sábado, 29 de março de 2014

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Vai que some de lá. Mais difícil sumir de lá e sumir daqui também.

Parece automático agora para maioria das pessoas ir ao aeroporto e ser acometido pela preocupação patriótico-cidadã de nãovaidartempo, imaginanacopa, etc. Já eu acho que se desse tudo certo na copa (hahahahahaha) e o país desse uma boa impressão para estrangeiros seria como ir visitar uma família em que o pai espanca todos os dias os filhos e a esposa exceto no dia de visita e tá lá todo mundo bonitinho e sorrindo pros convidados.

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"Sou contra este governo que está aí. Quero a volta do governo que perseguia e torturava as pessoas que eram contra o governo!". E esse povo, todos os seis, doze, trinta infelizes que conseguem reunir nas capitais do país, ainda vira notícia.

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Dica: não escolham para mestrado um assunto que está quase fazendo aniversário. Depois da defesa, você tendo ânsia só de ouvir palavras-chaves aparentadas do assunto, noticiários e papos zeitgeistianos ficam ainda mais chatos de aturar.

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Uns meses atrás queriam tirar a palavra "crazy" para falar negativamente de mulheres. Desmerece sentimentos, etc. Hoje querem tirar a palavra "bossy" (mandona). Vamos fundar um movimento de vanguarda e banir todas as palavras possivelmente negativas quando nos referirmos às mulheres?

(O que mais me espanta é o nível computador-usando-searchwords de entendimento de comunicação humana)

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Trechos do Blood Meridian, relido por mim nesses dias:

"Eram terras remotas para novidades os lugares em que ele passava e naqueles tempos incertos homens brindavam a ascenção de regentes já depostos e saudavam a coroação de reis assassinados e em suas sepulturas"

"Em uma parte elevada da beira ocidental do lago seco eles passaram por uma cruz de madeira grosseira onde Maricopas haviam crucificado um Apache. O corpo mumificado dependurado na arvorecruz com sua boca escancarada em um buraco cru, uma coisa de couro e osso desengordurada pelos ventos pedra-pomes que saem do lago e a árvore pálida de suas costelas aparecendo pelos farrapos que se dependuravam de seu peito."

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Pedacinho do Revolutionary Road, do Yates 
"And how could he ever tell April that these abysmally sentimental words had sent an instantaneous rush of blood to the walls of his throat? How could he ever explain, without bringing down her everlasting scorn, that for a minute he was afraid that he might weep into his melting chocolate ice cream?"


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A man in his life - Yehuda Amichai  (tr. Chana Bloch & Stephen Mitchell)

A man doesn't have time in his life
to have time for everything.
He doesn't have seasons enough to have
a season for every purpose. Ecclesiastes
Was wrong about that.

A man needs to love and to hate at the same moment,
to laugh and cry with the same eyes,
with the same hands to throw stones and to gather them,
to make love in war and war in love.
And to hate and forgive and remember and forget,
to arrange and confuse, to eat and to digest
what history
takes years and years to do.

A man doesn't have time.
When he loses he seeks, when he finds
he forgets, when he forgets he loves, when he loves
he begins to forget.

And his soul is seasoned, his soul
is very professional.
Only his body remains forever
an amateur. It tries and it misses,
gets muddled, doesn't learn a thing,
drunk and blind in its pleasures
and its pains.

He will die as figs die in autumn,
Shriveled and full of himself and sweet,
the leaves growing dry on the ground,
the bare branches pointing to the place
where there's time for everything.

