domingo, 27 de janeiro de 2013

Dissertação

Imagino que exista algum outro formato de postagem que torne o texto mais legível, mas ando meio sem tempo (ou disposição) de mexer muito com isto aqui e como devo passar um tempo distante do blog (vou me afundar na escrita de meu romance) achei que talvez servisse como um bônus ou mini-até-breve.

(nem sei se as notas de pé de página vão aparecer direito, estou indo só no control c control v)

Se alguém quiser o arquivo, pode me mandar um e-mail: breno_k arroba yahoo ponto com (sem br)

- Entreguei o texto em agosto (eu acho, não lembro de datas com precisão) mas parece que demora UM ANO para a ufmg mandar o diploma e botar o texto online.

- Não tive tempo (dado o cronograma) de mandar para uma revisão profissional do texto. Se você achar algum erro de revisão, não precisa avisar, se isto algum dia sair em livro vai ter alguém sendo pago para procurar erro de digitação, de revisão, etc.

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Minha dissertação é sobre como a literatura brasileira durante a ditadura ficou viciada em denúncia ultrajada e com o fim da ditadura acabou o assunto principal e passamos duas décadas (anos 80 e 90) praticamente sem produção de qualidade. A meu ver, este engajamento literário e seu fracasso (ninguém vai dizer que a ditadura acabou por causa de um romance, ou de um filme, ou etc) foi um verdadeiro ponto de quebra na literatura brasileira, que pode ser dividida (em seu "eixo principal") como antes e depois da ditadura. Por isto  tanto autor jovem no Brasil que não se identifica com a literatura brasileira como um todo e tanto crítico velho que fala mal da produção nova por não seguir os "caminhos narrativos" já consagrados.

Existe o resumo acadêmico, formal, da coisa, mas o melhor resumo é esta citação do Sérgio Sant'Anna, do Um Romance de Geração:


“talvez não tenha havido uma época tão fértil, pelo menos quantitativamente, quanto esses quinze anos pós 64 (...) Mas por que essa fertilidade, ponto de interrogação? Não seria porque os escritores (...) teriam encontrado na ditadura um excelente ponto de referência, ponto de interrogação e parágrafo? (...) Tínhamos algo contra o que lutar, sem muito risco, e os melhores motivos, ponto. (...) a relação entre a ditadura e a literatura talvez tenha sido como um jogo de gato e rato, ponto. Sem o gato o jogo não poderia continuar, para a tristeza do rato. (...) Nós talvez passemos a ser conhecidos como os “Órfãos da Ditadura” (...) quantas pessoas eu vi pelos bares falando de Herzog como quem fala de um artista famoso (...) entre o Wladimir Herzog que foi morto numa cela do Exército e aquele que aparecia em nossos livros havia uma diferença de grau e substância, ponto. Este último era apenas o personagem que nós, os escritores, precisávamos para manter acesa a “nossa chama”, a “nossa fogueira”, o JOGO, em maiúsculas”. (1981, p. 65)


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Eis:


SUMÁRIO

Introdução–10

PRIMEIRA PARTE –Pressupostos: Um sistema, um histórico: uma herança–20
Capítulo 1 – A literatura como sistema -20
Capítulo 2 – Um histórico: Nacionalismo(o lugar e o dever do escritor) – 30
2.1 –Arcadismo: um início de consciência do lugar de fala– 35
2.2 – Romantismo: o nacionalismo protagonista– 37
2.2.1 – O Caso Machado: Instinto de Literatura.– 49
2.3 – Belle Époque - 55
2.4 – Os Modernismos - 61
Capítulo 3 – Por Que tanto Brasil?,ou a obsessão de um sistema.– 71

SEGUNDA PARTE– Ditadura e cultura– 82
Capítulo 4 – Ponto de partida – 82
4.1 – A cultura e a literatura nos anos ditatoriais – 83
4.2 – Antonio Callado – 92
Capítulo 5 – Da censura –97
Capítulo 6 –Problemáticas da resistência anti-ditadura– 114
6.1 – O “vazio cultural” e a solução mágica– 114
6.2 – Gavetas vazias e a necessidade do vilão – 118
Capítulo 7 – Dois romances, dois caminhos: A Festa e Confissões de Ralfo–140
Capítulo 8 –O ápice e fim do empenho nacionalista na literatura brasileira –175
8.1–Armadilhas do nacionalismo - 175
8.2 Consequências: literatura brasileira de ontem, literatura brasileira de hoje- 184

Conclusão - 198

Bibliografia - 205


“Achar que uma coisa é ruim, não é duvidar dela, mas afirmá-la”
Machado de Assis, em Crônica de despedida de “A Semana”, 1897


“Preciso de ti. Sem ti, como acreditar que sem ti poderia começar uma vida nova? Acreditar que sem ti poderia renascer, que só tu impedes que eu possa renascer é muito importante para mim...; és o meu fascismo!”
Bolor, romance do português Augusto Abelaira, 1968

“Antes era mais fácil – sim, porque era
Mais difícil, havia mais em jogo,
E o tempo todo se jogava à vera.
Precisamente: mais difícil, logo

Mais fácil. Porque sempre se sabia
 de que lado se estava- havia lados,
então. E a certeza de que algum dia
tudo teria um significado.

E nós seríamos os responsáveis
por dar nomes aos bois. Havia bois
a nomear, então. Coisas palpáveis.
Tudo teria solução depois.
(...)”
“Pós”, de Paulo Henriques Britto, 2012.



Introdução

Parece ser unânime a opinião de que poucos momentos da história brasileira foram tão críticos e marcantesquanto o da ditadura militar inaugurada pelo golpe de 1964. Se pensarmos no panorama contemporâneo e a influência que este sofre por conta de seu recente passado autoritário, a impressão que se tem é de que o regime militarfoi o mais importante período de nossos quase duzentos anos de país. Até hoje ele é assunto de várias discussões e polêmicas, seja a questão da extensão da amplitude da anistia, o problema dos desaparecidos políticos ou até mesmo a questão do histórico pessoal de quem era vivo na época, quem colaborou com o regime e quem se posicionou contra.
Tratando-se do mais longo período de autoritarismo explícito do nosso país, cronologicamente coincidente com a urbanização descontrolada que fez com que o Brasil deixasse de vez de ser um país rural e com o início do desenvolvimento de uma indústria cultural (em especial o surgimento e consolidação das emissoras de televisão)[1] e de uma maior movimentação ideológica da juventude, não deve surpreender o quão marcantes foram esses anos para a cultura do país como um todo, tanto para os que viveram a época quanto para muitos que sequer eram nascidos então. Para um exemplo (talvez até claro demais) de como são vívidas as impressões destas décadas recentes, basta um rápido olhar para certos momentos da última disputa presidencial, de como ambos os candidatos mostravam com orgulho seus credenciais de perseguidos pela ditadura e como alguns utilizavam o histórico guerrilheiro da candidata do PT como ponto positivo (sua foto do DOPS chegando a estampar camisas de militantes mais à esquerda) ou ponto negativo, taxando-a ou de patriota ou de terrorista/assaltante.
Como não haveria de ser diferente, dado o histórico de empenho político no campo das artes no Brasil, houve uma notável influência da conjuntura política autoritária na produção cultural daqueles anos. A literatura, longe de estar isenta de pressões desta natureza, talvez tenha sido, junto com a canção, o gênero artístico mais afetado pela realidade ditatorial vivida naquele momento. Dificilmente se encontraria algum estudo de crítica literária sobre nossa produção das décadas de 60 e 70 que não mencionasse a repressão, a forma como esta foi interiorizada (ou, às vezes, evitada) nos textos dos poetas e ficcionistas brasileiros, chegando dar a impressão de uma obrigatoriedade que o recorte de qualquer estudo daquele períodotenha como início a fatídica data de 1964: é praticamente impossível falar hoje de Ferreira Gullar, qualquer que seja o enfoque, sem mencionar que ele ingressou no Partido Comunista no dia do golpe, ou de Rubem Fonseca sem falar na censura de Feliz Ano Novo (1975). Na esmagadora maioria dos casos, a crítica vai além de mencionar brevemente e elege o autoritarismo (e seu enfrentamento) como centro de suas considerações sobre a literatura dessas décadas.
A leitura dos livros publicados na época serve de confirmação deste foco contínuo da crítica no aspecto político.Encontram-se referências à ditadura não apenas nos livros ostensivamente engajados, como Pessach: a travessia (1967), de Carlos Heitor Cony, ou toda a obra de Antonio Callado publicada nestes anos. Para citar exemplos atípicos, podemos vertrechos em que o regime militar é mencionado de forma direta em Avalovara(1973)de Osman Lins, provavelmente ponto alto do formalismo experimental do romance brasileiro (surpreendendo os que pensam o formalismo como algo distante da “vida real”), e em Três Mulheres de três Pppês(1976), de Paulo Emílio Salles Gomes, cujos contos narram “apenas” três estórias de amor. Até nas páginas de pura inventividade (e obscuridade) verbal de Catatau, de Paulo Leminski, lê-se “Maltratado que nem cavalo de exu, apanha mais que cachorro de bugre, mais bem apanhado que arara caída do pau”(LEMINSKI, 2010, p. 251, grifo meu)[2]. Já Manoel de Barros, autor que dificilmente seria encaixado entre os mais engajados de nossa literatura, em seu livro de 1966, Gramática Expositiva do Chão,abre uma brecha na sua obra de versos sobre lesmas e musgos e coloca no primeiro texto do livro a história de uma espécie de mendigo que é apreendido pela polícia pelo seu comportamento inadequado, geralmente insólito, mas que “a esse tempo lê Marx” (2007, p. 16).O que se percebe de forma nítida e repetida é uma aguda e contínua consciência por parte dos intelectuais da importância do problema autoritário vivido então.
A marca é tão forte que a presença da ditadurana produção literária da época não se restringe às obras de ambientação contemporânea, que narram o mundo e o tempo que o autor habita quando escreve: outros períodos de nossa história às vezes pareciam tingidos de um ar de atualidade quando recuperados por escritores do período. Os Sinos da Agonia(1974), de Autran Dourado, ao narrar um caso de amor do período colonial, apresenta indícios indiretos de uma consciência de que o momento atual tem suas semelhanças com toda aquela violência e autoritarismo do colonizador português. Já Galvez, Imperador do Acre(1976), grande sucesso comercial de Márcio Souza, apresenta, entre suas peripécias cômicas, algumas situações que muitos leitores da época (e certamente os de hoje ainda) sem dúvida haveriam de identificar como não tão distantes quanto a ambientação de início do século XX da trama:

"Democracia na província
Cinco tiras entraram na redação e invadiram o escritório de João Lúcio, derrubando tudo e obrigando o jornalista a ficar de mãos na cabeça. João Lúcio reagiu e esmurraram ele. Jogaram os grossos volumes de Direito na cara de João Lúcio, que começou a sangrar pelos lábios. Procuravam por um espanhol, e empurraram João Lúcio para fora. Um busto de Voltaire observava. Na oficina, uns dez homens armados de cano de ferro, empastelavam o jornal. A multidão de curiosos viu quando João Lúcio saiu, a camisa ensanguentada. João Lúcio também viu a multidão e ouviu o barulho dos canos de ferro destruindo as máquinas, numa sinfonia muito comum na política nacional. (1983, p. 60, grifo meu)

            Provavelmente seria de se esperar que o trabalho dos romancistas naquela época se encontraria cerceado e limitado pelo autoritarismo estatal e pela vigilância da censura, e que a produção sofreria uma queda em quantidade e qualidade média por conta das ameaças diretas e indiretas feitas pelo governo. Afinal, foi exatamente isto que aconteceu com as ditaduras de Salazar e de Franco em Portugal e na Espanha, países em que a cultura praticamente se congelou por conta da perseguição estatal do livre-pensamento. Curiosamente, o que aconteceu no Brasil não foi bem isto.
O crítico literário marxista Roberto Schwarz, em seu exílio parisiense de 1970 (isto é, em meio aos eventos que narra), aponta no ensaio “Cultura e Política: 1964-1969” que a forma de opressão escolhida pelo estado brasileiro foi bastante seletiva e específica, bem longe dos massacres praticamente indiscriminados e grosseiros de outras ditaduras latino-americanas. Não há, por exemplo, em nosso rico histórico de citações sobre a ditadura algo que se aproxime do que foi dito por um general argentino (ex-adido do exército no Rio, nomeado governador da província de Buenos Aires): “Primeiro vamos matar todos os subversivos. Depois vamos matar seus colaboradores, depois os simpatizantes e os indecisos. Finalmente, vamos matar os indiferentes” (GASPARI, 2004, p. 259). No Brasil, a perseguição política aos intelectuais se deu acima de tudo nos casos daqueles que fizeram ou buscaram fazeruma ponte entre seu discurso teórico/crítico a uma práxis que envolvesse o campesinato e o proletariado e que objetivasse de forma ativa mudanças na realidade social. Esta seletividade sem dúvida não impediu que um clima de medo se generalizasse por toda a camada intelectual, dado o grau de arbitrariedade inerente a um governo autoritário e a imprevisibilidade de seus mandos e desmandos, mas a perseguição não ter sido generalizada é um aspecto central em um entendimento mais equilibrado sobre a vida intelectual naquele momento: o governo tinha conhecimento de diversas figuras que eram contra o regime, mas em geral só agia diretamente contra eles se eles manifestassem suas opiniões de forma a darem entender que eram um perigo real para a estabilidade da ditadura.
Contraditoriamente, nos anos iniciais do regime militar, o que acabou ocorrendo foi um crescimento na produção intelectual, e, mais especificamente, na produção de esquerda, com Schwarz chegando a concluir seu pensamento de abertura do ensaio com a seguinte frase surpreendente: “Apesar da ditadura da direita há relativa hegemonia cultural da esquerda no país” (2001, p. 7). A constatação de um crescimento da esquerda sob hegemonia da direita é reafirmada pelo crítico em um texto de 1979, em plena (embora muito lenta) reabertura política: "Também noutras áreas estes anos de auge da direita viram firmar-se à esquerda uma dialética desdogmatizada e produtiva (marxista, semimarxista e não-marxista) (...)" (2006, p. 130). Isto também aparece em depoimento de Carlos Nelson Coutinho a Marcelo Ridenti:

“Carlos Nelson Coutinho, na editora Civilização Brasileira: (...) Tem uma coisa paradoxal que, a partir de 64, há uma enxurrada de produções marxistas importantes no Brasil: Lukács, Gramsci, Adam Schaff, Lefebvre, alguns membros da escola de Frankfurt. É um período muito rico na produção, na publicação e na difusão entre nós de autores marxistas, digamos, não-ortodoxos (...) “se cria, já em 65, um instrumento extremamente fundamental para a geração dos intelectuais nessa época que a Revista da Civilização Brasileira, que venceu vinte e dois números, de 65 a 68, quando foi obrigada a ser extinta pelo AI-5 Na RCB publicaram todos os intelectuais significativos da época. E todos eles numa posição crítica à ditadura (...) [Em depoimento de Moacyr Felix, falando da Revista] ela foi o maior sucesso possível. O Ênio tirava vinte mil exemplares, vendia todos. Tanto que Sartre, conversando com Ênio, estranhou muitíssimo, porque ele tirava três mil exemplares de sua Les Temps Modernes. Ele disse: “meu Deus, uma revista de intelectuais, de ensaios!” (RIDENTI, 2000, p.131-132).

