantaneous moments, but real. She was a democrat, a spiritual democrat. And then with women, and gay men too, sometimes, he would get the moment when they tried subtly to ascertain if they could possibly be right in their first impression that Iris was wearing hardly any makeup. There was a way they widened their eyes briefly and then focused again. Iris wore next to no makeup.
He wanted the touch of her breath on his throat. When they embraced after being
separate that was what he wanted first.
“You are so beautiful,” she said.
“So say we all,” he said, being wry.
A line came to him, I am the mirror you breathe on. It wasn’t quite right, though. If he wrote poetry what he would want would be a line that united holding a mirror up to the mouth and nose of a particular beloved to see if she was still alive with the mirror being the fixed register of her personal beauty. Could the line be I am the mirror your breath is for? He thought. No because it’s slightly sinister. No because it’s stupid. This was why genius would be so handy if you had it. Iris had no real appreciation of how beautiful she was. She was sealed off from that by her past, complications in her past, and he lacked the genius to strike through and say Look what you are! Look! and have her believe it.

Nunca mudava para ele, vê-la de novo depois da separação de um dia, ou até menos. Ele sentia uma gratidão fluente e desobjetificada tão forte que chegava a enfraquecê-lo. Ele queria o toque dela. Era permanente com ele. Ela colocou suas mãos nele e deslizou uma mão pelo topo desabotoado de sua camisa. Ela estava de vestidinho branco e sem estampas e ela estava descalça. A forma de seu cabelo pesado contra a luz e a fragrância quando ele colocava seu rosto no dela eram perfeições, eram coisas absolutas. Ele tinha quarenta e oito anos. Ela tinha trinta e oito. Um prazer que ele tinha era capturar flashes de surpresa nas expressões das pessoas quando ela dizia sua idade, em que ela nunca mentia. Ele frequentemente tinha a satisfação de ver pessoas olharem para ele, obviamente ponderando o que ele teria que eles não estariam vendo para tornar razoável que uma mulher dessa qualidade ficasse com ele, fosse dele. Ele sempre teve a aparência exata de sua idade.  E ele também gostava de vê-los pausar por estarem diante de alguém em seu nível de beleza física lidando com pessoas de maneira muito mais agradável do que ela deveria fazer, em suas experiências passadas com grandes belezas, que ela era, que ela era. Esses eram momentos instantâneos, mas reais. Ela era uma democrata, uma democrata espiritual. E então com mulheres, e homens gays também, ele teria o momento em que eles sutilmente tentariam averiguar se era possível que eles poderiam ter tido razão em sua primeira impressão que Iris não estava usando quase nenhuma maquiagem. Existia um jeito em que eles alargavam seus olhos brevemente e então focalizavam de novo. Iris não usava quase nenhuma maquiagem.
Ele queria o toque de seu respirar em sua garganta. Quando eles abraçavam depois de ficarem separados era isso que ele queria primeiro.
“Você é tão belo” ela falou
“É o que dizemos todos” ele falou, sendo irônico

Uma frase veio a ele eu sou o espelho em que você respira. Não estava bem certa, no entanto. Se ele escrevesse poesia o que ele ia querer era uma linha que unisse o segurar do espelho na boca e nariz de uma pessoa amada em particular para ver se ela ainda estava viva com o espelho sendo o registro fixo de sua beleza pessoal. Poderia a frase ser Eu sou o espelho para qual serve seu respirar? Ele pensou. Não porque é ligeiramente sinistro. Não porque é idiota. Era por isso que genialidade seria tão útil se a você tivesse. Iris não tinha apreciação real de como ela era bela. Ela foi isolada disso pelo seu passado, complicações de seu passado, e a ele faltava a genialidade para adentrar com um impacto e dizer Olhe o que você é! Olhe! e vê-la acreditar.

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Adendo ao post sobre Suttree - a linguagem

(Era para ter sido escrito um dia ou dois depois do primeiro post: eis um calendário exato da procrastinação, a distância desse de agora pro anterior.)
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Toda tradução é uma traição, blá blá blá, mas o caso de Suttree é realmente interessante por suas especificidades estéticas. Discuti uma questão parecida com essa num post de uns anos atrás sobre a dificuldade inerente/estrutural de traduzir Infinite Jest: alguns romances não apenas usam o idioma em que foram escritos, eles realmente existem dentro de sua linguagem. O inglês não é meramente o meio, é como se fosse parte do corpo da obra. Colocá-lo em outro idioma não é colocar um cantor de voz diferente para a mesma música, é escolher outro instrumento: um piano não consegue alongar suas notas, um clarinetista não tem as duas mãos produzindo notas diferentes.

No caso do Infinite Jest era a maleabilidade prática maior do idioma de origem que atrapalhava sua existência mais assemelhada no português (vale dizer mais uma vez que a tradução do Galindo me pareceu ser a melhor possível), já o problema com o Suttree é de ordem histórica. O inglês é um idioma vira-lata: estrutura meio germânica, léxico em grande parte do latim, por influência histórica francesa. Frequentemente existem duas palavras que expressam a mesma ideia, com uma sendo originária do latim, tida como a mais rebuscada ou erudita. Lembro-me dos coleguinhas da sexta série da época em que morei por lá com a piadinha “we saw you masticate yesterday at lunch”, apostando na semelhança sonora com “masturbate”. Saber que aquilo era mastigar, ou “chewing”, no inglês comum, era coisa para os iniciados, quem já tinha ouvido a piadinha antes. É até engraçado que um leitor brasileiro às vezes vai ter mais facilidade do que um americano com o vocabulário do Infinite Jest, por sua recorrente incursão nas versões rebuscadas das palavras.


Suttree, com todo seu tutano primitivista indisfarçável, trabalha na linguagem a questão da superficialidade do que temos e tentamos ter de civilização. Os adjetivos no livro frequentemente são substituídos com criações verbais aglutinadoras bastante transparentes, como certo momento em que uma máquina é descrita como “spiderlike” (em vez de arachnid – palavra do latim). Não se trata de uma rejeição completa e purista das palavras dessa origem: elas aparecem, mas em contexto em que o que elas tem de estrangeiro fica radicalmente ressaltada, frequentemente em tom científico, tentativa humana fracassada e meio-fake de domar a natureza e o mundo circundante. Temos uma divisão de autenticidade/naturalidade versus inteligência/artificialidade expressada na forma como o romance respira. O tradutor para o português não tem caminho certo para onde ir, nesse quesito: as palavras arcaicas ocasionalmente desenterradas pela narrativa provavelmente soarão como erudição bacharelesca, e não retiradas de paredes de cavernas, de fogueiras há milênios apagadas e de rastros milagrosamente descobertos.