Início de conto do Richard Yates

Ótimo escritor, este Richard Yates. Merece mesmo ser desenterrado do esquecimento. Aqui um parárafo de abertura de conto que achei bom o bastante para querer traduzir (acho que um pouco do estilo límpido e lírico se perdeu no caminho, mas não sei bem apontar onde):

"Por um curto período quando Walter Henderson tinha nove anos de idade ele pensou que cair morto era o verdadeiro zênite do romântico, e também pensavam isto uma porção de seus amigos. Achando que a única parte verdadeiramente recompensadora de qualquer brincadeira de polícia-e-bandido era o momento em que você fingia ser atingido, agarrava o coração, derrubava a pistola e despencava na terra, eles logo dispensaram com o resto do jogo – o afazer trabalhoso de escolher lados e sair andando de fininho – e refinaram o jogo até sua essência. Tornou-se uma questão de performance individual, quase uma arte. Um deles de cada vez corria dramaticamente pela crista de um morro, e em certo ponto a emboscada ocorria: uma sacudida simultânea de pistolas de brinquedo apontadas e um coro daqueles sons guturais em staccato – uma espécie de sussurro rouco “Pou! Pou!” – com o qual garotinhos simulam o barulho de tiroteio. Então o performer se interrompia, virava, pairava por um momento em agonia elegante, despencava e caia morro abaixo em um girar de braços e pernas e uma nuvem esplêndida de poeira, e finalmente se esparramava achatado no fim, um cadáver amarrotado. Quando ele se levantava e batia nas roupas os outros criticariam sua forma (“muito bom” ou “muito duro” ou “não pareceu natural”), e então seria a vez do próximo jogador. Era isto tudo que havia no jogo, mas Walter Henderson adorava aquilo. Ele era um garoto pequeno, mal coordenado, e esta era a única coisa minimamente parecida com um esporte na qual ele se distinguia. Ninguém poderia se equiparar à forma que ele se entregava na hora de arremessar o próprio corpo flácido morro abaixo, e ele se deleitava na pequenina aclamação que aquilo lhe garantia. Com o tempo outros se cansaram do jogo, depois de alguns garotos mais velhos rirem deles; Walter relutantemente se dirigiu a formas mais saudáveis de brincadeira, e pouco tempo depois ele tinha esquecido daquilo."

quarta-feira, 5 de março de 2014

Mais Delillo traduzido

Aqui uma outra parte do Falling man. É a parte final, mas só dá pra chamar de spoiler pra quem não viveu ou viu o evento de quase treze anos atrás. É outra parte que me impressionou muito, mas relendo (de novo) agora, o impacto não foi tão forte quanto da releitura da parte que postei primeiro. Como eu já fiz, e não recebi notícia de infração de direitos autorais (apesar de provavelmente ser) pela outra postagem, aqui vai minha traduçãozinha:

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A aeronave estava sob controle agora e ele sentou no banco retrátil do outro lado da parte em que se guarda a comida, vigiando. Era para ele ou manter vigília ali, fora da cabine do piloto, ou patrulhar o corredor, estilete em mãos. Ele não estava confuso, apenas recuperando o fôlego, aguardando um momento. Isto foi quando ele sentiu uma coisa na parte superior do braço, a dor aguda de uma incisão em sua pele.
Ele sentou virado para a divisória, com o banheiro atrás de si, exclusivo à primeira classe.

O ar estava espesso com o spray de pimenta que ele tinha usasdo e havia o sangue de alguém, o sangue dele, drenando pelo punho de sua camisa de manga comprida. Era o sangue dele. Ele não procurou a fonte da ferida mas viu mais sangue começando a aparecer pela manga subindo pelo ombro. Ele pensou que talvez a dor estivesse ali antes mas ele estava só agora se lembrando de senti-la. Ele não sabia onde estava o estilete.
Se outras coisas estavam normais, em seu entendimento do plano, a aeronave estava direcionada para o corredor do rio Hudson. Esta foi a frase que ele ouviu de Amir várias vezes. Não havia janela que ele poderia olhar sem sair do assento e ele não sentiu necessidade de fazer isto.

Ele estava com seu celular na função vibrar.

Tudo estava parado. Não havia sensação de voo. Ele ouvia barulho mas sentia nenhum movimento e o barulho era o tipo que se sobrepõe a tudo e parecia completamente natural, todos os motores e sistemas que se transformam no ar em si.

Esqueça o mundo. Torne-se desatento da coisa chamada mundo.

Todo o tempo perdido da vida acabou agora.

Este é seu longo desejo, morrer com seus irmãos.