Fernando Henrique Cardoso, em depoimento de 1973 a Zuenir Ventura, constata que “talvez o fato que chame mais atenção para nós, que tínhamos uma expectativa de que o movimento intelectual brasileiro ia estancar, é observar essa espécie de convivência entre repressão e fatos culturais (...) continua existindo uma espécie de “explosão” de livros” (2000, p. 81).
Se entendermos a literatura como parte da produção intelectual/ideológica (pensando o termo como algo que não se restringe aos meios acadêmicos) de um grupo de pessoas, e estando consciente desta “hegemonia cultural” da esquerda vigente no Brasil, não se trata de um pulo grande ver como a literatura mesmo sob a égide do autoritarismo e do trabalho cerceador da censura a seu modo conseguiu manter e até mesmo aumentar sua produtividade durante esses anos de violência política. Em retrospectiva, podemos ver que poucos períodos da literatura brasileira foram tão pujantes e produtivos quanto o boomsob o autoritarismo: muitos novos autores aparecendo, alguns de promissora qualidade, e outros já consagrados continuando suas carreiras de forma produtiva. Como rápidoexemplo desta produtividade, podemos listar algumas publicações do ano de 1975 que até hoje recebem atenção do público leitor brasileiro (acadêmico ou não). Neste ano foram lançados Confissões de Ralfo, de Sérgio Sant’Anna, Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca, Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, O ovo apunhalado, de Caio Fernando Abreu, A morte de D.J. em Paris, de Roberto Drummond, Catatau, de Paulo Leminski, Poema sujo, de Ferreira Gullar, e Museu de tudo, de João Cabral de Melo Neto. No ano seguinte, foram publicados Reflexos do Baile, de Antonio Callado, Essa Terra, de Antonio Torres, Armadilha para Lamartine, de Carlos Sussekind e A Festa, de Ivan Angelo[3].
Tematicamente, a literatura brasileira encontrou alguns novos caminhos nesse período: as elaborações de metalinguagem explícita de Sérgio Sant’Anna, por exemplo, ou o brutalismo urbano de Rubem Fonseca; o jogo de montagem de linguagens diferentes de A Festa e Zero também mostram alguma novidade, pelo menos no que diz respeito a extensão de seu uso. No entanto, como já foi dito antes, mesmo em meio a toda esta variedade, um mote parece se sobressair em relação aos outros: a questão da ditadura. Direta ou indiretamente, quase todos os trabalhos culturais do período pareciam ter de tocar no assunto do momento.O brasilianista estadunidenseMalcolm Silvermann publicou em 1995 seu estudo sobre este assunto,Protesto e o novo romance brasileiro, no qual apresenta um extenso, ainda que raso, panorama incluindo mais de cento e setenta romances publicados depois do golpe de 1964 que trabalham de uma forma ou de outra a questão ostensivamente política. Ainda assim com este número superlativo,de aparente afã exaustivo, não se pode tomar esta listagem elencada como completa, pois, por exemplo, não estão presentes os romances de HeloneidaStudart, publicados no período por uma grande editora (Nova Fronteira) e com temática explicitamente política, explicitamente ligada ao regime militar vigente.
Percebe-se nitidamente, portanto, no campo da literatura, que não houve um apagamento ou estrangulamento da produção literária, como talvez seria de se esperar dado o contexto e como de fato ocorreu com outros campos da culturais. O teatro, por exemplo, foi vigiado e cerceado com intensidade muito maior, ao ponto de que muitos defendem que até hoje sua produtividade e riqueza alcançadas antes dessa época não foram recuperadas. Parece claro que esta “sorte” da literatura seu deu pelo mesmo pragmatismo que Roberto Schwarz identificou na forma dos aparelhos opressores lidarem com os intelectuais universitários: diferente da situação atualmente vigente, o teatro era uma forma de entretenimento e de comunicação muito difundida e, afinal de contas, tratava com plateias, com grupos de pessoas juntas, com uma coletividade reunida ali naquele momento. Este não é o caso de contos, romances e poesia;a leitura é uma atividade individual e silenciosa, e a ausência deste hábito na rotina da maioria dos brasileiros que teriam condições educacionais ou financeiras de exercê-lo (para não cair na totalizadora desculpa das deficiências sociais brasileiras) tornam o meio um lugar mais “seguro” (leia-se menos perigoso para a ditadura) para se expressar os pensamentos sobre momento autoritário vivido então. É o próprio Roberto Schwarz que define a questão claramente, ainda que, escrevendo em 1970, esteja falando principalmente do contexto cultural dos anos 60, anos iniciais da ditadura:

“Firmava-se a convicção de que vivo e poético, hoje, é o combate ao capital e ao imperialismo. Daí a importância dos gêneros públicos de teatro, afiches, música popular, cinema e jornalismo, que transformavam este clima em comício e festa, enquanto a literatura propriamente dita saía do primeiro plano. Os próprios poetas sentiam assim. Num debate público recente, um acusava o outro de não ter um verso capaz de levá-lo à cadeia.” (2000, p. 36-37)

O que a princípio aparece como motivo de certo orgulho e alegria para os entusiastas da literatura e da democracia (entusiasmos nem sempre conviventes) deve na verdade ser analisado com um pouco mais de cautela, passados tantos anos do período em questão. A análise mais cautelosa pode começar com uma ênfaseno que nos restou hoje deste momento impressionante do sistema literário brasileiro. Não falo aqui do batido (embora famigerado) teste do tempo, o que sobrevive o passar das décadas e as impressões dos primeiros leitores: se ainda se fala destes títulos mais trinta e cinco anos depoise se a enorme maioria deles ainda circula em edições recentes (ainda mais considerando a relativa ineficiência do nosso mercado editorial em manter ampla a disponibilidade de alguns de nossos bens culturais), então é razoável acreditar que as obras são dotadas de alguma relevância que transcende um mero sucesso de lançamento.
O que se busca discutir aqui são as razões não imediatamente identificáveis e as consequências mais de longo prazo desta pujança produtiva para a literatura brasileira como um todo. Mais especificamente, creio que é interessante estudaras consequências desta presença contínua do tema autoritário no discurso ficcional brasileiro, por que ela se exerceu tão continuamente e qual função desempenhou no sistema literário brasileiro. A primeira impressão que se tem deste enfrentamento literário sem dúvida é positiva, um meio artístico que resiste e produz, e de uma literatura que consegue superar um marasmo inicial imposto pelo choque político: apesar de demonstrar um pouco de ceticismo em relação ao entusiasmo diante da produção dos anos 70 (já que ele adota uma ojeriza meio lukacsiana à forma alegórica, comum na produção literária da época), David Arrigucci reconhece em uma mesa-redonda feita na segunda metade dos anos 70:

“A década de 60 foi extraordinariamente fértil para o romance hispano-americano. E no Brasil foi extraordinariamente fraca, apesar das exceções mencionadas. A literatura brasileira começou a ter interesse de novo no fim da década de 60 e início da 70. (...) Eu dei uma entrevista em 74 que falava isso: o Dalton Trevisan era o melhor escritor de ficção que tínhamos naquele momento. Hoje já não se pode mais dizer isso” (1999, p. 105)

A releitura que se propõe com este estudo não tem como propósito ir à contramão da constatação desta pujança: embora não tenhamos obras à altura de Dom Casmurro ou São Bernardoou Grande Sertão: Veredas, percebe-se um grande número de obras que receberam destaque e que, na maioria dos casos, ainda hoje retém interesse de leitura para além do intuito de compor um estudo acadêmico a respeito da época. O que se busca aqui é ir além desta percepção pontual, daquele momento apenas, e tentar olhar também para os anos seguintes para ver quais frutos de continuidade esta pujança permitiu.
Uma lista como a colocada alguns parágrafos acima, de várias obras ainda relevantes publicadas em um mesmo ano, seria impossível para qualquer data que se escolha dos anos 80, ou talvez até mesmo para a década inteira. Dos autores que estrearam nesta década seguinte, só três ou quatro contam com algum apreço da crítica especializada junto com um público-leitor numericamente não ínfimo nos padrões editoriais do Brasil (penso aqui em Milton Hatoum, João Gilberto Noll e talvez CristovãoTezza[4]). O problema dessa decadência não se restringe ao aparecimento de novos autores, já que isto tornaria a análise difícil de ser feita satisfatoriamente por conta da singularidade inerente a cada autor e obra;a queda qualitativa é visível até mesmo na obra da maioria dos próprios autores que haviam se consagrado na década anterior. É João LuisLafetá quem coloca a questão de forma clara, na abertura de uma resenha de jornal do romance Balada da Infância Perdida (1982), de Antônio Torres:

"Difícil entender o que acontece, afinal de contas, com o romance brasileiro recente. Depois da explosão promissora no meio da década de 1970, passou-se o tempo e parece que as expectativas goraram. Escritores cujos primeiros livros anunciavam bons desenvolvimentos futuros apresentam agora, dez anos depois, romances que apenas repetem esquemas já conhecidos e experiências envelhecidas" (2004, p. 487)

            O propósito deste estudo é justamente entender o que aconteceu com a literatura brasileira neste período de transição da grande produtividade sob o autoritarismo para o marasmo sob a nova liberdade da redemocratização. Penso que a pujança inicial e a decepção posterior estão mais interligadas do que a princípio possa parecer, que não se trata de duas situações opostas e desconectadas, não havendo ocorrido na literatura brasileira uma reviravolta ou uma reversão. Não creio que seja uma questão de falta de talento generalizada, pois muitos dos autores que publicaram obras medíocres nos anos oitenta haviam lançado obras interessantes anteriormente, nem mesmo uma falta de inspiração inteiramente pessoal, o temido “bloqueio criativo” que todo escritor aparentemente se depara em algum momento de sua carreira: se fosse algo tão subjetivo, tão interior do processo criativo, não teria afetado o sistema literário quase inteiro da forma como afetou.
            Nenhum dos livros de crítica à literatura do período ditatorial pesquisados por mim aborda esta questão da continuidade ou a sua ausência, geralmente se restringindo a uma admiração pela coragem dos autores da época e da importância de não se esquecer nosso passado mais terrível. Nem mesmo o prefácio de Heloisa Buarque de Hollanda e Marcos Augusto Gonçalves na coletânea Anos 70 – ainda sob tempestade, escrito justamente para a reedição de 2004, apresenta qualquer “saldo” das previsões e constatações feitas no seu texto, ainda que o original abra a discussão justamente com as previsões culturais negativas de Paulo Francis do fim dos anos 60 e muito de seu conteúdo posteriormente desenvolvido seja uma refutação das colocações do jornalista.
Este é um lapso que, uma vez percebido, causa bastante estranhamento, ainda mais considerando que a interpretação mais em voga na crítica brasileira da literatura brasileira como um sistema, a de Antonio Candido, cita justamente a falta de continuidade entre Barroco e Arcadismo como justificativa de inserir Gregório de Mattos e Padre Antonio Vieira na categoria de manifestação literária, meio separados do resto da literatura. Se formos entender a literatura brasileira como algo relativamente orgânico,dotado de certa estrutura e coerência internas (ainda que não-rígidas e deterministas), e não uma reunião feita ao acaso e de forma arbitrária de alguns autores e obras, vemos a importância de entendermos os períodos de forma não-isolada, buscando ver como que um influencia o outro e por que certos rumos foram tomados.
            David Arrigucci, um dos primeiros críticos brasileiros de destaque a se dedicar à literatura hispano-americana, considera a produção dos países vizinhos ao Brasil superior à brasileira, mas acaba por ressaltar a questão da continuidade como umponto forte do sistema literário brasileiro: “eu acho que uma das fraquezas dos hispano-americanos é a produção menos sistemática. Eles não têm uma produção sistemática como a literatura brasileira. Nós temos altos e baixos, mas o fio de continuidade é muito forte” (1999, p. 107). Correta ou não a comparação com as literaturas vizinhas, fica clara uma importância dada pela crítica literária brasileira tradicional à ideia de continuidade, elemento central deste estudo.
Com esta pujança inicial e o marasmo que a acompanhou, o que parece a princípio é que o fio se rompeu, ou, para ser menos radical, pelo menos mudou de tessitura. Pois para que se entenda esta mudança brusca da produção dos anos 70, cheia de obras marcantes, para a dos anos 80, de saldo bem menos positivo, é preciso ir além do quesito da qualidade estética das narrativas (sem que com isto ele seja deixado de lado) e ver de forma mais específica quais foram os acertos e os erros destas obras literárias e autores notáveis e quais efeitos estes erros e acertos foram produzindo sobre o sistema literário brasileiro, nem sempre sendo fácil separar os desenvolvimentos literários nessas duas categorias distintas.
Creio que o estudo deste descompasso é interessante não só para alcançar um entendimento mais profundoe menos idealista do período em questão, mas também para conseguirmos um conhecimento mais generalizado e menos pontilhado/espalhado a respeito do que se faz hoje na literatura brasileira. Não se vê na maioria dos autores de hoje (produtores ou não de obras dignas de leitura e/ou estudo) as mesmas preocupações que historicamente ocupavam o tempo e as discussões dos escritores brasileiros do passado. Como um breve exemplo, pode-se tomar a questão da brasilidade, seja a crença de que possa existir uma essência de ser brasileiro, seja em qualquer tentativa por parte de um autor de se generalizar além da experiência pessoal para um coletivo nacional. Roberto Schwarz, ao fim de sua homenagem ao Formação da Literatura Brasileira de Antonio Candido, coloca estas mudanças em tons apocalípticos: “o sistema literário parece um repositório de forças em desagregação”, embora imediatamente depois complemente que “o sistema passa a funcionar, ou pode funcionar, como algo real e construtivo na medida em que é um dos espaços onde podemos sentir o que está se decompondo” (1999, p. 58). Creio que o estudo desse período-chave da produção sob ditadura, imediatamente anterior ao que atualmente vivemos, guarda parte considerável dosmotivos que explicam por que ocorreram estas mudanças bastante extensas e profundas no sistema literário brasileiro.
A forma como este estudo se estrutura é simples:além desta introdução, a dissertação se divide em duas partes, a primeira com três capítulos e a segunda com quatro capítulos. Ao fim, é feita uma conclusão com a tentativa de resumir o percurso feito.
Elaborarei no primeiro capítulo alguns dos pressupostos teóricos que norteiam meu pensamento, já que o que se busca aqui é o estudo de uma literatura de um período, isto é, um sistema literário, um coletivo, um construto abstrato. No segundo capítulo, adentrarei mais especificamente na realidade intelectual brasileira: antes de entrar em mais detalhes esta relação complexa entre literatura e ditadura, vou buscar na história da cultura e da literatura brasileiras indícios que podem mostrar o porquê da literatura sob governo ditatorial ter se desenvolvido da forma como se desenvolveu. Realizarei um breve levantamento do histórico de empenho social da literatura brasileira e da atividade intelectual como um todo, mostrando como o intelectual brasileiro é sempre pressionado (por si mesmo assim como pelo ambiente que o rodeia) a encontrar para seu ofício um uso prático e imediato, de soluções traçadas que produzam resultados claros, e de como o nacionalismo literário, tão em voga até tempos recentes na produção literária brasileira, é, sobretudo, expressão direta deste ideal e desta pressão coletivista.
Como uma espécie de medida qualitativa e específica desta situação vivida pelos autores do sistema literário brasileiro, tomarei o caso de Machado de Assis e sua posição um tanto quanto problemática dentro da literatura brasileira: ao mesmo tempo em que é amplamente reconhecido como o autor de mais alta qualidade dentro do cânone, sua figura e atuação literária frequentemente é tida como insatisfatória por muitos dos outros autores que posteriormente vieram a se consagrar no sistema literário brasileiro, uma vez que seus textos, ainda que muito bem escritos, não tratavam da sociedade brasileira da forma ostensiva que frequentemente se buscava de nossas figuras intelectuais. Sua perfeição artística não se adequava ao que se tinha como ideal literário no Brasil.
No terceiro capítulo, desenvolverei uma breve análise das causas e consequências deste contínuo empenho político e nacionalista das letras brasileiras. O intuito aqui não é de apequenar ou engrandecer a ideia do engajamento, e sim de, com a esperança de que é possível algum distanciamento na medida em que ele não é mais tão vigente, tentar enxergar com maior precisão seus contornos e suas bases.
Esta primeira parte de recuperação do passado é de grande importância para o estudo. Não só porque vejo em nosso histórico anterior muitos elementos que se repetiriam e até mesmo se reforçariam na produção cultural do período da ditadura, como também é pré-requisito estrutural da forma que busco abordar o assunto: se o foco principal aqui é a posterior continuidade ou sua inquietante ausência, nada mais coerente do que estabelecer a continuidade anterior, fazendo a conexão com os períodos anteriores de nossa literatura. O recorte analítico certamente é o dos anos ditatoriais, mas operar a partir daí uma desconexão com o que anteriormente se estabeleceu é confundir a impossibilidade de se encerrar um assunto (incontornável a qualquer estudo que tem a cultura como objeto) com a mera insuficiência de uma tentativa de abordá-lo.
Depois desta primeira parte focada narecuperação do passado, na segunda parte entrarei de vez no período sob ditadura das letras brasileiras, objeto da dissertação. O que a princípio é facilmente interpretável como uma disputa entre dois polos opostos, de um lado os ditadores opressores e de outro os heroicos escritores lutando contra eles a duras penas com seus talentos e suas obras, vai se mostrando cada vez mais cheio de sutilezas e armadilhas conforme vai se avançando nas leituras e em reflexões que buscam evitar maniqueísmos simplificadores. Não busco fazer pouco da coragem significativa que foi necessária para a publicação dessas obras em um contexto que as pessoas desapareciam arbitrariamente por serem “inconvenientes” ao poder: simplesmente me parece um ponto bastante óbvio, já estabelecido e sedimentado em grande parte do nosso pensamento sobre as dissidências culturalmente expressas no período. O que se busca é ir além da postura congratulatória, pois ela tende a (re)produzir simplificações e esconder matizes das questões complexas e por vezes incômodas que buscarei elaborar neste estudo.
Esta segunda parte se divide em quatro capítulos: o primeiro faz uma introdução da realidade cultural brasileira sob ditadura, a forma como a questão política se sobrepunha em relação a qualquer outra, estendendo-se ao nosso entendimento contemporâneo da época. Para tal, achei interessante resgatar uma palestra feita por Antonio Callado em 1974 na Inglaterra sobre a realidade literária e política latino-americana que lhe era atual. Em suas colocações há muito a se aproveitar para reconstituir o pensamento da época.
O segundo capítulo desta parte, quinto da dissertação, é dedicado à eterna questão da censura da ditadura à atuação intelectual e literária da época, em especial a crendice da obrigatoriedade da “expressão cifrada”, que teria forçado os autores a escrever por metáforas por serem impedidos de falar diretamente suas opiniões.
No sexto capítulo, entrarei na principal inquietação que motiva este estudo: a incapacidade do sistema literário brasileiro de estabelecer uma continuidade à pujança literária nos anos de autoritarismo dado o novo contexto da redemocratização. Estabelecerei a conexão que existe entre esta pujança anti-ditatorial e o marasmo sob a nova liberdade mostrando como este marasmo na verdade foi a continuidade possível daquela efervescência literária dos anos anteriores.
No sétimo capítulo, farei uma interpretação mais aprofundada de dois romances publicados no “boom” literário brasileiro, A Festa, de Ivan Angelo, e Confissões de Ralfo, de Sérgio Sant’Anna, focando a forma como é trabalhada a questão política nas duas obras, contrastando os diferentes caminhos tomados pelos autores, seja esteticamente (no interior da obra específica) ou no contexto do meio literário (por exemplo, de como a carreira de cada um deles se desdobrou no decorrer e depois da publicação destes livros).A Festa é amplamente tido com o paradigmático romance anti-ditadura de nossa literatura, recebido com quase unânimes elogios pela crítica e grande sucesso de vendagem (dentro das possibilidades mercadológicas da literatura que se pretende séria). Confissões de Ralfo, apesar de ter sido publicado na época por uma editora de renome, é um romance que hoje praticamente só é lido por entusiastas da obra de Sérgio Sant’Anna. Apesar disto, o segundo autor desenvolveu sua obra de tal maneira que hoje é frequentemente considerado um dos autores contemporâneos de maior interesse e importância, enquanto Ivan Angelo é até hoje tido principalmente como o autor de A Festa, tendo sido incapaz de trazer novos desenvolvimentos aos seus textos.
É interessante frisar que este estudo tem uma estrutura diversa da visada pela maioria dos trabalhos de interpretação da literatura brasileira: aqui, a escolha dos objetos literários a serem analisados com mais profundidade foi condicionada à capacidade destes elucidarem questões do sistema literário do qual fazem parte. O objeto central desta dissertação é a literatura brasileira como um todo durante o período ditatorial, não se trata primeiramente de um estudo sobre os romances de Ângelo e Sant’Anna em que se faz um capítulo sobre o “contexto da época quando os livros foram escritos”.
O capítulo final será uma tentativa de entender de como a cultura brasileira operou a transição de uma realidade política bastante marcante, a ditadura, para outra bem diferente, a redemocratização, tentando trazer para o cenário contemporâneo as consequências de como isto se deu levando em consideração as ideias desenvolvidas a respeito do período imediatamente anterior.Entre críticos que aderem com maior entusiasmo ao cânone literário brasileiro e suas formas consagradas, por exemplo, reclama-se com alguma frequência da ausência de empenho de nossos escritores contemporâneos, sendo relativamente recorrente a descrição de “conformistas” ou de pessoas que entregaram ao sistema econômico vigente, sem que se busque com muito afinco enxergar o porquê das obras produzirem esta impressão.
Embora o contexto político-social da atualidade certamente exerça sua influência, a influência exercida pelo período literário imediatamente anterior é de grande importância e frequentemente passa sem análise ou até mesmoa menor menção.Acredito que muitas das mudanças que se operaram na produção literária brasileira são frutos dos desenvolvimentos ocorridos durante a ditadura, este período tão marcante para nossa história e cultura.



