quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Na medida que o rascunho do romance ultrapassa a página seiscentos

Escrevendo o romance eu me sinto como que esculpindo um bicho. Quando eu vou trabalhar nele, boto minhas mãos na criatura, ele é de pedra, estátua. Construo seu esqueleto e músculos, imagino sua movimentação, projeto (ingenuamente, talvez) sua aerodinâmica. Mas ele voa apenas na leitura dos outros. A imagem prévia que eu tenho do livro (personagens, cenas, ideário, autenticidade intelectual e emocional diante de minhas próprias experiências, o atraso que sinto diante dos autores que mais admiro) é lastro insuperável para que ele consiga voar na minha cabeça.

Posso pedir para outros levarem ele para um voo, me contar se a coisa sequer saiu do chão, se plana tranquilo em tardinhas sem nuvens, se de fato dá rasantes quando decide dar rasantes ou se cai de cara no chão sequer de forma engraçada (apenas triste e constrangedora), mas por mais que me façam relatos pormenorizados de suas experiências, quando eu retorno para o estúdio para retrabalhar um detalhe e boto de novo minhas mãos no bicho, ele é de novo estátua, de novo pedra.

Posto de forma menos pomposa, é uma tristeza ser realmente impossível ler o próprio texto, só sendo possível revisá-lo e retrabalhá-lo. Não por uma inveja de egolatria incontrolável ("nossa, queria ser meu leitor"), e sim por realmente não ser possível ter certeza se a coisa deu certo mesmo ou não na mesma segurança como eu sei que meus livros favoritos dão certo.