Sua respiração vinha rapidamente. Seus olhos queimavam. Quando ele olhou para a esquerda, em parte, ele poderia ver um assento vazio na cabine de primeira classe, no corredor. Mais adiante, a divisória. Mas havia uma vista, havia uma cena de imaginação clara lá pelo fundo de sua cabeça.

Ele não sabia como tinha se cortado. Ele tinha sido cortado por um de seus irmãos, de que outra maneira, acidentalmente, na disputa, e ele deu boas vindas ao sangue mas não à dor, que estava se tornando difícil de suportar. Então ele pensou em algo que ele tinha há muito esquecido. Ele pensou nos garotos Shia no campo de batalha em Shatt AL Arab. Ele os viu saindo das trincheiras e redutos e correndo atravessando os lodaçais na direção das posições inimigas, ocas abertas em gritos mortais. Ele tirou força disto, vendo os garotos sendo abatidos em ondas por metralhadoras, garotos em centenas, e então milhares, brigadas suicidas, usando bandanas vermelhas ao redor de seus pescoços e chaves de plástico embaixo, para abrir a porta do paraíso.

Recite as palavras sagradas.

Puxe suas roupas apertadamente em si próprio.

Fixe o olhar.

Carregue sua alma em sua mão.

Ele acreditava que poderia ver direto dentro das torres ainda que suas costas estivessem para elas. Ele não sabia a localização da aeronave mas acreditava que conseguia ver pela parte de trás da cabeça e através do aço e alumínio da aeronave e para dentro das longas silhuetas, os contornos, as formas, as figuras se aproximando, as coisas materiais.

Os ancenstrais pios tinham puxado suas roupas apertadamente em si próprios antes da batalha. Eles eram aqueles que nomearam o caminho. Como poderia qualquer morte ser melhor.

Cada pecado de sua vida é perdoado nos segundos que chegavam.

Não há nada entre você e vida eterna nos segundos que chegavam.

Você está desejando a morte e agora está aqui nos segundos que chegavam.

Ele começou a vibrar. Ele não tinha certeza se era o mover do avião ou ele mesmo. Ele balançava no assento, dolorido. Ele ouviu sons de algum lugar na cabine. A dor estava pior agora. Ele ouviu vozes, gritos excitados da cabine ou do cockpit, ele não tinha certeza. Alguma coisa caiu da bancada na galera.

Ele apertou seu cinto de segurança.

A garrafa caiu da bancada na galera, no outro lado do corredor, e assistiu a ela rolar para este lado e para o outro, uma garrafa d’água, vazia, fazendo um arco em uma direção e rolando de volta no outro, e ele assistu a ela girar mais rápido e escorregar pelo chão um instante antes do avião acertar a torre, calor, depois combustível, depois fogo, e uma onda de explosão passou pela estrutura que mandou Keith Neudecker para fora de sua cadeira e para uma parede. Ele se viu andando para dentro de uma parede. Ele não derrubou o telefone até ele acertar a parede. O chão começou a deslizar embaixo dele e ele perdeu seu equilíbrio e escorregando pela parede até o chão.

Ele viu a cadeira quicar pelo corredor em câmera lenta. Ele pensou que viu o teto começar a ondular, erguer e ondular. Ele botou seus braços por cima de sua cabeça e sentou joelhos pra cima, rosto enfiado entre eles. Ele estava ciente de vasto movimento e outras coisas, menores, não vistas, objetos deslizando e quicando, sons que não eram uma coisa ou outra mas apenas som, uma alteração no arranjo básico de partes e elementos.

O movimento era abaixo dele e então por toda sua volta, imenso, algo inimaginável. Era a torre guinando. Ele entendeu isto agora. A torre começou um longo balançar para a esquerda e ele ergueu sua cabeça. Ele tirou a cabeça dos joelhos para ouvir. Ele tentou ficar completamente parado e tentou respirar e tentou ouvir. Lá depois da porta do escritório ele viu um homem com seus joelhos na primeira onda pálida de fumaça e poeira, uma figura profundamente concentrada, cabeça erguida, paletó desvestido pela metade, pendurado por um ombro.