Parte Um: Pressupostos: um sistema, um histórico: uma herança

Capítulo 1 – A literatura como sistema

Meu intuito neste estudo é de buscar um entendimento mais aprofundado a respeito da produção literária brasileira como um todo durante a ditadura militar, tentando pautar menos pelas categorias extrinsecamente políticas que até o momento têm sido dominantes em estudos da produção do período e buscando enxergar elementos mais complexos e até mesmo incômodos da corajosa resistência literária de nossos escritores. Como se trata de uma análiseque busca um entendimento a respeito de um período inteiro de nossa literatura, as obras escolhidas servindo de exemplo e de lastro analítico e específico para as conjeturas inevitavelmente generalizantes elaboradas durante o estudo, convém detalhar o que se pensa aqui por “sistema literário”.
Para atender a este objetivo de se entender a literatura brasileira de um período como um todo é necessário buscar um entendimento histórico e sistêmico da literatura: histórico, pois o recorte que escolhi é o de um período histórico, e qualquer produção de um período é feita sob a sombra dos períodos anteriores, e sistêmico, pois toda a comunicação humana, artística ou não, é influenciada em sua produção e sua recepção pelo que lhe é contemporâneo e por aquilo que é historicamente consagrado (no caso, o cânone literário). Ainda que os atos da produção e da fruição literária sejam individuais e até mesmo solitários, eles se condicionam fortemente (embora não mecanicamente) ao contexto histórico, cultural e político em que são realizados. Trata-se aqui, portanto, de um estudo que lança luz no que há de coletivo no fazer literário e busca analisá-lo neste coletivo, no escrever e ler de qualquer obra literária em relação às outras, feitas pelos escritores de gerações anteriores ou da geração atual.
Para a elaboração deste estudo, por se tratar de um objeto de estudo bastante abstrato, o sistema literário brasileiro, que, diferente de uma obra literária, não é possível de se manter uma referência pontual e inequívoca, é produtivo explicitar antes algumas das categorias que servem de fundamento para os desenvolvimentos críticos futuros, tanto no que diz respeito o que se entende por sistema literário quanto o que se enxerga como o lugar da arte na sociedade moderna.Por mais que se agrupe tudo em um único substantivo caracterizado (a “literatura brasileira”), é preciso manter em mente a composição complexa deste objeto, que se delineia pelo agrupamento ora relativamente espontâneo ora explicitamente motivado de diferentes elementos que ao mesmo tempo em que se incorporam ao sistema, vão modificando este mesmo sistema a partir de sua inclusão e se modificando a partir do momento em que são vistos como parte de um todo maior.
A expressão “sistema literário” tem seu uso consagrado pelo estudo de Antonio Candido no clássico Formação da Literatura Brasileira. Em sua visão, a literatura “para se configurar plenamente como sistema articulado, ela [depende] da existência do triângulo “autor-obra-público”, em interação dinâmica e de uma certa continuidade da tradição” (CANDIDO, 2006, p. 18-19). O grande mérito desta visão é(por meio da inserção da categoria do “público”) o de tentar enxergar a literatura como algo integrado em seu contexto em vez de um produto de gênio inquestionável que deixa restar aos reles mortais apenas a ambição de talvez alcançar a excelência inspirada pelas musas.Há sem dúvida muito acerto em seu intuito de buscar um equilíbrio entre o histórico e o estético, mas o aproveitamento em seu estudo não deve ser automático e desprovido de desenvolvimentos que são necessários para o estudo de um objeto e um tempo diferentes: como pensar, por exemplo, que o sistema se constitui contemporaneamente de um triângulo autor-obra-público em um mundo midiático, de grandes conglomerados editoriais e de um mundo acadêmico e universitário plenamente constituído? Juntar essas forças bastante divergentes (a busca do lucro pelas editoras e a busca de status nas academias) na única categoria de “público” parece exagerar na simplificação para adequar a um esquema prévio, constituído para lidar com outro objeto... O intuito aqui não é de superar ou de substituir a concepção de Candido, e sim de elaborar o conceito de sistema literário na medida em que esses aprofundamentos são entendidos como necessários para lidar com o difícil objeto que é a literatura.
É importante ressaltar que o principal afã de Candido é crítico e interpretativo, e não teórico, e seu recorte e método de estudo, que se permite escrever um capítulo ou seção para cada figura cultural tida como relevante do período que enfoca, é fundamentalmente diferente dos utilizadosnesta dissertação. A própria expressão “sistema literário” não é usada com grande frequência em seu estudo; preferindo que a imagem do todo seja composta aos poucos pelo leitor de seu livro por meio do acúmulo das interpretações, com as sínteses pontuando esporadicamente as leituras dos poemas e romances. O próprio crítico expressa certo desapontamento que seus breves preâmbulos de teoria (que ele mesmo qualifica de “dispensáveis” para alguns leitores) receberam mais atenção que suas interpretações das obras.
Como já deve ser bastante perceptível até agora, a expressão “sistema literário” é bastante recorrente neste estudo, e esta tentativa trabalhar continuamente a literatura como um todo requer uma elaboração de seus pressupostos mais detalhada do que a que é feita por Antonio Candido. Sem isto, é possível que se passe a equivocada impressão de que se fala de uma unidade dotada de perfeita lisura e coesão, apagando a multiplicidade que lhe é inerente: melhor que dizer que a literatura brasileira é “uma coisa” é dizer que ela é o nome dado ao somatório de “muitas coisas”, às vezes dissonantes entre si. Ainda que seja possível delinear constantes que atuam de forma decisiva (ainda que desigual e não-homogênea) no sistema em sua produção e recepção, que no caso do objeto deste estudo podem ser resumidas no interesse pela política e pela situação lastimosa do país naquele momento, é importante manter em mente o perigo contínuo de armadilhas simplificadoras que buscam encaixar a realidade aos seus esquemas fáceis no lugar de buscar um entendimento matizado, que não busque atalhos a conclusões totalizantes.
Abrindo a questão de forma simples e genérica, ainda que abstrata ao ponto da obviedade, um sistema é um conjunto de elementos que se relacionam entre si de variadas maneiras. No caso da literatura, formam-se conexões de aceitação e aproveitamento, de rejeição/negação e até de influência inicialmente despercebida, formando um todo heterogêneo e desigual (mas ainda assim um único todo, por mais conflituoso que possa ser, uma vez que não se fala em literaturas brasileiras), em eterna mudança acompanhando direta e indiretamente a eterna mudança do contexto social que o circunda.Escritores escrevem e são lidos ao lado de (e em vez de) outros escritores e obras, quer eles desejem isto ou não fazerem parte desta rede de conexões.Até mesmo uma tentativa de rejeição deste sistema no qual se está inserido nada mais é do que uma postura diante (e dentro) deste mesmo sistema: tratar-se-ia de um grande “Não” colocado antes de tudo que a princípio seria esperado daquela obra e daquele participante do sistema. Quer queira ou não, no entendimento corrente do que se constitui “literatura”, um escritor é sempre acompanhado de seus contemporâneos, de seus conterrâneos e de outros autores que partilham de seus interesses estéticos.
Por exemplo, Guimarães Rosa é, foi, e provavelmente sempre será lido ao lado (ou acima) da nossa tradição regionalista brasileira, como superação, distorção (para quem não gostasse dos “neologismos pretensiosos”) ou até mesmo como “mais um exemplo de”.É o elemento de sua obra (entre muitos outros diferentes) que o sistema literário conseguiu identificar como mais “familiar” à sua tradição, ainda que esta identificação feita de forma menos inteligente seja capaz de produzir distorções na percepção da obra como um todo: como pensar de forma interessante o pacto demoníaco em Grande Sertão: Veredas se o leitor/crítico optar por reduzi-lo à categoria de mera superstição caipira? Mantendo-se dentro da mesma categoria do regionalismo, podemos pegar o exemplo mais recente de Milton Hatoum e a forma como seus livros são frequentemente vistos como a “exploração” (no sentido de expedição, descobrimento) literária da “região inexplorada pela literatura brasileira”, o preenchimento de uma lacuna que esta visão simples enxergava na literatura brasileira. Em sua forma mais mecânica, a visão reduz inteiramente a obra a sua ambientação e toda sua complexidade a um só elemento.
É fácil concluir a partir destes exemplos e de vários outros facilmente conjuráveis que o sistema seria uma força exclusivamente negativa e de que o bom leitor (e ainda mais o bom crítico) faria bem em se despir de sua influência para ler “livremente” as obras, sem as categorias engessadoras e embotadoras de sensibilidade que o sistema impõe aos seus autores. Trata-se de uma interpretação equivocada, pois é baseada em um idealismo impossível de se concretizar até mesmo minimamente: qualquer agrupamento de obras artísticas (e até mesmo de obras não-artísticas), quaisquer que sejam suas categorias de seleção, há de criar de forma “espontânea” um sistema, tão artificial quanto qualquer outro possível, e esse sistema há de exercer sua influência na escrita e na leitura dos livros. Até o leitor idealista e defensor do indivíduo contra os males da coletivização há de concordar que a própria qualificação de um conjunto de textos sob o rótulo de Literatura (rótulo um tanto problemático e de definição difícil, como qualquer estudioso do assunto pode atestar) não deixa de ser em si a junção de várias obras díspares em um bloco e, assim portanto,não deixa de ser a constituição de um sistema.
Ainda que o sistema literário torne muitos propensos a cometer desleituras ou identificações excessivamente rápidas e rasas com o já estabelecido, é frequentemente a existência desse sistema que propicia a aparição de novas obras, pois em geral é o que já foi feito que serve de base e inspiração aos escritores para trabalhos futuros. O jovem escritor que tem apenas um autor-referênciaestá fadado a ser apenas uma cópia (sempre insatisfatória) do autor que tanto lhe inspira: para poder fazer uma contribuição artística de forma produtiva, é preciso ter como referência várias obras, de vários autores; é preciso, portanto, ter de uma forma ou de outra o sistema da Literatura como referência. Diante da dificuldade ou impossibilidade de se definir no abstrato o que é Literatura, só é possível ao jovem artista criar (ou querer criar) mais Literatura expondo-se ao que se qualificou anteriormente de Literatura, e o conjunto daquilo que se qualificou de Literatura, ainda que impossível de se apreender na totalidade, é o sistema literário.
NiklasLuhmann, teórico de sistemas, aproveita a colocação de Humberto Maturana que diz que os elementos em um sistema artístico se relacionam de forma “autopoiética”, isto é, que “tais sistemas produzem os elementos de que consistem a partir dos elementos de que consistem. Portanto, trata-se de sistemas auto-referenciais fechados (...) as unidades do sistema adquirem a sua unidade pelo próprio sistema” (LUHMANN, 1997, p. 241). Para colocar em termos mais específicos da literatura: livros são produzidos a partir de outros livros que, por sua vez, são produzidos a partir de livros anteriores, e assim adiante. Não se trata de cópia ou de repetição, ainda mais se tratando do mundo pós-romântico em que aquilo que é visto como originalidade é mais valorizado do que a capacidade de se aderir a modelos prévios. Cria-se aí uma espécie de paradoxo:Luhmann diz que “a obra de arte é simultaneamente, condição e impedimento para a autopoiese da arte (...) a obra genial traduz-se pela descontinuidade (...) [mas] o que precisa ser novo não tem futuro pela simples razão que não pode permanecer novo” (1997, p. 246).
Nenhum estudioso hoje defenderiaum retorno ao pensamento romântico do isolamento ou a “pureza” da atividade artística, afinal “a obra de arte é atingida em sua expressão central na articulação de forma e contexto” (1997, p. 249), mas modernamente ela decerto criou uma espécie de autonomia ou “pequena independência”, se compararmos com outras atividades humanasou os outros lugares sociais que atividade artística ocupou em outros períodos históricos. Despida de sua função renascentista/aristocrática de destacar as camadas socialmente mais elevadas e desta forma destituída da forma de financiamento do mecenato, à arte restou apenas uma espécie de trabalhar individual, na medida em que trabalho discursivo contextualizado pode ser individual. Sem a obrigação de tratar temas religiosos ou de embelezar a aristocracia, isto é, perdida sua conexão direta (e praticamente obrigatória) com as camadas mais elevadas da sociedade, não conseguiu estabelecer conexão similar com nenhuma outra camada, restando a cada artista trabalhar com perturbadora liberdade e falta de lugar definido.
Pode-se pensar neste antigo lugar definido e restrito tanto no âmbito da criação quanto da recepção.Mantendo-se dentro do campo da literatura, basta lembrar que a alfabetização se tornou algo obrigatório e universal (ou pelo menos que deveria ser) há bem menos tempo do que circulam livros tidos como Clássicos.  Olhando edições antigas (mas não tão antigas) de Lusíadas, por exemplo, pode-se verificar que, no intuito de se divulgar amplamente a gloriosa literatura portuguesa para todos os falantes do idioma e atingir os futuros portugueses e lusófonos o mais cedo possível, removeu-se de trechos de natureza sexual para que se possa ensinar o glorioso poema lusitano às crianças sem que se comprometa sua preciosa inocência. Camões decerto não teria imaginado tal destinação a sua poesia, ainda mais considerando que sua época não tinha constituído a ideologia de “proteção” das mentes das crianças. Luhmann afirma que “em torno de 1700, é ponto pacífico que artistas interessam-se por um público artisticamente experiente (...) admiração simples não é suficiente, é preciso que seja admiração competente” (1997, p.251). Ainda que seja possível alegar que a arte produzida durante e depois do modernismo e influenciada pelos vanguardismos produza este mesmo efeito elitista, o de isolar o discurso artístico para o usufruto exclusivo de iniciados, o simples fato de esta alegação ser passível feita em tom de queixa ou de constatação de um problema demonstra que historicamente houve um significativodeslocamento popularizador (ou universalizante)do lugar deste discurso dentro da cultura ocidental.
Apesar desta moderna ausência de lugar pré-determinado que a princípio conferiria plena liberdade ao artista, ainda se fecha ao redor das obras artísticas um sistema, ainda que este sistema em si não seja fechado e seja passível de mudanças (mudanças inclusive passíveis de serem originadas das próprias obras que nele se inserem).  Obras anteriores e contemporâneas simultaneamente mantêm e mudam o padrão vigente geralmente de forma implícita (a não ser em caso de manifestos estéticos ou obras excessivamente metalinguísticas), lenta/gradual e desigual (por não afetar a todos os leitores ao mesmo tempo). Desta maneira, todo sistema artísticoinevitavelmente cria expectativas diante do leitor, expectativas que influenciam decisivamente qualquer recepção de qualquer tipo de comunicação, em especial as de pretensão artística. Modernamente, estas expectativas para uma obra de arte “séria” incluiriam provavelmente a ausência de fechamento perfeito ou de uma “moral da história” excessivamente delineada, assim como uma fuga de chaves maniqueístas de interpretação e de um encaixe perfeito com o senso-comum, buscando evitar os clichês. Por outro lado, durante o neoclassicismo o que hoje se aponta como defeito era obrigação do poeta, que deveria demonstrar seu conhecimento de figuras de expressão consagradas ao utilizá-las mais uma vez para expressar o que tinha em mente. Esta mudança ocorrida dentro do sistema artístico, portanto, não foi nada menos do que uma inversão, uma mudança total: o que era bom passou a ser ruim, e vice-versa.
Estas mudanças podem ocorrer, como já foi dito, pelo aparecimento de novas obras de arte que se mostram interessantes/relevantes apesar de não combinarem inteiramente com o sistema existente, mas também ocorrem por mudanças sociais que alteram modificam as percepções, as ideologias e, consequentemente, a subjetividade das pessoas. Tais alterações de ideologia, por sua vez, possivelmente inspiram obras de arte diferentes: trata-se de um processo claramente dialético e complexo e infinitamente incompleto. A autopoiese, a característica de o sistema(re)produzir a si mesmo, não deve ser entendida como um isolamento ou uma auto-suficiência que a coloque acima ou a parte da sociedade , pois “o sistema artístico não lida com a própria autopoiese de forma arbitrária, mas no contexto de sua ambiência social” (1997, p.256).
Para tratar esta questão do sistema comunicativo, Luiz Costa Lima aproveita da obra do antropólogo americano ErvingGoffmann a ideia de frame, ou moldura, cuja aplicação chega a abranger praticamente toda a atividade humana:

“praticamente cada situação interacional impõe a adoção de uma moldura que o grupo assume como a adequada Não uso meu corpo e não emprego a linguagem da mesma maneira em uma cerimônia civil ou em uma cerimônia religiosa, não me comporto na rua como me conduzo ao assistir a um jogo de futebol, nem lido com meus familiares como faço com uma roda de amigos, em um bar etc. etc. A província finita do cotidiano abriga uma pletora de subestilos. (...) A moldura é formada por um conjunto de expectativas que se configura na presença de uma certa interação. Essas expectativas abrangem a conduta do agente e o que se aguarda de seu parceiro. Pelo frame, estabelece-se uma percepção seletiva” (LIMA, 2006, p.  26)
           
            Neste sentido, não há separação real entre atos verbais e atos de outra natureza, estão todos incluídos nesta natureza de interação entre entes separados e mediação por expectativas de produção e recepção. Ainda que separemos atos por situações e diferentes molduras, é preciso manter em mente que estas são dialeticamente estabelecidas e que há espaço para modificação e até mesmo mistura, dentro de seus limites: “a propriedade dos frames não impede sua transitividade, muitas vezes necessária (...) assim como é possível transcrever uma peça musical noutra clave, assim é possível a [transitividade]” (2006, p. 27).
            Um sistema, portanto, não é um apanhado de obras reunidas ao acaso, de forma aleatória, e não se trata de um rótulo colocado a posterioripelos críticos na totalidade dos textos escritos ou eleitos por eles como dignos de leitura: ele age por dentro, continuamente, afetando e sendo afetado pelo que vai aparecendo dentro de si. É dentro deste pensamento que busco elaborar minhas ideias sobre a literatura do Brasil ditatorial. Para tratar da literatura de um período como um todo é preciso ter em mente que se trata de um objeto mais escorregadio do que a escolha de apenas um livro ou um autor para analisar, e também explicitar que as considerações que serão tecidas aqui serão necessariamente generalizantes; exceções estão propensas a aparecer, e serão mencionadas na medida do meu conhecimento e do meu julgamento de que é relevante mencionar. A produção literária se realiza diante de uma percepção individual de uma realidade humana que, em graus variáveis, é compartilhada das mais diversas formas, uma vez que o ato literário é, inequivocamente, um ato comunicativo. Por mais que uma teleologia da literatura, em que se buscaria uma finalidade última para o ato literário, em sua expressão mais enfática é fruto mais da vontade do intérprete do que algo que se faz aflorar naturalmente do objeto (a categoria do natural sendo sempre de dificultosa aplicação quando se discute discursos), não é exagero homogeneizante afirmar que tendem a surgir, com alguma frequência, pontos que aparecem reiteradamente em diferentes obras de determinado período em um sistema, indicando uma ou outra preocupação comum da camada artística de uma determinada época ou determinado lugar. Ocorrem, também, influências de épocas a outras épocas e de lugares para outros lugares, dando a ver uma conexão entre períodos e sistemas diferentes, mas é um erro exagerar a força destas conexões e acreditar que o sistema se desenvolve de forma a ditar de forma direta as manifestações que, na verdade, compõem o sistema e não são determinadas em sua inteireza por ele. Por mais que se encontrem constantes na produção e na consagração de algumas produções em detrimento de outras, é preciso manter em mente que a influência do sistema não se dá de forma mecânica, uma vez que sua inevitável vagueza e seus conflitos internos possibilitam certa diversidade. Diversidade, claro, que acaba por se encaixar dentro do sistema em reedições e esquecimentos, recuperações e reputações antes consagradas que podem entrar em declínio.
            É obviamente impossível ler toda a produção literária do período que estou abarcando no tempo que me é dado para escrever esta dissertação, ainda que eu dispusesse da lista de todos os livros publicados no período e todos eles estivessem disponíveis.Mesmo que eu recebesse tempo o bastante, a superficialidade do livro de Malcolm Silvermann é um atestado da improdutividade de uma postura de tal forma quantitativa, impressionante apenas pelo número de títulos lidos e descritos em vez da capacidade de conjugar seus conteúdos em interpretações coesas e relevantes. Tomar um objetivo como este seria ignorar um elemento inescapável ao estudo e até ao mero usufruto da literatura: a de que se trata de um campo inequivocamente hierarquizado. Diferente de uma hierarquia burocrática ou autoritária, as posições entre seus componentes é objeto de contínua discussão (quem seriam os grandes escritores de um sistema, quais escritores seriam excessiva ou insuficientemente estimados, etc.), mas ainda existe a inescapável relação de superioridade e inferioridade entre autores tidos como melhores e piores.
Creio que a concepção que busco desenvolver aqui de sistema literário é capaz de ir além da noção que simplesmente iguala literatura a cânone, pois este é constituído a posteriori e suas categorias rígidas (como “o que sobreviveu o teste do tempo”) não dão espaço a uma continuidade do sistema, já que qualquer produção contemporânea fica necessariamente incapaz de participar destas categorias e um leitor que se pauta exclusivamente pelo canonizado é incapaz de contribuir para seu acréscimo.
A postura do leitor que se encaminha para um Clássico difere significativamente da do leitor que “se arrisca” em uma obra contemporânea: ainda que o leitor não sinta prazer na leitura de um clássico (apesar de toda a pressão de se sempre gostar dos clássicos na busca de se mostrar sempre detentorde um gosto refinado e culto), a função de “preenchimento de uma lacuna” na formação intelectual sempre será cumprida. Ítalo Calvino expressa com um humor fino esta questão: “Os clássicossão aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer: “Estou relendo...” e nunca “Estou lendo...”” (2006, p. 9). Por sua vez, a leitura desprazerosa de uma obra contemporânea servirá no máximo para se negar uma reputação na ascendente, ou, como frequentemente se tem a impressão, servirá para o leitor se sentir superior ao autor e de todos os elogiadores daquele livro que não lhe agradou.A leitura prazerosa de uma obra contemporânea em compensação traz consigo a alegria de uma descoberta que não faz parte da leitura de um clássico, uma vez que o clássico já tem a reputação de excelência e a constatação da qualidade serviria apenas de confirmação como correto o um julgamento prévio feito muitas vezes e muitos anos antes.
Ainda que seja possível considerar (como eu de fato considero) livros como Reflexos do Baile, A Festa e Zero como clássicos da literatura brasileira, passados trinta e cinco anos de sua publicação (dificilmente se contestaria nos anos de 1940 a posição de Dom Casmurro como clássico de nossa literatura), é importante ter em mente no estudo de um período o fato de que toda aquela produção era lida inicialmente (como toda produção) como lançamento ou novidade, textos que não tinham naquela época o peso de história e de “sobrevida” que possuem hoje. O crítico que hoje escreve contra estes livros comete uma ousadia (louvável ou não, dependendo de seus próprios méritos analíticos); o crítico daquela época que expressasse seu desgosto por estes livros certamente não seria visto da mesma forma como o de hoje. O engrandecimento de um livro como marco cultural não deixa de ser, assim, uma distorção significativa do que aquele objeto representou no meio cultural no momento em que surgiu, e o estudo de um período da cultura deve levar em consideração que tudo aquilo que hoje é frequentemente visto como monumentos eternos da cultura universal a princípio convivia lado a lado com livros inteiramente esquecidos, sem muita distinção nas estantes das livrarias, das bibliotecas e dos leitores da produção contemporânea.
Entendendo a literatura não um panteão de gênios inatingíveis, mas como uma atividade social em que autores, leitores e editores são parte constituintes e atuantes, fica implícito que fazem parte do sistema não apenas as grandes obras como também as obras de valor mediano e baixo. A prosa brasileira do século XIX, portanto, não é feita apenas de José de Alencar e Machado de Assis (e ainda haveria quem reduzisse tudo ao segundo autor), mas também a autores reconhecidamente menores e até mesmo os hoje inteiramente esquecidos. Deixa-se de entender a palavra Literatura como uma grandeza e sim como um conjunto de características específicas que vão além do quesito do sucesso estético: existe, desta forma, literatura ruim, que é tão literatura quanto a boa e a grande literatura. Definir literatura pela qualidade da obra (se ela é boa, é literatura, caso contrário não seria literatura) é submeter ontologicamente a categoria da Literatura à transitoriedade do gosto pessoal, abalando-se os alicerces do discurso toda vez que um crítico de reputação expressa insatisfação com alguma obra cujas qualidades são posteriormente reconhecidas.
Não se trata aqui, ao operar a inclusão e o reconhecimento das obras menores como Literatura e não como “tentativas de literatura” ou “pseudo literatura”, de se desfazer da categoria qualitativa num vale-tudo “democrático”, pois estas são incluídas no sistema comoobras menores, e sua inferioridade fica marcada na sua forma de atuação no sistema. A ideia do sistema como sendo composto de elementos que se influenciam mutuamente possibilita que existam elementos que influenciam mais e outros que influenciam menos. O campo da cultura sempre foi algo que facilmente pode se qualificar elitista, pois sempre há os que podem mais que outros: sempre foi e, salvo uma mudança tão radical que provavelmente teria de se repensar o nome dado à atividade, sempre será assim.Cabe ao crítico explicitar seus critérios e motivar suas avaliações em busca de uma (utópica, sim, mas importante de se ter como meta) espécie de meritocracia.
Neste estudo da literatura brasileira do período da ditadura conto com um número surpreendente de livros notáveis, e isto unido ao marasmo da época seguinte é o motivador da escolha deste objeto: por que um sistema dotado de surpreendente coesão como o nosso passou por esta descontinuidade tão impressionante?Antes de adentrar com mais profundidade e detalhamento no período e na produção em questão, creio que é preciso primeiro uma investigação histórica no que se constituiu a literatura brasileira desde seu princípio como sistema, não por uma obrigação genérica de contextualização e de estabelecer uma continuidade, mas porque elementos específicos e fundadores de nosso passado literário mais antigo detêm grande poder esclarecedor para o entendimento de algumas perguntas (e, esperançosamente, algumas respostas) importantes do período da produção cultural durante a ditadura militar.





