quarta-feira, 29 de junho de 2016

Relendo Suttree - sobre a não-concisão

Relendo Suttree – sobre a não-concisão

Uma coisa não tinha ficado bem-resolvida na minha primeira leitura de Suttree, seis anos atrás: como que eu tinha demorado quase três meses pra ler um romance que a cada capítulo se firmava como uma das leituras mais memoráveis da minha vida? Todos os outros de um possível top 10 meu tinham me acometido como ataques súbitos, leitura realmente compulsiva (o Infinite Jest, que deve ser três vezes maior, não demorou tanto, o Desonra, do Coetzee, foi praticamente numa tarde só), livros que invadem meu espaço interno e dão nova vida ao interesse pela literatura, seja a situação anterior meio moribunda (ressuscitada a choques elétricos) ou normal (forçada a lidar com aquela nova energia).  Pensei que essa demora para ler talvez pudesse ser atribuída ao fato de eu ter lido no meio do meu mestrado, entre várias outras leituras que não eram completamente inúteis pro meu projeto, ou apenas certa imaturidade minha de leitor, achando que uma tentativa agora decerto seria rápida, dentro daquela impressão que com o tempo vamos sempre melhorando intelectualmente.
A releitura também demorou mais de dois meses; até dá pra ver por aqui no blog, via um post anterior meu do início de abril traduzindo um parágrafo rápido. Não é um livro dos mais longos (menos de quinhentas páginas) ou super-difícil, ainda que apresente uma linguagem bastante incomum e disposição não-didática de informações básicas sobre o protagonista. Mas dessa vez a lerdeza na leitura não me pareceu um atestado de fraqueza/incompetência como tudo parece muito pronto a ser quando somos jovens e (mais) inseguros. Suttree é definitivamente um livro lerdo. A ser lido bem aos poucos.
O romance narra em episódios mais ou menos independentes a vida de Cornelius Suttree, herdeiro de ricaço do interior dos Estados Unidos (salvo engano, magnata ferroviário) que decide largar a vida traçada para ele para morar em um barquinho nos arrabaldes de Knoxville, Tennessee, pescando boa parte de sua comida, vendendo as sobras na feira, convivendo com bêbados maltrapilhos fodidos da vida. Não são pessoas simples/humildes, e sim semi-degeneradas. Os causos se aproximam com frequência do pitoresco, sem que com isso essas pessoas que sobrevivem na miséria material apareçam como algo exótico, curioso, engraçado, ou algo que nos leve com naturalidade à opinião de que é absurda ou lamentável a existência de pessoas arremessadas nessa semi-barbárie. Não se trata de um zoológico humano, para apontarmos às aberrações com risos desabridos ou indignação humanista, afirmando que a Educação haveria de Salvar essas pessoas dessas tristes condições; há, na verdade, antes, um fascínio por toda essa imundície, tida como mais autêntica à existência humana do que o verniz da civilização abandonada pelo protagonista: os humanos lutam pela sobrevivência cotidianamente há vários mil-anos a mais do que aproveitam as benesses do acúmulo civilizatório, e é como se houvesse algo em nossa constituição subjetiva profunda que nos puxa a essa existência anterior, apenas em parte abandonada.
Todo leitor com mais de dezoito anos sabe que esse fascínio há de ser muito difícil de ser longamente sustentado sem descambar pro ridículo ou pro fake, e é isso o que Cormac McCarthy talvez por milagre consegue. Não é o intelectual que com binóculos ou microscópio analisa uma situação humana com frieza clínica ou com o entusiasmo de fanático: esse nível social permeia o texto como vivência mesmo, com naturalidade inimitável, numa justaposição francamente bizarra de linguagem coloquial caipira com outra parte de altivez descritiva cheia de arcaísmos esquisitíssimos que é quase como se o verbo voltasse a ter o poder do início do Gênesis para de criar um mundo.
Quem quiser uma amostra direta disso, só ver as páginas iniciais do livro (com modesta tentativa de tradução deste que voz fala): http://asordensdadesordem.blogspot.com.br/2013/12/preambulo-do-suttree-traduzido.html  
(os parágrafos citados nesse post também são de tradução minha)
A questão principal que pretendo discutir é esse quê de demora do livro: os episódios não são ordenados em qualquer arco narrativo, de maneira que os posteriores dependam ou acrescentem ou mesmo superem os anteriores. Há certa displicência na disposição dos acontecimentos, certo relaxamento como de um barco descendo vagaroso com a correnteza de um rio, seu único tripulante deitado nas tábuas tomando Sol. O leitor que corre apressado pelo romance, devorando a obra em blocos de centenas de páginas, provavelmente vai se irritar com o que há de repetitivo no livro. Tá, já entendi, o pessoal vive muito na precariedade; tá, já entendi, o pessoal bebe muito; tá, já entendi, etc etc.
Não existe um crescendo de dramaticidade ou mesmo de esclarecimento a respeito da atitude do protagonista de abandonar o mundo do conforto; o peso principal que permeia o texto é de inconsequência, tanto de Suttree ao largar sua família quanto dos próprios acontecimentos, que se desenrolam de maneira a punir a ocasional e recorrente estupidez dos personagens sem que com isso acarrete qualquer lição (aprendida por eles o carregada ao leitor). O ápice de dramaticidade, no nível simples de acontecimentos trágicos, se dá perto da página 150, a morte do filho do protagonista:

“All night he’d tried to see the child’s face in his mind but he could not. All he could remember was the tiny hand in his as they went to the carnival fair and a fleeting image of elf’s eyes wonderstruck at the wide world in its wheeling. Where a ferriswheel swung in the night and painted girls were dancing and skyrockets went aloft and broke to shed a harlequin light above the fairgrounds and the upturned faces”
“A noite inteira ele tentou ver o rosto da criança em sua mente mas ele não conseguia. Tudo que ele conseguia lembrar era a mão pequenina na sua quando foram ao parque de diversões e uma imagem fugidia de olhos de elfo maravilhados com a imensidão do mundo em seus movimentos. Onde uma roda gigante balançava na noite e garotas pintadas dançavam e foguetes celestes ascendiam em arroubos e partiam se despindo em uma luz harlequim por cima da praça e dos rostos erguidos.”

Um editor moderno, munido da boa regra da concisão literária, poderia até defender racionalmente o corte de talvez mais da metade do livro, e é dessa natureza a reivindicação daqueles que elegem Meridiano de Sangue e a Trilogia da Fronteira como as verdadeiras obras-primas do Cormac. Há muita gordura no livro, excesso excessivo. Muita (muita) descrição, detalhes repetidos (lembro de mais de uma menção a preservativos usados jogados no mato ou no riacho), muitas cenas que expressam a mesma tônica, episódios sucessivos que efetivamente dizem a mesma coisa: que o ser humano é um animal triste, impulsivo, que não há regra discernível para a existência exceto sua finitude, que todos somos irrevocavelmente impelidos à morte e ao nada:

“In an older part of the cemetery he saw some people strolling. Elderly gent with a cane, his wife on his arm. They did not see him. They went among the tilted stones and rough grass, the wind coming from the woods cold in the sunlight. A stone angel in her weathered marble robes, the downcast eyes. The old people’s voices drift across the lonely space, murmurous above these places of the dead. The lichens on the crumbling stones like a strange green light. The voices fade. Beyond the gentle clash of weeds. He sees them stoop to read some quaint inscription and he pauses by an old vault that a tree has half dismantled with its growing. Inside there is nothing. No bones, no dust. How surely are the dead beyond death. Death is what the living carry with them. A state of dread, like some uncanny foretaste of a bitter memory. But the dead do not remember and nothingness is not a curse. Far from it”.
“em uma parte mais velha do cemitério ele viu algumas pessoas passeando. Cavalheiro idoso com uma bengala, sua esposa no braço. Eles não o viram. Eles seguiram pelas pedras inclinadas e grama alta, o vento vindo do bosque frio na luz do Sol. Um anjo de pedra com suas vestes de mármore ao léu, olhos para baixo. As vozes dos velhos deslizam pelo espaço solitário, murmurosas sobre esses lugares dos mortos. Os liquens nas pedras esfaceladas feito uma luz verde e estranha. As vozes desaparecem. Além a gentil colisão de ervas daninhas. Ele os vê se inclinando para ler alguma singela inscrição e ele pausa perto de um jazigo velho que uma árvore desmontou pela metade com seu crescimento. Dentro não há nada. Não há ossos, não há poeira. Quão certamente os mortos estão além da morte. Morte é algo que os viventes carregam consigo. Um estado de pavor, feito um inquietante antegosto de uma memória amarga. Mas os mortos não rememoram e o nada não é uma maldição. Longe disso.”
Ou até mesmo

“He lifted the slice of cake and bit into it and turned the page. The old musty album with its foxed and crumbling paper seemed to breathe a reek of the vault, turning up one of these dead faces with their wan and loveless gaze out toward the spinning world, masks of incertitude before the cold glass eye of the camera or recoiling before this celluloid immortality or faces simply staggered into gaga by the sheer velocity of time”
“Ele ergueu a fatia de bolo e deu uma mordida e virou a página. O álbum velho e bolorento com seu papel em verde desintegração parecia respirar um fedor de jazigo, erguendo um desses rostos mortos com seu olhar pálido e desamoroso para o mundo giratório, máscaras de incerteza ante o frio olho de vidro da câmera ou recuando ante essa imortalidade de celulóide ou rostos simplesmente estagnados em gagá pela absoluta velocidade do tempo.”
(nem mesmo a chance de uma mini-imortalidade trazida pela fotografia traz qualquer alento ante o grande nada)