Em tempo a torre parou de se inclinar. A inclinação parecia eterna e impossível e ele sentou e escutou e depois de um tempo a torre começou a lentamente deslizar de volta. Ele não sabia onde estava o telefone mas ele podia ouvir a voz do outro lado, ainda ali, em algum lugar. Ele viu o teto começar a ondular. O fedor de algo familiar estava em toda parte mas ele não sabia o que era.

Quando a torre finalmente balançou de volta para a vertical ele se empurrou para fora do chão e moveu até a porta. O teto na parte distante do hall gemeu e abriu. O estresse era audível e então ele abriu, objetos caindo, painéis e paredes de gesso. Pó de gesso encheu a área e havia vozes pelo hall. Ele perdia coisas na medida em que aconteciam. Ele sentia as coisas vindo e saindo.

O homem ainda estava lá, ajoelhado na porta do escritório oposto, pensando muito a respeito de alguma coisa, sangue aparecendo pela sua camisa. Ele era um cliente ou um advogado de consultoria e Keith o conhecia ligeiramente e eles trocaram um olhar. Impossível dizer o que significava, este olhar. Havia pessoas chamando nomes pelo hall. Ele tirou seu paletó da porta. Ele esticou a mão atrás da porta e tirou o paletó do gancho, sem saber por que ele estava fazendo isso mas não se sentindo idiota por fazê-lo, esquecendo-se de se sentir idiota.

Ele desceu pelo hall, vestindo o paletó. Havia pessoas se movendo na direção das saídas, na outra direção, movendo, tossindo, ajudando outros. Eles pisavam por cima de detritos, rostos mostrando urgência resoluta.  Este era o conhecimento em todo rosto, a distância que eles tinham de cobrir até o nível da rua. Eles falavam a ele, um ou dois, e ele balançava a cabeça de volta ou não. Eles falavam e olhavam. Ele era o cara que achava que precisava do paletó, o cara indo para a direção errada.

O fedor era combustível e ele conheceu isto agora, escorrendo dos andares acima. Ele chegou ao escritório de Rumsey no final do hall. Ele tinha que escalar para dentro do escritório. Ele escalou por cima de cadeiras e livros atirados e um arquivo tombado. Ele viu moldura descoberta, barras de treliça, onde estivera o teto. A caneca de café de Rumsey estava estilhaçada em sua mão. Ele ainda segurava um fragmento da caneca, seu dedo passando pelo anel.

Só que não parecia o Rumsey. Ele sentava em sua cadeira, cabeça para o lado. Ele tinha sido atingido por alguma coisa grande e dura quando o teto cedeu ou até antes, no primeiro espasmo. Seu rosto estava pressionado contra o ombro, algum sangue, não muito.

Keith falou com ele.

Ele agachou ao lado e tomou seu braço e olhou para o homem, falando com ele. Alguma coisa veio gotejando do canto da boca de Rumsey, feito bile. Como que é bile? Ele viu a marca em sua cabeça, um entalhe, uma marca de goiva, funda, expondo tecido cru e nervo.

O escritório era pequeno e improvisado, um cubículo enfiado em um canto, com vista limitada para o céu da manhã. Ele sentiu os mortos ali perto. Ele teve esta sensação, na poeira suspensa.

Ele assistiu ao homem respirar.  Ele estava respirando. Ele parecia alguém paralizado para o resto da vida, nascido assim, cabeça torcida em seu ombro, vivendo numa cadeira noite e dia.

Havia fogo ali em cima em algum lugar, combustível queimando, fumaça soprada para fora de um duto de ventilação, e então fumaça fora da janela, rastejando prédio abaixo.

Ele desdobrou o dedo indicador de Rumsey e retirou a caneca quebrada.

Ele se botou de pé e olhou para ele. Ele falou com ele. Ele disse a ele que ele não poderia empurrá-lo pela cadeira, rodinhas ou não, porque havia detritos por toda parte, ele falava rápido, detritos bloqueando porta e o hall, falando rapidamente para que conseguisse pensar também assim.