Capítulo 2- Um histórico: nacionalismo (o lugar e dever do escritor)

Vale ressaltar que, para além das exigências teóricas e específicas do objeto deste estudo, os elementos histórico e sistêmico são particularmente marcantes na literatura brasileira como um todo, sendo preciso levá-los em consideração em quase qualquer estudo que tenha como objeto os romances, contos e poemas escritos no Brasil.É possível afirmar sem correr grande risco que a literatura brasileira é uma tradição de raízes sólidas e profundas em nossa cultura intelectual e artística: o intelectual que elogia a beleza de nossa paisagem natural, por exemplo, tem uma forte tendência de passar pelas imagens consagradas de nosso romantismo (haveria algo mais cansado do que paródias da canção do exílio?); explanações de nossos problemas sociais que buscam mostrar como eles são antigos estão como que naturalmente propensos a citar os romances de denúncia dos anos 30; a invectiva contra a linguagem pedante do bacharelismotem quase como obrigatória a citação dos modernistas de 22, e assim adiante.
Tão profundo é este enraizamento de nossa literatura que, historicamente, esta escorregadia forma textual exerceu uma função substitutiva ou compensatória em relação aos outros discursos intelectuais mais precariamente estabelecidos no Brasil. Em seu ensaio escrito nos anos 50 “Literatura e Cultura de 1900 a 1945”, Antonio Candido afirma:

“As melhores expressões do pensamento e da sensibilidade têm quase sempre assumido, no Brasil, forma literária (...) Diferentemente do que sucede em outros países, a literatura tem sido aqui, mais do que a filosofia e as ciências humanas, o fenômeno central da vida do espírito. (...) O primeiro livro propriamente sociológico, no sentido estrito da palavra, só veio aparecer entre nós em 1939 (...) Antes, de Euclides da Cunha a Gilberto Freyre, a sociologia aparecia mais como “ponto de vista” do que como pesquisa objetiva da realidade presente (...) ante a impossibilidade de formar aqui pesquisadores, técnicos, filósofos, [a literatura] preencheu a seu modo a lacuna, criando mitos e padrões que serviram para orientar e dar forma ao pensamento” (2010, p. 137-139).


A produção literária tem sido pautada por diversas constantes que apareciam e reapareciam em diferentes obras e diferentes momentos. Destas constantes, podemos citar temas, estilos e até formas recorrentes: romances brasileiros tendem as ser breves e, a partir do século vinte, se vê com frequência o uso da ironia, fruto provável da consagração de Machado de Assis como maior escritor brasileiro.Claro que a constatação disto não se deve confundir com uma afirmação taxativa de que estas constantes são presença obrigatória, ainda mais considerando que estas constantes sofrem a influência do passar do tempo ou com o pertencimento individual daquele autor ou obra a esta ou aquela ideologia estética. A relativa escassez de romances brasileiros que utilizam do fluxo de consciência, por exemplo, não impede a escritura de novos romances neste estilo, embora às vezes sirva de empecilho para a apreciação deste estilo por parte do público leitor (ou até mesmo por parte dos editores) de literatura brasileira.
Um exemplo de uma constante de grande peso e relevância é o que pode ser chamado de uma “atmosfera” ou um tipo de “pano de fundo” de muita da atividade intelectual brasileira, literatura inclusa:a consciência aguda de seu local de fala,tanto sua precariedade material e de lugar social, em comparação com os grandes centros culturais (a Europa, no século XIX, e também os Estados Unidos, no século XX e XXI), quanto, mais recentemente, seu privilégio, o de exercer atividade intelectual em um país pobre e de desigualdades gigantescas (uns escrevem e analisam sonetos, enquanto outros são reduzidos ao analfabetismo funcional pela educação ineficiente e desinteressada).A questão é resumida com grande concisão por Marcelo Ridenti, aproveitando as colocações de Marshall Berman:

“Marshall Berman chamou de cisão fáustica do intelectual em países subdesenvolvidos (...) O personagem é existencialmente dilacerado pela consciência de ser portador de privilégios de uma cultura de vanguarda numa sociedade atrasada, cindido pela tensão entre a modernidade e o subdesenvolvimento. Surgiria, assim, uma espécie de identidade subdesenvolvida”, típica do romantismo (Berman, 1986, 44). Os dilemas fáusticos dos intelectuais também aparecem, especialmente no pós-1964,em obras de vários campos artísticos, por exemplo em filmes como O desafio, de Paulo César Saraceni, e Terra em Transe, de Glauber Rocha; em romances como Pessach, a travessia, de Cony, e Quarup, de Callado” (RIDENTI, 2000, p. 175)

A atuação do intelectual neste contexto, portanto, fica marcada de forma contraditória e indelével, nas ausências tanto de lugar definido e de recursos contínuos em uma sociedade precariamente constituída quanto na (possível ou suposta) importância, que seu trabalho haveria de encontrar soluções para enormes problemas que afligem a sociedade. Esta constante exercerá sua influência considerável durante os anos da ditadura, em que o estudante, o acadêmico, o ativista, o jornalista e, mais importante para este estudo, o escritor frequentemente entenderão suas funções como cruciais para o enfrentamento do sistema autoritário e opressor.
Esta consciência do lugar de fala inicialmente se desenvolveu como nacionalismo, e não deve ser novidade a nenhum estudioso da história da literatura brasileira que o nacionalismo é (ou pelo menos historicamente foi)como uma pedra de fundação na atividade e no pensamento dos escritores brasileiros: a escrita aqui parecia incontornavelmente condicionada por questões relacionadas de forma direta ao Brasil, como o relato de costumes locais, um interesse em nossa história, a busca de uma identidade Essencial do que seria o Brasil e o brasileiro.
Esta postura é um fato histórico e conjuntural, isto é, sua adoção inicial dependeu de fatores culturais do contexto em que a literatura começou a ser produzida sistematicamente, e sua continuidade mais forte ou mais fraca dependeu também da situação cultural em cada momento em que esta questão do nacionalismo foi encarada com mais ou menos entusiasmo pelos produtores culturais. Trata-se, portanto, de algo que não é estrutural (ou obrigatório) de um sistema literário, sua produção não necessariamente haveria de passar por este critério e esta maneira de pensar.
Não busco aqui apontar o nacionalismo de nossa literatura como uma extravagância, ou uma distorção da norma.A mera divisão hoje vigente da literatura em diferentes nacionalidades, em vez de diferentes idiomas de produção, é um atestado de quão “natural” é esta forma de encarar a produção textual-artística. Temos nas bibliotecasseções de literatura inglesa e de literatura estadunidense perfeitamente separadas (ainda que provavelmente adjacentes), e não uma seção de literatura anglófona: no lugar de um critério intrínseco ao texto e praticamente inequívoco[5], opta-se por um aspecto oriundo de um elemento externo aos textos, às vezes problemático. Na separação mencionada acima, onde colocaríamos Henry James, nascido nos Estados Unidos mas que passou a maior parte da vida adulta na Inglaterrae cuja escrita frequentemente se desenvolve em uma espécie de jogo entre as duas culturas? Se adotarmos o critério de lugar de nascimento, Clarice Lispector dessa forma deixaria de ser uma escritora brasileira. Se a escrita em português do Brasil torna sua obra inquestionavelmente brasileira (e não proponho aqui defender a exportação de sua obra à Ucrânia), Samuel Beckett deixaria de ser irlandês por ter escrito a maior parte de sua obra em francês (ainda que o próprio autor tenha feito as traduções para o inglês). Vladimir Nabokov seria outro autor problemático: um estudioso de literatura russa ansioso pela descoberta de uma essência nacional haveria de ter problemas com a necessidade de se aprender inglês para ler as obras de maturidade do autor de Lolita.
Para além de conjeturas elaboradas em cima de autores modernos que efetuaram alguma espécie de deslocamento geográfico, é possível reforçar este questionamento com uma recuperação histórica, lembrando-se do cosmopolitismo do neoclassicismo na Europa anterior ao Romantismo, tomando como exemplo os esforços anteriores de fazer com que o Latim se tornasse a lingua franca da cultura erudita europeia. O crítico nacionalista e conservador que busca em tradições justificativas/defesas de atuais práticas do sistema literário haveria de ignorar que antes da tradição nacionalista a literatura moderna teve um histórico contrário ao vigente hoje. Mantendo a questão de diferentes padrões sistêmicos, pode-se facilmente apontar como defeito o fato de chamamos de literatura brasileira Padre Antonio Vieira, Gregório de Mattos e os árcades brasileiros, sendo que sequer existia Brasil propriamente dito naquela época (e a independência sequer fazendo parte do ideário dos dois primeiros).
            Mesmo assim,vemos nos dias atuais o uso inquestionado de categorias como“literatura americana”,“literatura inglesa”, “literatura portuguesa” e, objeto de estudo nesta dissertação, “literatura brasileira”, usos não necessariamente atrelados a afãs nacionalistas. Mais do que “apontar um defeito” nessa categorização por nações (pois toda categorização há de apresentar brechas), busco aqui constatar uma realidade, inabalada pelas “exceções”[6] acima listadas: a de que o pensamento hegemônico (hegemônico a ponto de ser lugar-comum quase invisível) em relação à literatura é a de que esta se divide em nacionalidades, seus autores e seus textos são marcados pelas divisões políticas e territoriais do mundo no qual viveram, ainda que estas por vezes não reflitam adequadamente as divisões culturais das pessoas que habitam estes países.
            Certamente parte significativa desta postura se deve ao fato das bem-sucedidas revoluções de concepção estéticas engendradas pelo romantismo: da mesma forma que hoje, por conta da influência do romantismo, se valoriza a originalidade e o artista-gênio em vez da capacidade de se seguir modelos consagrados de forma interessante, mantém-se grande parte do pensamento nacionalizante em vez de qualquer ideal de cosmopolitismo.Como exemplo banal mas bastante visível, pode-se citar o fato de que, ainda que se trate de um premio de abrangência mundial (e que toma isto como um ponto forte), frisa-se todos os anos a nacionalidade do mais novo recipiente do Nobel de Literatura.
            Ainda assim, mesmo que as divisões nacionais da literatura sejam a “universalmente” vigentes e difundidas, e que o pensamento sobre o coletivo nacional tenha sido importante para a maioria dos escritores que constituíram estes sistemas literários, o caso brasileiro do entrelaçamento de nação e literatura foi particularmente agudo e profundo. Antonio Candido frisa isto acima de qualquer outra coisa em seu estudo sobre o Arcadismo e o Romantismo brasileiros, falando de como o sistema literário constituiu uma literatura empenhada:

“Este ponto de vista [do nacionalismo], aliás, é quase imposto pelo caráter da nossa literatura, sobretudo nos momentos estudados. Se atentarmos bem, veremos que poucas tem sido tão conscientes de sua função histórica, em sentido amplo. Os escritores neoclássicos são quase todos animados do desejo de construir uma literatura como prova de que os brasileiros eram tão capazes quanto os europeus (...) Depois da Independência o pendor se acentuou, levando a considerar a atividade literária como parte do esforço de construção do país livre, em cumprimento a um programa, bem cedo estabelecido, que visava a diferenciação e particularização dos temas e modos de exprimi-los” (CANDIDO, 2006,  p. 28)

É apenas natural que um escritor tome como assunto de seu trabalho os problemas e as realidades que ele viu, viveu ou ouviu falarem a respeito. Ainda que busque elaborar em sua obra um esforço de imaginação ou até mesmo delírio, os parâmetros de realidade a partir do qual se mede a extensão e efeito deste distanciamento da realidade pragmática estarão presentes implicitamente no texto: o caixeiro viajante que sustenta seus pais e sua irmã até o dia em que acorda de sonhos intranquilos metamorfoseado em um monstruoso inseto é um personagem de um mundo onde existem caixeiros-viajantes que sustentam os pais e a irmã, e sua história é escrita e lida neste mundo onde existem (ou há tempos existiram) caixeiros-viajantes, e ambientes citadinos em que não costumam habitar monstruosos insetosex-humanos.Teleco, o coelhinho, causa espanto e prazer (e parte significativa desse prazer deriva do espanto e da novidade) nos leitores por se tratar de uma história lida em um mundo em que não existem coelhos que pedem cigarrosque posteriormente revelam sercriaturas que se transformam constantemente.
Mesmo assim,são várias as maneiras possíveis de se abordar a realidade, ainda mais se tratando da forma artística, e a maneira pela qual historicamente os escritores brasileiros tomaram as realidades e os problemas presenciados (ou imaginados) como temas literários continuamente passou pela forma e a ideia de Nação e de onde se está falando. Falou-se com frequênciade universalismos, como não seria possível evitar esta categoria no pensamento ocidental (seja ele neoclássico, romântico, cientificista ou modernista), mas este universalismo aparecia sempre pautado por uma insistência contínua e meio desesperada de que é possível “ser universal” no também Brasil. Até quando se queria falar mais do que do Brasil, precisava-se passar pelo país, este eterno problema.