Já é velho e sabido o problema estrutural da expressão de niilismo em arte: se toda arte de certa forma almeja alguma grandeza, essa busca em si (o reconhecimento de ser possível uma grandeza) não é um golpe de morte na ausência fundamental de sentido? O próprio esforço imenso de criar um texto bem composto (parece que esse romance demorou vinte anos pra ser concluído) não é uma afirmação de que existe algo que vale imenso esforço e, assim, a existência não deixa de ser esse vazio? Temos aí o Beckett e o peso que ele faz até hoje nos que se interessam pela expressão estética mais apurada em arte literária.
Não que exista uma defesa da desistência e do nada por parte do livro, de que não é possível encontrar algo que tenha qualquer importância, passageira ou final, e sim o reconhecimento contínuo de que tudo que há de mais horrível e incrível há por fim de ser engolido, em uma geração ou muitas, que o mundo físico nos evidencia, em triste paradoxo com o nosso crescente domínio sobre ele, a nossa inescapável insignificância quando tratamos do universo em escala geológica ou cósmica, muito mais estáveis e sólidas do que qualquer parâmetro humano/cultural. O esquema antiguinho de colégio era que o mundo ocidental ao entrar no Renascimento com as expansões científicas deixou de ser teocêntrico para antropocêntrico; o irônico é perceber que colocar a existência inteira nas mãos de Deus o ser humano acaba sendo mais importante (feito à imagem, etc) do que ele é na concepção materialista, que trouxe tanto progresso.
Imagine se fôssemos forçados a não apenas visitar por alguns segundos e sim viver dentro daqueles exercícios de visualização em zoom-out a respeito de quão recente é o mundo industrial/racional/científico em comparação à existência humana “civilizada”, a organização em civilizações em comparação a toda a existência humana como animal, a existência de humanos em relação à vida na Terra como um todo, e o quão recente é a vida na Terra em relação à existência desse planeta extremamente atípico, e quão ínfimo é o tamanho dele em relação a outros ou, pior, ao cosmos inteiro. Se a mera absorção dessa informação em um nível superficial pode ser desconcertante, algo que deixamos de lado para continuar seguindo nas nossas vidas, o incorporar dela na apreensão da existência do início ao fim produz loucura, ou uma ficção que parece ter nascido de um delírio febril prolongado (acho que essa expressão é do Foster Wallace pra tratar do Cormac).
Creio que o editor que fizesse o esforço para tornar o livro mais enxuto, clean, e acessível poderia até acertar nos cortes e de fato chegar a uma versão em que ficassem apenas as partes melhores, uma organização que conduzisse o leitor do início ao fim de maneira mais ágil e talvez conseguisse mais leitores (não necessariamente inferiores). No entanto, ele estaria agindo de uma maneira racional, econômica, equilibrada, pra tratar de um livro que expressa primordialmente o irracional, o dispendioso, e o desequilibrado. Os episódios se substituem sem se complementar/incrementar assim como os personagens de certa forma também seriam intercambiáveis; para além do Harrogate e a prostituta com a qual o Suttree se envolve mais longamente, qual outro personagem se destaca do amplo panorama do livro, a ponto de ser distintamente reconhecível? Mesmo as histórias frequentemente sendo descabidas, a impressão distinta é que é tudo uma mesma coisa, apenas gente improvisando com o quase nada que tem.
Acho que esse quê de excesso e de sobras também se reforça com o fato do livro tratar de uma classe especial muito específica: as pessoas que sobraram na sociedade, gente que se desaparecesse do mundo parte significativa da “gente de bem” não lamentaria e até mesmo ficaria feliz, saudando que a metrópole agora era um lugar melhor com uma escória um pouco menos populosa. Além de podridão, morte, e uma natureza rápida para devorar com bolor e líquen o que existia anteriormente, o cenário frequentemente contém dejetos, ferros-velhos, casas abandonadas, trastes; da mesma maneira são pessoas de certa forma abandonadas pela civilização e pelo progresso. São vários os trechos desnecessários, diria o editor que busca a “eficiência literária” tão frequentemente louvável; são pessoas desnecessárias, diria mais de um engenheiro social.
Para além desse lance social, no entanto, fica a expressão de um entendimento a respeito da própria existência de matéria viva no universo. O texto de McCarthy ocasionalmente adentra terminologia científica e geológica, não em capítulos ou parágrafos explicativos, e sim como invasões no-meio-da-frase, interruptoras de lirismo primitivista duramente esculpido, evocando os milhões de anos ignotos à experiência humana acessíveis apenas abstratamente, através de resquícios e reconstituições. Lembro de ter ouvido em algum lugar que de acordo com certo entendimento das leis da termodinâmica a parte que não cabe no modelo para que ele faça pleno sentido, em termos de um sistema de transferência de energia entre diferentes objetos, é a própria vida, que ela não segue os mesmos parâmetros que a matéria inerte (que forma a maioria absolutamente gigantesca do que há no universo). Assim, o inchaço do texto pode ser lido também como uma construção estética que evoca justamente o ponto de vista naturalista que estrutura a visão de mundo de McCarthy, naturalista não por uma natureza romantizada do equilíbrio, perfeição e idílio, e sim a brutalidade estúpida e cega de um sistema material que existe com vida tanto quanto poderia existir apenas de terra e deserto, como na maioria aterrorizante dos outros planetas. O inchaço do livro, abundante em sobras, é assim como o inchaço da matéria que acaba por resultar em vida, esse absurdo autônomo auto-reprodutivo que segue em expansão até sua capacidade máxima mesmo carecendo de motivo discernível para existir.

