terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Sugestão para uma tradução brasileira de Infinite Jest

A tradução "perfeita" de Infinite Jest se mostra impossível a partir do título. É uma citação de Hamlet (o pobre yorick, etc), que é uma peça sem uma "tradução padrão" em nosso meio cultural. A palavra jest se traduz dificilmente pro português: a linhagem imediata dela do inglês é jester, bobo da corte, que não tem no português correspondente em forma de verbo ou substantivo para descrever o que seria o "ato básico" do jester. A palavra brincadeira é corriqueira, dia-a-dia, demais para jest, que é uma palavra antiga. Só que não é só antiga, é antiga mas ainda está bastante presente (tanto pela palavra jester, em todos os baralhos do mundo, ou na expressão "surely you jest" que é meio que utilizada num pedantismo auto-irônico).

As palavras antigas do português para falar brincadeira, no entanto, todas tem uma sonoridade ou aparência excessivamente esquisitas (em um livro que faz do esquisito ferramenta frequentemente utilizada, e portanto não precisa de mais ainda do que já tem). Galhofa faz lembrar farofa, chiste tem uma sonoridade horrível, gracejo a palavra praticamente usa um monóculo: tudo isto daria ao livro uma aparência de rebuscamento que não é desejável (uma vez que faz do rebuscamento ferramenta frequentemente etc... é um livro complexo, é).

(a tradução portuguesa botou piada, o que a princípio eu achei horrível, mas o Galindo me disse que parece que por lá eles usam a palavra de forma diferente de nós: eles podem dizer "não vi piada nisto" para falar que não se viu graça... o que faz a coisa funcionar melhor, certamente)

A palavra graça tem subtons religiosos, que ainda que não sejam inteiramente descabidos dado o forte eixo de moralidade/ética e de certo conservadorismo esganiçado presentes no livro, e acaba por trazer tudo isto pro título, distorcendo um pouco. Alguma distorção é inevitável, claro, e acabam por acontecer justamente nos pontos-problema, caso declarado aqui neste título. Graça infinita, no entanto, parece algo inteiramente positivo, objetivo-de-vida e tudo mais, algo que colocado no contexto da questão maldição-de-midas do hedonismo realmente faz com que a solução seja ao mesmo tempo declaração-de-fracasso. Parece no fim a escolha do Galindo foi "Infinda Graça", trazendo a ambiguidade do hedonismo pro título do livro (com sua subjacente sonoridade de "e o fim da graça"): ainda que seja uma intervenção pesada por parte do tradutor, colocando a mais no título não só a religiosidade do "graça" como a armadilha do infinda e deixando a coisa bem sobrecarregada, acabo por achar que é uma escolha razoável (já que é um livro também sobre o excesso).

[edição posterior e tardia: parece que ele optou de volta pelo Graça Infinita, mais discreto. Não sou contra.]

Ainda assim, no outro dia eu acabei pensando numa outra opção que não vi sendo discutida pelos blogs e caixas de comentários e etc mundo afora. Eu pensei na possibilidade de fazer algo do tipo "Infinite jest - a brincadeira sem limites" ou "(...) - o filme mortífero".

Vários filmes com expressões em inglês meio intraduzíveis como Pulp Fiction, Crash (o do Cronenberg/Ballard), ou Highlander, acabam chegando aqui no brasil mediados pela prática bastante esteticamente questionável de colocar um subtítulo em português mercadologicamente explicativo (tempos de violência, chamando quem quer ver filme violento, estranhos prazeres, para quem quer ver filmes esquisitos, ou guerreiro imortal, aparentemente chamando o interesse de todo mundo dos anos 80). Trazer isto para o livro tem várias vantagens. O Infinite Jest é, no livro, um filme, afinal de contas (que ainda que seja de vanguarda traz como objetivo exclusivo o prazer do expectador, o que para executivos das empresas cinematográficas é o objetivo de todo filme), e o romance discute com grande frequência e profundidade a cultura de massa e de como que ela em si é uma espécie de hedonismo (arqui-inimigo e objeto de fascínio do livro); traz-se à tona com este subtítulo não só uma prática da cultura de massa brasileira, como também fica sublinhada a distância da cultura americana em relação a nossa própria realidade, o que a meu ver é algo bom de se ter no batente da porta de entrada do livro. O Infinite Jest, ainda que ele obviamente tenha várias questões que são Universalmente Relevantes, é a narração de um mundo que é extremamente americano: suas artificialidades (não só as inerentes ao ofício literário, já que é um livro em que a artificialidade juro que este é o último parênteses assim) serão ainda mais alienígenas dado nosso contexto de capitalismo mambembe, em que todo em voz alta todo mundo é mei esquerdinha e que fica xingando no twitter que o Black Friday não ter descontos de verdade, ó desgraça.

E, claro, outro ponto forte desta opção é o fato que fiquei um tempão rindo quando pensei nela.

A desvantagem clara é de que é uma escolha tradutória editorialmente (mercadologicamente) impraticável, já que poucas pessoas das poucas pessoas que vão se dispor a comprar a mercadoria Obra Prima da Literatura Norteamericana vão querer algo que remonte tão fortemente ao trash na capa e lombada de seus enfeites de estante. Já não basta a editora ter de custear uma tradução gigantesca (o tradutor é pago por laudas, afinal) e guardar todo aquele estoque encalhado (que ocupa bem mais espaço do que um livro normal), acho que seria pedir demais pedir que eles levem um prejuízo ainda maior com a empreitada. De qualquer maneira fica aí minha sugestão platônico-trash, que se não serviu de nada pelo menos me deu algum tempo de ficar-rindo-sozinho.

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