2.1 - Arcadismo – um início de consciência do lugar de fala

Um exemplo da força deste tema do lugar de fala e dos problemas deste lugar pode ser percebido em como no Brasil até mesmo no Arcadismo, que contava com um sistema de produção e apreciação literária radicalmente diferente do romântico e atual, pautado pela revisitação e refortalecimentode formas consagradas e estas formas sendo oriundas de uma espécie de helenismo/neoclassicismo rígido, a produção literária apareceu tingida de colocações localistas explícitas e implícitas. Embora seja verdade que as formas e temas básicos do Arcadismo nada mais foram do que uma importação estética direta, Antonio Candido nota em seu Formação da Literatura Brasileira que “a valorização da rusticidade serviu admiravelmente à situação do intelectual de cultura europeia num país semibárbaro, permitindo-lhe justificar de certo modo o seu papel.” (CANDIDO, 2007, p. 64), não deixando de ser inovadora (dentro dos parâmetros possíveis das formas vigentes) a maneira como acabou que “aqui ela foi mais natural e justificada, pois dava a expressão a um diálogo por vez angustiosamente travado entre civilização e primitivismo” (2007, p. 64).
Em seu posterior ensaio “Literatura de dois gumes”, Candido ainda elabora que os poetas brasileiros, hábeis em obedecer e manter as formas consagradas como a do pastor e a do racionalismo iluminado, ainda foram capazes de “[manifestar] implicitamente, de forma original, o contraste entre a civilização da Europa, que os fascinava e na qual se haviam formado intelectualmente, e a rusticidade da terra onde viviam, que amavam e desejavam exprimir” (CANDIDO, 2006, p. 215). Aproveitando os exemplos citados por Candido,na pena de Claudio Manuel da Costa as rochas da Capitania de Minas se transformavam em Polifemos e os ribeirões cheios de ouro apareciam como Galatéias; a Musa está lá a guiar o poeta, ainda que seja em inculta região. Diversos outros exemplos de Arcadismo “explicitamente brasileiro” podem ser recolhidos diretamente de citações na obra de Candido, já que a aparição e a forma de aparição da constante nacionalista é um de seus principais interesses como crítico e intérprete. Candido dá enorme importância a este período para a formação da literatura brasileira, cujo estudo tradicionalmente havia se focado mais no Romantismo por ter sido uma fase mais desenvolvida: “minha insistência no século XVIII não é fortuita, pois nele se definiram com certa clareza as linhas da nossa fisionomia espiritual, configurando-se valores que influíram em toda a evolução posterior da sociedade e cultura” (2007, p. 208).
Apesar de estar propenso a valorizar a estética de um universal pretensamente atemporal, o Arcadismo, como todo período artístico, se beneficia de ser entendido de forma socialmente contextualizada, ainda mais se tratando da capacidade de sua variante brasileira de expressar situações locais entre temas importados. É extremamente relevante e, como não haveria de ser de outra forma, raramente esquecida a questão política por trás da atuação pública de alguns dos mais importantes escritores árcades brasileiros: trata-se da crise advertida do colonialismo português diante de um dos mais marcantes esforçosna direção de uma independência política da Metrópole, a tão mitificada e relembrada Inconfidência Mineira, que relegou ao exílio africano Tomás Antonio Gonzaga e encerrou a vida de Claudio Manoel da Costa em um suicídio durante os sofrimentos da prisão. Ainda que a Inconfidência não apareça explicitamente em seus poemas (ainda que por vezes tratem de temas políticos, já que isto faz parte do arsenal árcade), dificilmente se encontraria algum resumo didático ou jornalístico da vida e obra desses poetas sem que se mencione seu destino político frustrado.
É sob esta nota que se inicia o envolvimento direto e problemático (e não é só nesta forma de antagonismo violento que ele é problemático) dos escritores da literatura brasileira com as estruturas do poder vigente. Este envolvimento, em suas diversas variações em cada tempo e para cada escritor, só haveria de tornar mais forte e mais crítica a constante do nacionalismo no pensamento e nas obras de nossos autores. O autoritarismo colonial chegaria até ser literariamente aproveitado algumas vezes em obras escritas durante a ditadura militar: o já mencionado romance Sinos da Agonia, de Autran Dourado, publicado no auge dos anos de chumbo (1974), não chega a mencionar a Inconfidência Mineira e nem elaborar ostensivamente sua ambientação histórica de forma a dar a entender que necessariamente se trata de uma alegoria (ainda mais que este autoritarismo fica como cenário da dificultosa história de amor que é o enredo principal do livro);ainda assim o livrofoi publicado com uma breve Nota do Editor que precede o romance e fala com impressionante vagueza sobre o caráter universal (e, sendo universal, também atemporal) das paixões e sofrimentos do Homem:

“São variações em torno de temas dos grandes trágicos do passado, disse-nos Autran Dourado ao entregar os originais de Os Sinos da Agonia. Utilização de mitos e arquétipos perenes e universais, sempre renovados (...) não sendo Os Sinos da Agonia um romance histórico e realista, nele não se busquem anacronismos, senão os propositais” (1974, p. 5).

Hoje em dia o livro é editado com uma nova Nota do Editor precedente ao romance, explicitando a ausência da nota antiga, alegando que tinha sido escrito em uma tentativa de fazer com que o livro não fosse lido pelos censores como uma alegoria para o autoritarismo de então. É curioso, entretanto, perceber que o texto da orelha da edição atualmente circulando no mercado é uma variante bem pouco modificada da nota antiga, falando do universalismo das paixões/sofrimentos etc. A nova nota assim serveprovavelmente de estratégia mercadológica para tentar puxar o leitor politicamente motivado (fatia considerável do público de literatura brasileira) para aquela obra que como história de amor certamente seria menos valorizada.
Outro romance escrito e publicado durante o período ditatorial (ainda que no período da reabertura, mais tranquilo que os anos de Médici) que aproveita de forma mais complexa e explícita este legado do autoritarismo colonial é Em Liberdade, de Silviano Santiago. Trata-se de um exercício de estilização literária bastante refinado em que se imagina Graciliano Ramos recém-saído da cadeia, narrando sua própria vida dificultosa e seu interesse no sofrimento político de Claudio Manuel da Costa. Em um jogo literário original e contundente, o personagem do romancista alagoano busca na história do poeta assunto para um conto que o ocupe o suficiente para não escrever as memórias do aprisionamento que todos lhe exigem. O poeta árcade é mencionado brevemente durante o início do romance, mas se torna assunto principal ao fim, com Santiago “citando um historiador” que descreve a morte de Claudio Manuel da Costa com as mesmas palavras do autoritarismo que descreveram o falso suicídio de Wladimir Herzog: “Tudo leva a crer que foi levado ao tresloucado gesto por ter se conscientizado da sua situação, e estar arrependido de sua militância” (1981, p. 205).


2.2 - Romantismo: o nacionalismo protagonista

Apesar do que foi constatado acima sobre o Arcadismo sendo capaz de, dentro de suas categorias consagradas, expressar significativamente a experiência de se viver no Brasil,os intelectuais do Romantismo teriam dificuldades consideráveis em perceber e compreendera expressão do lugar de fala por parte dos poetas árcades, já que esta não se deu sob as categorias recém-criadas/importadas do novo pensamento artístico.  Candido afirma que isto ocorreu em parte também pelo contato mais direto dos Românticos com os epígonos mais recentes, reduzidos a uma rotina estética mecanizada do Arcadismo, fazendo com que o período arcádico fosse “julgado quase sempre negativamente” (2007, p. 203) pelos pensadores do romantismo brasileiro.
O que se estabelece com estas críticas injustas, é a continuidade(um tanto ambígua, mas de existência inquestionável) que faltava entre as manifestações literárias do Barroco e a produção posterior para que se criasse um sistema literário/histórico. Ainda que a recuperaçãodo passado seja pautada por duras críticas baseadas em leituras equivocadas (por não levar em conta a diferença do contexto histórico/estético), ainda assim trata-se de uma recuperação do passado, influenciando (pela negativa) a produção e o pensamento corrente. Solidifica-se o sistema.
Tal diferenciação por vezes exagerada dos “espíritos” dos dois períodos, cada qual empenhado à sua maneira,decerto é consideravelmente influenciada pela diferente realidade política vivida pelos árcades e pelos românticos. Candido afirma que “no Brasil, a Independência foi o objetivo máximo do movimento ilustrado e sua expressão principal” (2007, p. 249);uma vez alcançado este patamar o empenho haveria de ser redirecionado, ainda mais considerando que as iniciativas culturais do século XIX tinham, na sua maior parte, o aval do governo, especialmente durante o reinado de Dom Pedro II: para um exemplo rápido deste apoio, basta lembrar da fundação do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, realizado com o apoio total do monarca, ou, para se manter dentro do âmbito mais “estritamente literário”, a forma como o imperador se envolveu diretamente na polêmica entre Gonçalves Magalhães e José de Alencar, defendendo o “Confederação dos Tamoios” assinando suas manifestações jornalisticamente publicadas com “um amigo do poeta”. Mudou-se assim, radicalmente, a relação da produção literária com o poder constituído, mudando o papel deste de inimigo velado ou explícitopara alguém que compartilha dos interesses e preocupações (o que fazerneste e deste país?), chegando até mesmo a ser mecenas ou elogiador público das obras que lhe interessavam.
Com este contexto social e político mais propício, os românticos foram muito mais explícitos em suas vontades nacionalistas do que a geração anterior, expressando claramente “a vontade consciente de ter uma literatura nacional e [demonstrando] o empenho em defini-la” (2007, p. 241). Não foi, portanto, a mera expressão criativa/artística espontânea de alguns indivíduos que aos poucos foi se consolidando e se  em um sistema: primeiro se desejou ter uma literatura, e aos poucos foi se criando algo que era capaz de satisfazer esta vontade, muito parecido com o jovem que deseja ser um escritor e para isto busca uma expressão literária que sirva para cumprir sua vontade em vez de se tratar de pessoa dotada de uma inteligência ou sensibilidade diferentes que opta pela escrita literária para expressá-la.
Diante da existência de um centro praticamente inquestionável de poder político e cultural, o Rio de Janeiro joanino e imperial propiciou a alguns brasileiros um início de vida urbana mais desenvolvida, e com isto, o sistema intelectual começou a se estabilizar e fortalecer: o país “viu o aparecimento dos primeiros públicos consumidores regulares de arte e literatura; a definição da posição social do intelectual; a aquisição, por parte dele, de hábitos e características mentais que o marcariam quase até os nossos dias” (2007, p. 239). Talvez como compensação pela ausência de mudanças na estrutura social, as mudanças culturais geradas pela vinda da família real foram muito profundas, a ponto de serem difíceis de superestimar. Começou a se formar a vida cultural que posteriormente se transformaria na cultura que hoje habitamos:

“configurou-se no Brasil pela primeira vez uma “vida intelectual” no sentido próprio (...) a raridade e dificuldade da instrução, a escassez de livros, o destaque dado bruscamente aos intelectuais (pela necessidade recrutar entre eles funcionários, administradores, pregadores, oradores, professores, publicistas) deram-lhes um relevo inesperado. (...) [desenvolveu-se] a tendência associativa que vinculava os intelectuais uns aos outros, fechando-os no sistema de solidariedade e reconhecimento mútuo das sociedades político-culturais, conferindo-lhes um timbre de exceção (...) Não espanta que se tenha gerado um certo sentimento de superioridade (...) Aí se encontram porventura as raízes da relativa jactância, reforçada a seguir pelo Romantismo, que deu aos grupos intelectuais, no Brasil, exagerada noção da própria importância e valia” (CANDIDO, 2007, p. 246)

Esta noção exagerada da própria valia se fortalecia pela forma que se exercia e se valorizava o trabalho intelectual daquela época, forma até hoje que se mostra presente como uma pressão contínua aos que não aderem a ela em seus discursos: o pragmatismo. Candido diz que:

“o intelectual considerado como artista cede lugar ao intelectual considerado como pensador e mentor da sociedade, voltado para a aplicação prática de suas ideias (...)Em poucos momentos, quanto naquele, a inteligência se identificou tão estreitamente aos interesses materiais das camadas dominantes (que de certa forma eram os interesses imediatos do Brasil), dando-lhes roupagem ideológica e cooperação na luta (...) a todos é comum a concepção pragmática da inteligência, a confiança na razão e na ciência para instaurar a era do progresso no Brasil, a repugnância em dedicar-se de todo à literatura” (2007, p. 249-250)

A pergunta que continuamente aflige (ou é propositadamente esquecida) pela maioria dos literatos de hoje, o eterno e batido “pra que serve a literatura?”, naquela época tinha uma resposta definitiva e fácil para a maioria dos intelectuais brasileiros, pelo menos no que dizia respeito à literatura brasileira: a função da literatura era o de expressar a Nacionalidade e o Espírito de seu Povo (ainda que se mantivesse uma distância enorme e “saudável” da maior parte do povo, preferindo circular só nas altas camadas da sociedade), o de fortalecer a Cultura Brasileira (que seria exclusivamente o que se produzia nos gabinetes dos intelectuais) e de, ao atingir seu patamar máximo de qualidade artística, “consolidar a nossa Independência” e trazer “progresso” (superficialmente pensado naquela época como sendo indissociável do trabalho intelectual, a ponto que o trabalho intelectual levaria infalivelmente ao progresso) à Nação:

“a literatura foi considerada parcela dum esforço construtivo mais amplo, denotando o intuito de contribuir para a grandeza da nação. Manteve-se durante todo o Romantismo este senso de dever patriótico, que levava os escritores não apenas a cantar a sua terra, mas a considerar as suas obras como contribuição ao progresso” (2007, p. 327)

Servindo de apoio à ideia de um sistema literário composto por mais do que os autores e obras literárias, a crítica literária do século XIX (frequentemente praticada pelos próprios poetas e ficcionistas em atividade então) exerceu influência considerável no pensamento estabelecido a respeito da literatura e esta obsessão pelo Nacional (pela essência do que seria o Brasil), influência tão grande ou possivelmente até maior do que as obras literárias de fato escritas, frequentemente passíveis de serem resumidas como meras tentativas de cumprimento do a priori crítico. Como já se disse, no romantismo a literatura apareceu primeiro como dever platônico e depois como cumprimento (ou não) empírico, não havendo assim uma grande base de espontaneidade individual na produção: criava-se um ideal de expressão artística em seus ensaios, introduções e textos de jornal, e depois tentava-se cumpri-lo na hora de se produzir o romance ou o poema.
Em seu ensaio “Letras e Ideias no Período Colonial”, de 1961, Antonio Candido afirma que os intelectuais chegaram a:

“conceber a literatura como processo retilíneo de abrasileiramento, por descoberta da realidade da terra ou recuperação de uma posição idealmente pré-portuguesa, quando não antiportuguesa. Resultaria uma espécie de espectrograma em que a mesma cor fosse passando das tonalidades esmaecidas para as mais densamente carregadas, até o nacionalismo triunfal dos indianistas românticos” (2010, p. 99).