Coisas começaram a cair, uma coisa e depois outra, coisas sozinhas primeiro, descendo da abertura do teto, e ele tentou levantar Rumsey de sua cadeira. E então algo lá fora, passando pela janela. Algo passou pela janela, ele viu. Primeiro passou e não estava mais lá e então ele viu e teve que ficar por um momento olhando para fora, para o nada, segurando Rumsey por baixo do braço.

Ele não conseguia parar de ver aquilo, vinte pés de distância, um instante de alguma coisa de lado, passando pela janela, camiseta branca, mão erguida, caindo antes de ele conseguir ver. Detritos em cachos vinham descendo agora. Havia ecos soando pelos andares e arames estalando diante de seu rosto e pó branco por toda a parte. Ele permaneceu em pé, segurando Rumsey. A partição de vidro estilhaçou. Algo desceu e houve um barulho e o vidro arrepiou e quebrou e então a parede cedeu atrás dele.

Tomou algum tempo para que ele pudesse se empurrar para cima e para fora. Seu rosto tinha a sensação de cem incêndios pontilhados em seu rosto e era difícil respirar. Ele encontrou Rumsey na fumaça e poeira, rosto pra baixo nos cascalhos e sangrando muito. Ele tentou erguê-lo e virá-lo e percebeu que ele não conseguia usar sua mão esquerda mas conseguia virá-lo parcialmente.

Ele queria erguê-lo até seu ombro, usando seu braço para ajudar a guiar a parte superior do corpo enquanto ele agarrava pelo cinto com sua mão direita e tentava apanhar e levantar.

Ele começou a levantar, seu rosto quente com o sangue na camiseta de Rumsey, sangue e poeira. O homem pulou em sua mão. Havia um ruído em sua garganda, abrupto, meio segundo, meio suspiro, e então sangue de algum lugar, flutuando, e Keith virou para trás, mão ainda agarrando o cinto do homem. Ele esperou, tentando respirar. Ele olhou para Rumsey, que tinha caído para longe dele, parte superior do corpo frouxa, rosto quase ausente. O negócio inteiro de ser Rumsey estava em farrapos agora. Keith segurou apertando a fivela do cinto. Ele ficou ali e olhou para ele e o homem abriu os olhos e morreu.

Foi então que ele se perguntou o que que estava acontecendo aqui.



Papel voava pelo corredor, soando feito chocalhos em um vento que parecia vir de cima.

Havia mortos, indistintamente vistos, nos escritórios em ambos lados.

Ele escalou por cima de uma parede tombada e seguiu seu caminho lentamente na direção das vozes.

No vão da escadaria, no quase escuro, uma mulher carregava um pequeno triciclo apertado em seu peito, uma coisa para uma criança de três anos, guidão emoldurando suas costelas.

Eles desciam andando, milhares, e ele estava lá com eles. Ele andava em um longo sono, um degrau e depois o próximo.

Havia água correndo em algum lugar e vozes em uma distância estranha, vindo de outro vão de escadaria ou de elevador, lá fora no escuro em algum lugar.

Estava quente e tumultuado e a dor em seu rosto parecia encolher sua cabeça. Ele pensou que seus olhos e boca afundavam para dentro de sua pele.

As coisas voltavam a ele em visões nebulosas, como metade de um globo ocular olhando fixamente.  Estes eram momentos que ele perdia na medida em que aconteciam e ele tinha que parar de andar para que conseguisse parar de vê-los. Ele ficou olhando para o nada. A mulher com o triciclo, ao seu lado, falou com ele, passando.

Ele sentiu o cheiro de algo terrível e entendeu que era ele, coisas grudadas a sua pele, partículas de pó, fumaça, algum tipo de areia oleosa em sua cara e mãos misturando com a poça corpórea, feito cola, com o sangue e saliva e suor frio, era ele mesmo de que ele sentia o cheiro, e Rumsey.

O tamanho daquilo, a pura dimensão física, e ele se viu naquilo, a massa e escala, o jeito que a coisa balançava, o lento e fantasmal inclinar.

