sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Inclusividade narrativa

Se em uma história você tem um homem branco espancando outro homem branco, a história é racista porque efetivamente cria um mundo em que só existem brancos, coadunando com uma visão de que negros não merecem a nossa atenção.

Se em uma história você tem um homem branco espancando um negro, a história é racista porque é uma power-fantasy que encena a vontade de mestre punindo os escravos, a vontade que há de subjugar o negro. Racistas vão adorar ler este espancamento.

Se em uma história você tem um homem negro espancando um branco, a história é racista porque mostra os negros como sendo uma ameaça à civilização (branca), que o branco deve sempre ficar atento e pronto pra se proteger.

Se em uma história você tem um negro espancando um negro, a história é racista porque reforça uma noção de que eles seriam assim mesmo, violentos, selvagens, e que é melhor manter distância.

Moral da história: A violência está sempre errada.

(Só uma variantezinha daquela história do casal andando com um burrico, qualquer combinação de utilização do animal há de ser criticada por quem está ali para criticar)

Mais Gass

Traduçãozinha minha de um parágrafo do The Tunnel, do Gass. Ó:

Olhos selvagens eram outro sinal. Era algo que eu raramente vi - a expressão de um estado extático - ainda que muito seja tolamente escrito deles, como se crescessem feito alcachofras de Jerusalém pela estrada. Os olhos são negros, certamente, seja lá qual for sua cor normal; eles são negros porque sua percepção se condensou ao carvão, porque o toque e gosto e perfume do amante, o clamor de uma palavra suja, um rio bem-vindo, foram reduzidos no calor da paixão a uma cinza negra, e este resíduo não-queimado de oxidação, este cálice, substitui a pupila de forma que não mais recebe e sim emite, e cada cabelo está em pé, ainda que talvez apenas espalhado em um travesseiro, e as narinas estão alargadas, boca aberta, bochechas sugadas de forma que a face inteira parece tão espremida como uma fruta sem suco; eu sei, pois uma vez Lou adentrou estra selvageria enquanto nos absorvíamos um ao outro, tentando beijar, não meramente forçosamente, não a caveira de nossos esqueletos, mas a caveira e todos os ossos em que o próprio ser essencial é dependurado, beijo tal que o contorno de nossos espíritos é mexido também, o que é conhecido como o máximo dos beijos de língua, a foda mais funda, quando o pau faz um conceito gritar e gozar; eu sei, pois mais de uma vez, embora não frequentemente, eu tremi para dentro desta outra região, quando uma boca me puxou por sua generosidade para dentro do reino do desemaranhar, e cada sensação jazia estendida como um lago, cada nó afrouxado, e a cola das coisas dissolvia. Eu sabia que carregava o olhar selvagem então. O maior presente que você pode dar a outro ser humano é deixar que ele te aqueça até, no passar para além do prazer, suas defesas caiam, seu ego se rende, as estruturas derretem, prédios despencam, mentiras, preferências, vaidades, são sopradas pra longe em vento nenhum, e você retorna, não ao barro de onde você veio - este recipiente cru - mas ao momento original de inspiração, quando você era o sopro em nada abreviado de Deus.