Um último trecho, porque sim:
“A clear night over south Knoxville. The lights of the bridge bobbed in the river among the small and darkly cobbles isomers of distant constellations. Tilting back in his chair he framed questions for the quaking ovoid of lamplight on the ceiling to pose to him:
Supposing there be any soul to listen and you died tonight?
They’d listen to my death.
No final word?
Last words are only words.
You can tell me, paradigm of your own sinister genesis construed by a flame in a glass bell.
I’d say I was not unhappy.
You have nothing.
It may be the last shall be first.
Do you believe that?
No.
What do you believe?
I believe that the last and the first suffer equally. Pari passu.
Equally?
It is not alone in the dark of death that all souls are one soul.
Of what would you repent?
Nothing.
Nothing?
One thing. I spoke with bitterness about my life and I said that I would take my own part against the slander of oblivion and against the monstrous facelessness of it and that I would stand a stone in the very void where all would read my name. Of that vanity I recant all”
Uma noite límpida sobre o sul de Knoxville. As luzes da ponte boiavam no rio entre as pedras escuras isômeras de constelações distantes. Inclinando sua cadeira para trás ele montava questões para o ovóide trêmulo de luz-de-lâmpada colocar para ele:
Supondo que haja qualquer alma para ouvir e você morresse esta noite?
Ouviria minha morte.
Nenhuma última palavra?
Últimas palavras são apenas palavras
Você pode me dizer, paradigma de sua própria gênese sinistra construído por uma chama em uma campânula de vidro.
Eu diria que eu não fui infeliz.
Você não tem nada.
Pode ser que os últimos serão os primeiros.
Você acredita nisso?
Não.
No que você acredita?
Eu acredito que os últimos e os primeiros sofrem igualmente. Pari Passu.
Igualmente?
Não é sozinho no escuro da morte que todas as almas são uma alma.
Do que você se arrepende?
Nada.
Nada?
Uma coisa. Eu falei com amargura sobre minha vida e disse que eu faria minha parte contra a calúnia do esquecimento e contra seu monstruoso anonimato e que eu ergueria uma pedra no próprio vazio onde todos leriam meu nome.  Dessa vaidade eu abjuro por inteiro."

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Pós escrito egocêntrico: curiosamente essa percepção mais definida do livro e sua organização chega depois de terminar de escrever um segundo romance que em sua composição de fato operou pela regra de ser conciso (mais ou menos duzentas páginas versus as seiscentas e cinquenta do primeiro projeto).  A alternativa de não ser conciso não é uma liberdade de uma constrição injusta: o critério fundamental e incontornável da qualidade permanece. Não é uma espontaneidade/naturalidade (há quem acredite nisso) ou mesmo falta de controle do Cormac: pelo contrário, o controle apenas se torna mais difícil, por falta do parâmetro que em geral é dos mais razoáveis e aconselháveis.

Estou com uma ideia para um terceiro romance, ainda mais curto. Para mim fica cada vez mais claro que um livro ser curto ou comprido não é só uma questão de quantidade de coisa (ideias ou acontecimentos da narrativa) dentro dele, ou poderio autoral de construir muito mantendo-se um nível alto de qualidade: existe também um quê de característica intrínseca do material escolhido para se narrar. A concisão é sem dúvida um bom parâmetro, mas não deve acabar por excluir possibilidades de expressão literária.