Alguém tomou seu braço e o guiou para frente por alguns degraus e então ele andou por si só, em seu sono, e por um instante ele viu de novo, passando pela janela, e desta vez ele penseou que era Rumsey. Ele confundiu aquilo com Rumsey, o homem caindo de lado, braço esticado e para cima, como que apontado para cima, tipo por que estou aqui em vez de ali.

Ele tinha de esperar às vezes, longos momentos travados, e ele olhava direto em sua frente. Quando a fila movia de novo ele andava um degrau pra baixo e depois outro. Eles conversavam com ele várias vezes, pessoas diferentes, e quando isto aconteceu ele fechava os olhos, talvez porque queria dizer que ele não precisava responder.

Havia um homem no patamar adiante, velho, pequeno,  sentado na sombra, joelhos erguidos, descansando. Algumas pessoas falavam e ele balançava a cabeça ok, ele acenando com a mão e balançando a cabeça

Havia um sapato de mulher ali perto, de ponta cabeça. Havia uma pasta de lado e o homem tinha que se inclinar para alcançá-la. Ele estendeu a mão e a empurrou com algum esforço na direção da fila que avançava.

Ele disse “eu não sei o que eu deveria fazer com isto. Ela caiu e deixou ali”

Pessoas não escutavam isto ou não retinham isto ou não queriam e moviam adiante, Keith moveu adiante, a fila começando a chegar a uma área de alguma luz.

Não parecia eterno a ele, a passagem descendo. Ele não tinha uma sensação de marcha ou ritmo. Havia uma listra de brilho na escada que ele não tinha visto antes e alguém rezando lá atrás em algum lugar da fila, em espanhol.

Um homem apareceu, movendo rapidamente, usando um capacete de segurança, e eles abriram um espaço, e depois apareceram bombeiros, em massa, e eles abriram um espaço.

Rumsey era o que estava na cadeira. Ele entedeu isto agora. Eles tinham arrumado para ele descer com a cadeira e eles iam encontrá-lo e trazê-lo para baixo, e outros.

Havia vozes em cima atrás de si, lá nas escadas, um e depois outro em quase eco, vozes em fuga, vozes em canto nos ritmos de fala natural.

Isto aqui desce.

Isto aqui desce.

Vá passando para baixo.

Ele parou de novo, segunda vez ou terceira, e pessoas empurravam ao redor dele e olhavam para ele e diziam para ele se mover. Uma mulher tomou seu braço para ajudá-lo e ele não se moveu e ela continuou

Vá passando para baixo.

Isto aqui desce.

Isto aqui desce.

A pasta desceu dando a volta pelo vão da escada, mão a mão, alguém deixou isto, alguém esqueceu isto, isto aqui desce, e ele ficou olhando direto para frente quando a pasta chegou até ele, chegando a sua mão direita pelo seu corpo para pegá-la, sem expressão, e começou a descer pela escada de novo.

Havia longas esperas e outras não tão longas e no tempo que eles eram guiados descendo ao nível térreo, embaixo do Plaza, eles se moveram passando por lojas vazias, lojas trancadas, e eles estavam correndo agora, alguns deles, com água despejando de algum lugar. Eles saíram na rua, olhando para trás, ambas torres queimando, e logo eles ouviram um alto tremor percussivo e viram fumaça descendo do topo de uma torre, crescendo para fora e para baixo, metodicamente, andar por andar, a torre caindo, a torre sul mergulhando para dentro da fumaça e eles estavam correndo de novo.

A explosão de vento mandou as pessoas para o chão. O trovoar de fumaça e cinzas veio movendo na direção deles. A luz drenou os vivos para longe, o dia claro desaparecido. Eles correram e caíram e tentaram se levantar, homens de cabeças com toalhas, mulheres cegadas por detritos, uma mulher chamando o nome de alguém. A única luz era agora vestigial, a luz daquilo que vem depois, carregado no resíduo de matéria esmagada, nas ruínas de cinza daquilo que era variado e humano, pairando no ar acima.

