domingo, 8 de setembro de 2013

A não-unidade de uma obra literária, e de repente um novo ânimo

Nem sei se vou conseguir colocar estes raciocínios de uma forma que vá fazer muito sentido, mas lendo Falling Man do Delillo eu me dei conta de quanto realmente um livro nunca existe por si só, que ainda que o objeto seja claramente demarcado por início e fim no mundo físico, seu texto se relaciona com o leitor e com o mundo de maneira bem menos estanque.

Delillo é um dos maiores autores americanos da atualidade, e ainda que no Brasil seja publicado pela Companhia das Letras e há muito tempo, não é um cara que eu vejo as pessoas discutindo com muita frequência. Várias vezes já falei dele com as pessoas como sendo a primeira vez que eles ouviam falar do cara. Ruído Branco, sabe, grande romance, etc. (certamente uma das leituras mais impactantes da minha vida, mas um pouco disso talvez tenha sido a idade...). Falling Man é o livro dele sobre o Onze de Setembro, seis anos depois do evento. 

Algum leitor que pega este como primeiro livro do Delillo para ler pode sair com a impressão que toda a estilística típica dele (os livros todos dele são meio que todos parecidos) fosse uma construção específica para lidar com a questão do Onze de Setembro, certo exagero retórico misturado com vazio humano, paranoia tecnológica e abundância meio extravagante de conceitos e discussões semi-teóricas a respeito de assuntos variados e bizarros... A forma como todo mundo é meio que parecido, ainda que ocupem vagas variadas nas hierarquias do mundo (ficando bem longe de ser um afago democrático/demagógico). Conversando com o Vinícius Castro, chegamos à descrição de "místico-tecnológico". É um cara bem estranho e sagaz.

Alguém poderia achar que toda a tensão meio frustrante do livro (diferente da tensão meio prazerosa do thrillers comerciais) seria algo que tenha vindo do evento, quando na verdade todos os livros do delillo são meio que escritos neste espírito de paranoico-órfão, o perseguido saudoso de saber o que lhe persegue. Pouco do estilo (e não incluo nisto só a estilística) é especificidade do assunto. Não é alguém naquele momento atordoado pelo impacto do ataque, é alguém sempre atordoado pelo mundo como um todo, talvez um pouco mais diante daquele momento impressionante.

(usando um exemplo nacional, é como se alguém pegasse o jeito despedaçado (ou multi-pedaçado) do Diario da Queda para falar que foi aquela a forma de abordar o assunto difícil do livro, quando o Laub vem trabalhando desse jeito há um tempo, já)

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É triste e talvez inevitável que o leitor com o tempo vá se tornando meio insensível a sua própria atividade favorita. Vários e vários e vários livros lidos, o prazer intenso do início da vida enfiado em páginas ficcionais vai se transformando um prazer familiar, o abrir de um livro se torna em uma espécie de retorno a própria casa, e ninguém chega na casa em que se chega todos os dias fazendo acrobacias de alegria. Talvez não seja tão a toa que tanta teoria e crítica literária sejam escritas em tom de desconfiança e desencantamento, o crítico com o dedo apontado em riste para o objeto que se torna como que um réu. Talvez seja porque até o crítico/teórico tenha acumulado bagagem e carreira o bastante para ser amplamente lido, ele também passou por esse desgaste dos anos. Sinto um pouco isto quando me deparo com o triste fato de ver o quão é adequada a expressão "entusiasmo controlado" para falar de um livro que estou lendo e estou gostando bastante, que um sumiço repentino e inexplicável daquele livro do universo das coisas existentes, interrompendo minha leitura, nem me causaria tanta angústia assim. A empolgação parece coisa impossível, antiga.  A leitura do primeiro e, depois, do último capítulo do Falling Man como dissipou (momentaneamente) todo esse cansaço. 

Sabendo que é terrivelmente brega colocar a coisa dessa forma, tive mesmo a impressão de estar sendo iluminado pelo talento extraordinário dele de conseguir capturar uma coisa escrota e exaustivamente explorada na mídia e no mundo em prosa literária de deixar o leitor pasmo. Papos sem fim a respeito da impossibilidade da literatura dar conta da realidade e a mera leitura daquelas páginas traz com vivacidade todo aquele acontecimento como que no dia em que aconteceu, quando os videos de então de tão vistos e repetidos só trazem hoje o enfado. O resto do livro não é do mesmo nível (seria possível?), mas as descrições do início e do fim são inesquecíveis. É talvez meio doente, mas sempre que pensar em onze de setembro agora eu penso entre outras coisas que teve alguém que conseguiu escrever o que aconteceu, e eu sei quem foi.