Ele deu um passo e depois o outro, fumaça soprando por cima dele. Ele sentiu o cascalho nas suas solas, e havia movimentação por toda parte, pessoas correndo, coisas passando voando. Ele caminhou diante da placa de Easy Park, o Especial de Café da Manhã e o Three Suits Cheap, e eles passaram correndo, perdendo sapatos e dinheiro. Ele viu uma mulher com a mão erguida, como que correndo para pegar um ônibus.

Ele passou pela fileira de caminhões de bombeiro e eles agora estavam vazios, faróis brilhando. Ele não conseguia se encontrar nas coisas que via e escutava. Dois homens correram com uma maca, alguém com o rosto pra baixo, fumaça vazando de seu cabelo e roupas. Ele assistiu a eles se mover para a distância aturdida. Era lá onde tudo estava, ao redor dele, despencando, placas de rua, pessoas, coisas que ele não conseguia nomear.


Então ele viu uma camisa descer do céu. Ele andou e olhou ela caindo, braços acenando como nada nesta vida.

domingo, 2 de março de 2014

Rascunho de tradução do primeiro capítulo do Falling Man, do Don Delillo

Comprei o livro porque estava barato, uma cópia usada numa livraria quando fui lá pra nova iorque. Os da Egan e da Ozick que eu estava lendo estavam bem chatos (The keep e The cannibal galaxy, não recomendo nenhum dos dois; ótimas escritoras, mas que pelo visto nem sempre acertam), resolvi abrir a sacola de compras e dar uma lida no primeiro parágrafo. Essas páginas de abertura (e conclusão, traduzi também o fim, vou postar depois) estão entre as melhores que já li. Este post vai dedicado para quem acha que a literatura sempre perde nas tentativas de correr atrás da realidade.

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PARTE UM
BILL LAWTON
1

Não era mais uma rua e sim um mundo, um tempo e espaço de cinzas caindo e quase noite. Ele caminhava norte atravessando escombros e lama e havia pessoas passando correndo segurando toalhas em seus rostos ou paletós por cima de suas cabeças. Eles tinham lenços pressionados contra suas bocas. Eles tinham sapatos em suas mãos, uma mulher com um sapato em cada mão, passando correndo por ele. Eles corriam e caiam, alguns deles, confusos e desajeitados, com detritos caindo ao redor deles, e algumas pessoas tomavam abrigo embaixo de carros.

O rugir estava ainda no ar, o estrondo despencante da queda. Este era o mundo agora. Fumaça e cinzas vinham rolando rua abaixo e contornando esquinas, rebentando pelas esquinas, marés sísmicas de fumaça, com papel de escritório aparecendo e sumindo, folhas padrão com pontilhado de corte, roçando, chicoteando, coisas de outro mundo na mortalha da manhã.

Ele vestia um terno e carregava uma pasta. Havia vidro em seu cabelo e rosto, cápsulas marmoreadas de sangue e luz. Ele passou por uma placa de Promoção de Café da Manhã e eles passaram correndo, policiais da cidade e seguranças correndo, mãos pressionadas contra as coronhas para manter as armas firmes.

As coisas dentro estavam distantes e imóveis, onde ele deveria estar. Aconteceu por toda parte ao redor dele, um carro meio enterrado em destroços, janelas esmagadas e barulhos saindo, vozes de rádio arranhando as ruínas. Ele viu pessoas vertendo água enquanto corriam, roupas e corpos ensopados por sistemas anti-incêndio. Havia sapatos descartados na rua, bolsas e laptops, um homem sentado na calçada tossindo sangue. Copos de papel passavam quicando estranhamente.

O mundo era isto também, figuras em janelas trezentos metros acima, caindo para dentro de espaço vazio, e o fedor de incêndio de combustível, e o rasgar estável de sirenes no ar. O barulho estava em toda parte em que corriam, som estratificado acumulando ao redor deles, e ele caminhou para longe dele e para dentro dele ao mesmo tempo.

Havia outra coisa então, fora de tudo isto, não pertencendo a isto, acima. Ele assitiu aquilo descer. Uma camisa desceu pra fora da fumaça alta, uma camisa erguida e deslizante na luz escassa e então caindo denovo, pra baixo em direção ao rio.

Eles correram e então eles pararam, alguns deles, parados ali oscilando, tentando puxar fôlego do ar queimante, e os gritos espasmódicos de incredulidade, xingamentos e berros perdidos, e o papel juntou-se no ar, contratos, currículos sendo assoprados, nacos intactos de negócios, rápidos no vento.

Ele continuou andando. Alguns que corriam haviam parado e outros desviando para ruas secundárias. Alguns caminhavam de costas, olhando para o cerne daquilo, todas aquelas vidas se contorcendo lá atrás, e coisas continuavam caindo, objetos incendiados trilhando linhas de fogo.

Ele viu duas mulheres aos prantos em sua marcha reversa, olhando através dele, em shorts de corrida, rostos em colapso.

Ele viu membros do grupo de taichi do parque ali próximo, em pé com mãos estendidas aproximadamente na altura do peito, cotovelos dobrados, como se tudo isto, eles inclusos, poderiam ser colocados em um estado de suspensão.

Alguém saiu de um restaurante e tentou passar para ele uma garrafa d’água. Era uma mulher usando uma máscara de poeira e um boné de baseball e ela tirou a garrafa e girou a tampa e empurrou-a de novo para ele. Ele desceu sua pasta ao chão para pegá-la, quase ciente de que ele não estava usando seu braço direito, que ele teve que descer a pasta antes de poder pegar a garrafa. Três vans da polícia chegaram desviando para dentro da rua e correram para o centro da cidade, sirenes soando. Ele fechou seus olhos e bebeu, sentindo a água passar para dentro de seu corpo levando poeira e fuligem junto com ela. Ela estava olhando para ele. Ela disse uma coisa que ele não escutou e devolveu a garrafa e pegou a pasta. Havia um resquício de gosto de sangue no gole d’água.

Ele começou a andar de novo. Um carrinho de supermercado estava erguido e vazio. Havia uma mulher atrás do carrinho, olhando pra ele, com fita de isolamento policial enrolada ao redor de sua cara e face, fita amarela pedindo distância que marca os limites de uma cena de crime. Os olhos dela eram ondulações finas e brancas na máscara clara e ela apertava a barra do carrinho e ficava ali em pé, olhando para dentro da fumaça.

Em tempo ele ouviu o som da segunda queda. Ele cruzou a Canal Street e começou a ver coisas, de alguma maneira, diferentemente. As coisas não pareciam carregadas nas formas normais, a rua de pedras, os prédios de ferro fundido. Havia algo criticamente ausente das coisas ao redor dele. Elas estavam inacabadas, seja lá o que isto queira dizer. Elas não eram vistas, seja lá o que isto queira dizer, janelas de lojas, plataformas de carregamento, paredes pintadas a spray. Talvez seja assim a aparência das coisas quando não há ninguém para vê-las.

Ele ouviu o som da segunda queda, ou sentiu-a no ar trêmulo, a torre norte caindo, o temor macio de vozes na distância. Era ele caindo, a torre norte.

O céu estava mais claro aqui e ele conseguia respirar com mais facilidade. Havia outros atrás dele, milhares, enchendo a distância média, uma massa em quase formação, pessoas caminhando para fora da fumaça. Ele continuou até ter de parar. Atingiu ele rapidamente, o conhecimento que ele não podia ir adiante.


Ele tentou dizer a si mesmo que ele estava vivo mas a ideia era obscura demais para se firmar. Não havia taxis ou trânsito de qualquer tipo e então uma velha caminhonete apareceu, Electrical Contractor, Long Island City, que encostou e o motorista se inclinou na direção da janela do lado do passageiro e examinou o que viu, um homem escamado em cinzas, em matéria pulverizada, e perguntou a ele para onde ele queria ir. Não foi até ele entrar na caminhonete e fechar a porta que ele entendeu para onde ele estava indo todo esse tempo.