A literatura, portanto, se fazia ferramenta nacionalizante, busca de uma cultura que na verdade se construía a partir da própria busca. Seja pela criação de um índio idealizado que na verdade nunca existiu e que teria precedido o Império, ou pela mera descrição dos costumes em tom de elogio e de valorização do pitoresco, o que se fazia com a literatura no Brasil era mais a produção de um Brasil do que a de uma literatura. Falando do romance romântico no Brasil, Antonio Candido diz que este tem mais valia e importância como “instrumento de interpretação social do que como realização artística de alto nível. Este alto nível, poucas vezes atingido; aquela interpretação, levada a efeito com vigor e eficácia equivalentes aos dos estudos históricos e sociais” (2007, p. 432). Basta lembrar do já mencionado efeito substitutivo desempenhado por nossa literatura em relação aos outros discursos intelectuais menos estabelecidos: não havia muito de sociologia, de historiografia, de filosofia, de antropologia ou de geografia institucionalizados  na intelectualidade brasileira de então: restava aos escritores da imaginação, simultaneamente pais e filhos da nação, a tentativa de registro daquilo que se vivia nesta terra ainda indefinida.
Ainda assim, a vontade ativa de se constituir uma cultura mais robusta do que a atualmente em vigor e todo o idealismo dos intelectuais haveria de atrapalhar este intuito de descrever a realidade, assim como o gosto pelo exótico e a vontade de se mostrar uma cultura distinta e única entrava em conflito com a familiaridade que se esperaria encontrar em romances que descrevem costumes locais. São contradições com que o escritor da época, em seu “senso de missão, seu intuito de exprimir a realidade específica da sociedade brasileira” (2007, p. 434), haveria de lidar, estivesse ele ciente destes problemas ou não. Ao leitor contemporâneo de senso crítico, são problemas dificilmente ignorados, qualquer interpretação do período há de passar pela compreensão e análise destes problemas.
Certamente exerceu sua influência em toda essa obrigatoriedade temática do nacionalismo o fato de que o caso brasileiro da formação nacional se mostraria especialmente complicado em sua constituição imaginária, por ser o único caso da história do colonialismo, americano ou de outros continentes, que teve sua independência declarada pelo filho do rei do país colonizador e teve sua soberania exercida primeiramente pelo tal filho, isto é, alguém que não só não era nascido no país como era membro da Família Real do país que anteriormente “oprimia a liberdade” dos brasileiros. Uma independência conquistada por guerra sangrenta e demorada provavelmente teria sido muito custosa (já que não se sabe quantas insurreições seriam necessárias até uma delas se transformar em revolução), mas provavelmente teria trazido consigo paz de espírito aos intelectuais que tentavam dar um sentido àquela coletividade: dificilmente se vê um nacionalista estadunidense não se referir à guerra de Independência como marco fundamental, marco que o grito do Ipiranga dificilmente consegue imitar e que até hoje a constituição mitológica do país sofre por isto.
Esta mitologia de um país que tentava se construir se encaixa perfeitamente na concepção de nação que Benedict Anderson chamou de “comunidades imaginadas”, adjetivo que enfatiza o fato de que não há nada definido ou concreto que de fato constitua este tipo de coletividade.Oser humano tende a fazer parte de coletividades como o clã, a tribo, ou o reino: como diz a velha e genérica definição,o ser humano é um animal social. No entanto, o Estado-nação é um tipo de coletividade particularmente moderno e, diferente do que os nacionalistas defendem e gostam de acreditar, bastante problemático em sua impossibilidade de ser definida com critérios claros e passíveis de generalização. Como qualquer ideologia socialmente bem implantada, alcançou a invisibilidade quase total: toma-se por natural a existência de nações e o tempo transforma suas complicadas demarcações políticas em “segunda natureza”.A existência da nação do Uruguai, por exemplo, é tomada como normal e até mesmo natural, quando na verdade se trata de um “separatismo brasileiro” bem sucedido em sua busca de autonomia de um governo distante. Ainda que seja notável que o território de colonização portuguesa não tenha se fragmentado em diversas unidades como a colonização espanhola, a separação da Província Cisplatina não deixa de tornar falsa a comumente divulgada ideia de que o Brasil foi capaz de manter a totalidade de seu território durante toda a sua história.
Após a mais breve análise distanciada, a nação se mostra como uma forma problemática de coletividade por vários motivos: sua extensão, por exemplo, faz com que sejamos “companheiros” de pessoas que jamais conheceremos, que estejamos em “nossa terra” em lugares que jamais visitamos. Em uma definição sóbria ainda que um tanto fria a junção dessas pessoas se dá, em última análise, pelo mero controle de um Estado (ou unidade política), que por sua vez depende de uma tautologia para se sustentar minimamente: a terra se define diante de “outras” por pertencer àquele Estado, e aquele Estado se define diante de outros por ser o pertencente daquela terra.
Para os intelectuais interessados na coletividade, esta tautologia implicitamente se mostrou inteiramente insatisfatória para a constituição ideológica que serviria de sustentação a este coletivo inexplicável. Não havia mais o absolutismo com sua superioridade congênita e inquestionável e sua ligação direta com a vontade divina: Anderson constata que “o século XVIII, na Europa Ocidental, marca não só o amanhecer da era do nacionalismo, mas também o anoitecer dos modos de pensamentos religiosos. O século do Iluminismo (...) trouxe consigo suas próprias trevas modernas” (2009, p. 38). Com o ideario do nacionalismo, conseguia-se conversar ao redor desta incógnita que era a justificativa da união política/estatal daquelas pessoas, conseguia-se dar uma base de grandeza e/ou excelência àquilo que frequentemente existia simplesmente por existir e, dessa forma, era possível fortalecer ideologicamente esta união, muito interessante no ideário da classe dominante de então.
Este fortalecimento se dá por caminhos relativamente repetitivos nos vários casos do crescimento do ideario nacionalista pelo mundo inteiro. Todos os critériosde uma forma ou de outra se mostram valorativos da pureza, seja do idioma, que em sua forma nacionalmente abrangente nada mais é que um artifício construído a partir das diversos dialetos, que por sua vez são derivações de uma língua mais antiga e esquecida[7], ou da etnia, este conceito contemporaneamente injustificável. É preciso reconhecer que se trata de uma categoria estruturalmente coesa e coerente para a defesa de uma união e de uma unidade diante de um imaginado despedaçamento ou incorporação injusta, ainda que hoje saibamos o quão problemática a valorização da pureza pode se tornar.
Ao apresentar o caráter fundamentalmente inexplicável e injustificável por trás do conceito de nação, ou até mesmo suas contradições, não se trata aqui de negar a existência de nações, de dizer que “na verdade elas não existem”. Isto seria um exagero ou um jogo de retórica que mais serve para confundir do que para esclarecer. Acreditar que simplesmente porque se trata de algo imaginado, construído a partir da vontade de certas pessoas, sem relação coerente e coesa com a realidade material do mundo, que isto significaria que se trata de algo menos real é a negação intrínseca da possibilidade da validade de algum estudo no campo das artes ou das ideologias. O nacionalismo, na definição precisa de Anderson, é dotado de “legitimidade emocional profunda” (2010, p. 30), é algo real para o comportamento de indivíduos e coletividades no mundo inteiro a ponto de gerar conflitos violentos e, para muitos indivíduos,acabar no sacrifício da própria vida (ainda que este frequentemente não seja resultado de uma participação voluntária na guerra).
 Qual seria o objeto das ciências humanas que não se trata de algo construído ou consideravelmente reforçado e reconfigurado pelas crenças (frequentemente injustificáveis em última instância) das pessoas que são parte deste objeto? Negar a existência de nações a partir da percepção de seu caráter injustificável equivale a negar, por exemplo, que socialmente existem raças (e, portanto, racismo) após a ciência ter constatado o caráter biologicamente injustificável desta categorização de humanos.
Não se trata também aqui de se afirmar que o nacionalismo se impôs sobre alguma outra forma de coletividade que seria mais natural ou justa que caberia no mundo tecnológico-industrial de hoje. Como diz Anderson, “qualquer comunidade maior que a aldeia primordial do contato face a face (e talvez mesmo ela) é imaginada. As comunidades se distinguem não por sua falsidade/autenticidade, mas pelo estilo em que são imaginadas” (2009, p. 33).
Para a constituição desta novidade do século XVIII e XIX, a coletividade nacional, duas novas formas discursivas recentes se mostraram especialmente eficazes: o romance e o jornal, ou no termo interessante e eficiente de Anderson, o capitalismo tipográfico (“(...) o livro foi a primeira mercadoria industrial com produção em série ao estilo moderno” (2009, p. 66)).Esta influência se mostrou fundamental pois “essas formas proporcionaram meios técnicos para “re-presentar” o tipo de comunidade imaginada correspondente à nação” (2009, p. 55). O jornal circulava com grande rapidez e uma universalidade surpreendente para a época, fazendo com que o mesmo texto (isto é, a mesma versão dos fatos, e, ainda por cima, os mesmos fatos) alcançasse um número surpreendente de pessoas em lugares diferentes.
Voltando brevemente ao Brasil romântico e sua interpretação mais consagrada, basta lembrar que Antonio Candido dedica algumas páginas de seu Formação da literatura brasileira a Hipólito da Costa, autor de nenhuma obra literária masfundador do Correio Braziliense e polemista público no tempo joanino e do primeiro reinado, assim sendo importantíssima figura da formação cultural do país. O índice de nomes da recente edição em um volume do livro de Candido mostra dezessete menções ao nome de Hipólito da Costa no decorrer da obra, uma menção a menos do que a Manuel Antonio de Almeida, autor de Memórias de um Sargento de Milícias, romance famosamente tido por Antonio Candido como relevante na produção literária brasileira em sua análise “Dialética da malandragem”.
O romance, por sua vez, dava forma textual, artística e fixa à experiência da nova coletividade em eterna transformação. O argumento de Anderson neste ponto adentra em um território mais complexo, contrastando com brevidade a concepção de tempo medieval que valoriza o simultâneo e o messiânico com a concepção moderna de momentos sucessivos relacionados por causa e efeito, um existir-no-tempo do mundo antigo dos reinos e feudos com um diferente, novo e atual, do mundo que se desenvolveria no mundo das nações. O romance utiliza da segunda concepção do tempo, enquanto a arte medieval e seus derivados tardios (incluindo-se aqui as narrativas de heroísmos sem fraturas) se baseariam na concepção antiga.
Um elemento mais claro desta ligação intrínseca entre o romance moderno e o nacionalismo é a forma como o romance é um gênero textual-artístico em que a ambientação e a contextualização se mostram muito importante, sendo ele uma forma expressiva de um mundo que se reconhece estar em transformação (seja esta progresso ou decadência) e que tem um contatocom realidades diferentes bem mais contínuo do que era o caso das composições de mundo anteriores. Esta realidade diferente sequer precisa se tratar de outra cultura ou outro lugar, pode ser a realidade do mesmo local narrado no passado, já que na modernidade a percepção do tempo deixa de ser cíclica e repetitiva e o passado se mostra diferente do presente. No mundo do nacionalismo, esta contextualização se dá pela presença de plurais e o ocasional uso da primeira pessoa do plural (ainda que implícito), dando a ver que a obra detém certo leitor implícito que compartilha com o autor certas características importantes para o acompanhamento do livro.
Benedict Anderson utiliza como exemplo o romance mexicano El Periquillo Sarniento, de 1816, e sua crítica ao sistema colonial que oprimia seu autor e seus leitores implícitos:

“o horizonte é claramente delimitado: o México colonial. O que mais nos garante essa solidez sociológica é a sucessão de plurais. Pois eles invocam um espaço social cheio de prisões parecidas, nenhuma delas de importância única e exclusiva, mas todas representativas (na sua existência separada e simultânea) do caráter opressivo desta colônia em particular. Comparem-se as prisões da Bíblia. Nunca são imaginadas como típicas desta ou daquela sociedade. Cada uma, como a em que Salomé se sentiu enfeitiçada por João Batista, é magicamente única. (2009, p. 62)

Aproveitando brevemente um clássico da interpretação literária para entender melhor como esta questão da contextualização necessária se dá, podemos pegar a ideia do jovem Lukács de que o romance moderno essencialmente narra a saga do “herói problemático”, um indivíduo que de uma forma ou de outra se mostra em desajuste com o mundo em que habita (enquanto as peripécias do herói épico nada mais são que a confirmação de sua função e seu lugar pré-definido, seu destino, no mundo). Ainda que seja uma chave interpretativa que foca no protagonista, isto é, em um indivíduo, a narração bem feita de um desajuste com o ambiente necessariamente passa pela delimitação bem feita deste ambiente, coisa que não se vê em textos épicos (a utilização do in media ressendo apenas um indício desta ausência de contextualização explicitada). O ajuste total com o ambiente se expressa perfeitamente pela ausência de detalhamento (com a exceção de elementos superficiais, geralmente de natureza plástica ou de enumeração) a respeito deste ambiente: seria como explicitar toda vez que um novo personagem aparece que este não tem braços, pernas ou orelhas faltando.
Com o romance e o jornal trabalhando suas ideologias implícitas e explícitas, assim ficava inteiramente “ocupada de nação” a atividade da leitura, em duas de suas funções mais comuns: a “séria”, do noticiário exercendo sua importante função de informar o indivíduo dos acontecimentos que ele “precisa saber”, e a do divertimento e distração, de se entreter com ficções em seu (frequentemente abundante, no Brasil em que praticamente só os abastados eram leitores) tempo livre. Lia-se o Brasil, ainda que não se soubesse dizer o que realmente seria o Brasil: seja noticiando a todos os eventos da nação como “acontecendo conosco” e os de outros países como inequivocamente acontecendo com “outros povos”, como também o romance, colorindo o pano de fundo da ação (que, em nossa costumeira preferência pelo paradoxal “auto-retrato pitoresco” e falta de imaginação composicional, frequentemente se fazia mais importante que a própria ação) com tons distintos e definidos de nacionalismo. O jornal tomava conta do frio mundo dos “fatos” e da “objetividade” (ainda que o jornal seja algo fabricado, artificial, e, em última instância, ficcional), e o romance tomava conta do momento de relaxamento e da “subjetividade”.
O elemento citado por Anderson e elaborado também por Hobsbawm como sendo intrínseco do nacionalismo e que decerto se aplica ao caso brasileiro é da contradição temporal entre forma e conteúdo: a forma do pensar nacional é uma forma moderna, surgida a partir do século XVIII, mas invariavelmente reivindica a si uma antiguidade primordial, muito anterior à sua constituição política ou imaginária: “as novas comunidades imaginadas (...) evocadas pela lexicografia e pelo capitalismo editorial sempre se consideraram de alguma maneira antigas.” (ANDERSON, 2009, p. 159).
O nacionalismo forçoso e constantemente cobrado dos e pelos autores brasileiros geralmente se expressou pela operação de subtração, na brilhante síntese interpretativa expressa por Roberto Schwarz, tentava-se encontrar o que era “genuinamente nosso”, tentando retirar de nossas vidas e nosso pensamento o que era patentemente oriundo de outras culturas: no caso dos românticos, frequentemente se expressava por um anti-lusitanismo; no caso do período que é objeto central dessa dissertação, pode-se citar a expressão de desgosto e até ultraje diante do uso da guitarra elétrica em canções de brasileiros nos anos 60, alegando que se tratava de uma imposição imperialista estadunidense. Tratava-se de um problema de tão grande importância que chegou até a se organizar uma passeata no Rio de Janeiro, em plena ditadura, contra o uso das guitarras elétricas[8].
Levando este predomínio da operação de “subtração”, é no mínimo curioso constatar o tamanho da influência direta que tiveram críticos estrangeirospara a formação e consolidação da ideologia romântica brasileira. A própria operação nacionalista é, em sua base, a de uma espécie de universalismo restrito: “o nacionalismo, por definição, exclui de seu campo de ação todos aqueles que não pertencem à sua própria “nação”, ou seja, a ampla maioria da raça humana” (HOBSBAWM, 2009, p. 201), isto é, todos os brasileiros são brasileiros, mas apenas os brasileiros são brasileiros.
O nacionalismo e a intelectualidade no Brasil naquele momento inicial do romantismo eram tão frágeis que, aliado à nossa reverência praticamente instintiva diante do que é oriundo de países centrais, foi possível ultrapassar este preconceito estrutural do nacionalismo e ter Almeida Garret e Ferdinand Denis como patronos iniciais de nossas iniciativas literárias nacionalizantes. Ainda que seja verdade que a ideologia que eles trazem ao sistema literário brasileiro é o de um nacionalismo bastante parecido com o praticado pelos nossos românticos, é interessante perceber que o antilusitanismo praticamente consagrado em nossa cultura de então (muito mais forte do que apenas algumas piadas de português ainda hoje sobreviventes) não serviu de impedimento para que se ouça a voz do escritor português.
A demanda feita por Denis e Garret, baseada na leitura da produção literária brasileira anterior ao romantismo, era de que os autores abandonassem as fórmulas neoclássicas e de que se buscasse na natureza local a inspiração para seu trabalho artístico, para que assim se criasse uma literatura “verdadeiramente brasileira”. Em Denis, esta ideia se consagrou em uma máxima em que mostra a aderência completa (e até mesmo adoção como fundamento) às instituições recentemente montadas e vigentes: “A América, enfim, deve ser livre na sua poesia como no seu governo” (2007, p. 639). Imaginando-se o governo como livre (e não sob pesada influência da Inglaterra), seria necessário tomá-lo como exemplo para a constituição de uma literatura que, afinal, nada mais era que aliada do governo se ela tem como objetivo a constituição de uma nação.
A aceitação destas sugestões ou demandas externas por uma reformulação interna se deu por uma confluência de interesses: ouviu-se o que eles tinham a dizer porque eles falaram o que os intelectuais brasileiros queriam ouvir. Maria Helena Rouanet expressa muito bem esta postura em seu livro profundamente crítico, Eternamente em berço esplêndido, onde analisa a influência de Ferdinand Denis na literatura brasileira: “[os intelectuais brasileiros] estavam sempre prontos para admitir tal interpretação, uma vez que ela vinha ao encontro das suas próprias expectativas e pretensões” (1991, p. 171). Ainda assim, a autoridade “inata” de um europeu diante de um brasileiro certamente exerceu sua influência, e as ideias de Denis se mostraram particularmente fecundas e difundidas entre os intelectuais brasileiros: uma valorização superficial da exuberante natureza tropical, um engrandecimento constante do povo e das instituições nascentes (quaisquer defeitos sendo culpa apenas da juventude destas, que ainda estariam se estabelecendo), uma crença inabalável na superioridade do potencial de tudo que era brasileiro (que, uma vez inteiramente aproveitado, certamente ultrapassaria por muito o velho europeu)[9].
Por fim, o que é mais marcante no estudo do período Romântico brasileiro é o tamanho da certeza que eles tem de suas convicções, a extensão em que eles agiam esteticamente em cima destas e, reiteradas vezes repetida por Maria Helena Rouanet, a ausência de uma reflexão crítica a respeito da adoção destes critérios e uma falta de discussão pública efetiva a respeito destas ideias,  com novos textos publicados apenas como re-elaborações (ou apenas repetições) daquilo que foi aceito como natural e obrigatório:

“(...) o Romantismo, no Brasil, acaba se caracterizando pela inexistência de qualquer jornada, de qualquer percurso, e o seu discurso vai se limitar a um “daqui para aqui mesmo, a constante “não sair de casa”. E, não havendo percurso, nada vai ser anulado, nada vai ser transcendido, nada vai ser recuperado. Tudo o que se faz, então, é lutar pelo estabelecimento e pela preservação do que já era esperado e conhecido, através de um mecanismo de repetição que vai criando a impressão do sempre a mesma coisa enquanto evita, a todo custa, acréscimos ou discordâncias. O que se busca – e se consegue obter – é o plano da absoluta indeferenciação, exatamente como faziam os viajantes que falavam sempre para os seus iguais, num discurso de plena confirmação(...) Uma olhada sobre a produção da “escola romântica” é o bastante para revelar a monotonia gritante, criada pela repetição dos mesmos temas, os mesmos títulos, mesma inspiração, mesmas imagens. Veja-se, p.ex, este levantamento sumário: Casimiro de Abreu escreveu sobre a nostalgia da infância (Meus oito anos), e Gonçalves Dias fez o mesmo (A infância); Fagundes Varela e G. Dias, têm, ambos, um poema intitulado Desejo; Álvares de Azevedo compôs Meu sonho e C. de Abreu pôs os sonhos no plural (Os meus sonhos); o mesmo Casimiro escreveu No túmulo de um menino, enquanto G. Dias preferiu fazê-lo Sobre o túmulo de um menino, e assim por diante (...) [o romantismo brasileiro] ignorou a proposta de Schiller que, em seu livro Sobre poesia ingênua e poesia sentimental, havia alertado para que se “lut[asse] pela unidade, mas não [se] a procur[asse] na uniformidade” (1991, p. 253-255).

Apesar das semelhanças (inescapáveis) com os Romantismos europeus, semelhanças que muitas vezes se limitavam a uma cópia superficial de algumas ideias, a estrutura por trás do pensamento do romântico brasileiro e do europeu eram bastante distintas uma da outra. Como destaca Rouanet, até mesmo no aproveitamento de um mesmo leitmotiv é possível enxergar diferenças fundamentais na base do pensamento dos românticos europeus e dos brasileiros.
Ainda assim, é preciso encarar as ações e ideias dentro de um contexto e considerar seus erros e acertos tomando em conta o leque de possibilidades disponíveis aos intelectuais de então. Se o romantismo europeu surpreende e causa admiração pela profundidade da ruptura com o que havia de estabelecido na cultura europeia, há de se levar em consideração que o que a o contexto brasileiro tinha de culturalmente instituído não era tão sólido a ponto de uma ruptura apresentar tamanho feito a ponto de causar admiração: não havia establishment forte o bastante para ser despedaçado ou remontado. O lugar discursivo dos artistas é apontado por Luiz Costa Lima como sendo decisivo para a constituição ideológica de seu trabalho literário:

“No caso europeu, tanto o romantismo que manteve o otimismo no progresso da fraternidade e da igualdade, quanto o que cedo refluiu para o ideal de autonomia da arte, manteve seu caráter de rebeldia contra a sociedade instituída. Sua ida a natureza era pois um estímulo à autorreflexãolibertadora. No Brasil, isto seria inimaginável. Em seu afã de civilizar a nação que governava, Pedro II favoreceu como pôde os jovens introdutores da corrente europeia, seja pelos postos diplomáticos com que os agraciava, seja pela ajuda na publicação das obras (...) sem luta contra a sociedade instituída, o próprio contato com a natureza teria de assumir outro rumo, não de estimular a autorreflexão, mas o de desenvolver o êxtase ante sua selvagem maravilha (...) em uma nação desprovida de qualquer rudimento de sistema intelectual, este sentimento de infelicidade não era estimulado a assumir outras proporções que adviriam da leitura e/ou da crítica empreendida por amadores lúcidos ou por pensadores (...) o sentimento de infelicidade se depurou em mero sentimentalismo” (LIMA, 2006, p. 146-147).

Levando em consideração estas limitações incontornáveis e o que de fato existia culturalmente em terras brasileiras antes da atuação destes intelectuais românticos, trata-se de um movimento bastante longevo e bem-sucedido. Períodos futuros trabalharam essencialmente com base nestes fundamentos criados pelo Romantismo (ainda que sob a égide da reforma ou da crítica); neste sentido, falamos aqui de um movimento que pode considerar seu objetivo principal como cumprido, o de conseguir constituir um sistema literário (de efetividade estética bastante variável) para este pedaço de terra longínquo e para esta população majoritariamente analfabeta. A inexistente abrangência (ou disseminação) populacional decorre principalmente com a estrutura social do país de então, criticamente intocada pelos intelectuais pela própria precariedade de seu lugar de fala em um país que frequentemente mostrava não ter espaço sequer para todos que se dispusessem a jogar por todas as regras determinadas. Como veremos nas páginas seguintes, na medida em que a sociedade brasileira foi se desenvolvendo, este lugar do intelectuale de seu discurso foi mudando ao mesmo tempo em que, soboutros aspectos, permanecia mais ou menos o mesmo.


2.2.1 - O caso Machado: o instinto de literatura

            Assim como procederá com a reconstituição dos outros períodos, este estudo privilegiou aquela parte que lhe dizia mais respeito ao recapitular o estabelecimento de uma cultura do Romantismo no Brasil: a questão do nacionalismo é de profunda relevância para o entendimento da produção cultural dos anos 60 e 70, até mesmo nas iniciativas neste campo pela parte do governo ditatorial. Nenhuma cultura moderna, nem mesmo as totalitárias, é capaz de se desenvolver sob a égide da unanimidade: ainda que a dissidência seja forçadamente emudecida ou quase nunca escutada, ela estará lá, e deixará alguns rastros para estudiosos futuros. No caso do Romantismo, houve manifestações que rechaçavam esta vertente nacionalista, mas se fala aqui de uma minoria bastante restrita e descontínua, só não inteiramente obscura pela grandeza literária e cultural de um dos seus defensores, o jovem Álvares de Azevedo.
Ainda assim, não deixa de ser notável que o desenvolvimento de uma concepção de Brasil e de brasilidade era tão onipresente nas iniciativas intelectuais brasileiras que até mesmo autores que não tinham isto como interesse explícito (ou objetivo a ser tão diretamente perseguido como por outros autores) eram compelidos à participar da discussão, ainda que para explicar o motivo pelo qual não participavam como os outros desta busca primordial. A demanda do sistema é tamanha e tão constante que o participante que discorda de alguns de seus axiomas é sempre impelido a se expressar a respeito para que, ainda que não seja compreendido, possa apontar para um desenvolvimento de suas ideias a fim de que não tenha que sempre se repetir com cada nova iteração da pergunta-protagonista vigente no sistema.
              O exemplo mais claro que se tem disto no período em questão é o texto “Instinto de Nacionalidade”, de Machado de Assis, publicado em um periódico impresso nos Estados Unidos em 1873. Nele, o autor desenvolve suas ideias (incomuns em nosso meio) a respeito do assunto em um texto que amplamente lido ainda que frequentemente aceito sem ser ter suas ideias muito discutidas.
Machado abre suas análises alegando que a constante do nacionalismo se dá em parte por um saudável amor-próprio (constatação que por si só já demonstra um distanciamento analítico ausente na maioria das críticas oitocentistas) e que pode produzir distorções: “neste ponto manifesta-se às vezes uma opinião, que tenho por errônea: é a que só reconhece espírito nacional nas obras que tratam de assunto local, doutrina que, a ser exata, limitaria muito os cabedais de nossa literatura”(1873, n.p.)[10]. Posteriormente, o escritor carioca famosamente cita o caso de Shakespeare, que não se torna menos inglês por escrever muitos de seus melhores dramas com ambientação em outras terras que não a Inglaterra (como a Dinamarca de Hamlet ou a Verona de Romeu e Julieta).
            Machado admite que uma literatura, sobretudo uma ainda em estágio de desenvolvimento, “deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a região”(1873, n.p.), mas recusa a obrigatoriedade estanque de elencar sempre situações e cores locais, trazendo um grande salto ideológico e estético ao pensamento literário brasileiro ao concluir que “o que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço”. (1873, n.p.) Em sua concepção, a valorização da cor local encontra seu limite na sua obrigatoriedade e na sua superficialidade:

"Um poeta não é nacional só porque insere em seus versos muitos nomes de flores ou aves do país, o que pode dar uma nacionalidade de vocabulário e nada mais. Aprecia-se a cor local, mas é preciso que a imaginação dê seus toques, e que estes sejam naturais, não de acarreto.” (1873, n.p.)

É interessante comparar esta postura mais avançada de Machado com a descrita por Rouanet a respeito de Pereira da Silva, em que a grandeza literária se expressa pela listagem de vegetais:

“se pode ler, em texto de Pereira da Silva, que a literatura “brasileira [...] se inspira no seu céu esplêndido, na sua natureza resplandecente, nas suas montanhas cobertas de árvores gigantescas e de palmeiras esguias” (1866, 20); ou ainda que uma descrição feita no poema Ilha da Maré. Repleta de nomes de legumes e de flores nativos do Brasil “constitui o seu verdadeiro padrão de glória, elevando [Botelho de Oliveira] à categoria de patriarca da poesia brasileira, e um dos precursores dos Srs. Magalhães e Porto Alegre” ( Fernandes Pinheiro, J.C.: 1862, 178)” (1991, p. 178),

A valorização feita por Machado,portanto, recai com insistência na capacidade imaginativa, na argúcia da observação e na sutileza na construção das vontades humanas nos personagens, e a nacionalidade, onipresente, se expressaria melhor de forma indireta, não-superficial e, para aproveitar a palavra do título, instintiva. O que viria a ser este instinto, e como exatamente ele se expressaria no Brasil (onde a questão é uma constante, diferente da Inglaterra de Shakespeare), o autor não explicita, masnão cabe cobrar de um artista precisão e rigor metodológico na exposição das ideias que fundamentam seu fazer e pensar estético; não se trata aqui de um estudioso (não se devendo confundir “intelectual” com “estudioso”) ou acadêmico, que deve (ou pelo menos deveria) desenvolver suas ideias de forma clara, com categorias bem delineadas. A própria palavra instinto, no título do texto, deve dar a entender com grande ênfase uma espécie de funcionamento de um mecanismo intuitivo, que não se presta à dissecação metódica, existindo assim neste fazer literário uma fatia substanciosa de inexplicável, que foge a um racionalismo detalhista de esquemas montados e executados. Desta forma, o texto de Machado não deixa de ser uma espécie de adiantamento em relação às diversas teorias literárias do século XX que tentaram capturar e friamente descrever de forma direta o processo literário, esta eternamente escorregadia anomalia discursiva.
Antonio Candido encerra seu impressionanteFormação da Literatura Brasileira tendo este texto de Machado de Assis como ponto de chegada, ou fim de longo percurso, dedicando ao texto três parágrafos (um deles uma longa citação) afirmando no último que “estas palavras [de Machado] exprimem o ponto de maturidade da crítica romântica: a consciência real de que o Romantismo adquiriu do seu significado histórico” (2007, p. 681), encerrando o livro nesta nota de triunfo.
Trata-se de um equívoco bastante evidente pela parte de Candido. Tão claro que foi reconhecido pelo próprio autor no prefácio da primeira edição, isto é, antes mesmo da recepção do livro pudesse apontar qualquer defeito: “(...) outra falha me parece, agora, a exclusão do Machado romântico (...)” (2007, p. 14). Ainda que o crítico tenha completado a frase colocando ênfase na produção ficcional de Machado, um aprofundamento em sua obra decerto incluiria uma análise mais satisfatória e menos apressada deste texto de enorme importância, afinal,depois de passar páginas e páginas falando de autores que hoje vivem apenas nos manuais completistas de história literária brasileira (categoria que bem descreve, ainda que não por completo, este livro de Candido), gasta-sesomente três parágrafos com o texto que provavelmente é hoje o mais lido sobre nacionalismo literário, do autor que é inequivocamente o maior artista brasileiro do século XIX.
É possível pensar que esta pressa de Candido foi causada talvez pela vontade de finalmente colocar um ponto final no longo estudo, ou talvez pela dissonância inerente ao ensaio de Machado apenas intuída pelo críticoe cujo desenvolvimento decerto atrapalharia o tom conclusivo (e até mesmo de triunfo) do fim do livro, elemento que sem dúvida agrada o leitor que se dispôs a ler o livro inteiroassim como provavelmente também seu autor, tantos anos depois do início de sua escrita. Creio, contudo, que mais importante para o entendimento desta “pressa” de Candido é a constatação de que o sistema literário não é algo tão uno e coeso quanto Candido o descreve, ainda que o coleguismo brasileiro (presente também entre intelectuais) tenda a continuamente dar esta impressão.
Reconheço que Roberto Schwarz refuta bem a acusação de Haroldo de Campos de que Formação partiria de uma concepção linear do fazer literário ao apontar que Candido considera que a mistura de tradição e matéria local do Arcadismo se deu de forma mais feliz do que o exotismo Romântico:

“Quanto à linearidade do esquema, o próprio da análise estrutural praticada no livro é justamente a exposição articulada, oposta à linha evolutiva simples. Assim, por exemplo, a busca romântica da diferenciação nacional aparece frequentemente como inócua, além de filiada às expectativas de pitoresco. Ao passo que o universalismo arcádico aparece como capaz de configurar singularidades e perplexidades históricas de maneira superior. Onde a visão linear?” (SCHWARZ, 1999, p. 52).

Ainda assim, é inegável a expressão de Candido que diz que foi o Romantismo que chegou a este ponto de maturidade, como se houvesse uma ligação direta com o pensamento de um autor extraordinário e um meio intelectual majoritariamente medíocre que o cerca, como se a grandeza deste autor específico tivesse enriquecido todo o resto daquele meio literário (em vez de, a meu ver um efeito bem mais perceptível, ressaltar sua mediocridade).
Não me distancio muito da postura de Candido, Schwarz e seus seguidores em relação ao apreço pela ideia de continuidade e da existência de um sistema literário no lugar de uma porção de autores soltos (em uma paisagem deserta de leitores), e seus trabalhos que expressam frequentemente (ou exaustivamente)uma conexão da obra de Machado, aparente gênio isolado, com o resto do sistema literário, sempre apontando com eloquência e pertinência ligações desta obra com a de autores anteriores. Ainda assim creio que não se deve tomar a partir daí um passo a mais e, confundindo o fato de que Machado estava integrado ao seu sistema literário (o posto de primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras servindo de atestado), acreditar que o sistema literário de sua época foi capaz de satisfatoriamente integrar Machado de Assis. Trocando em miúdos, foi Machado de Assis que encontrou esta maturidade literária, e não a literatura brasileira como um todo (que não é una o suficiente para dar em conjunto um passo como este); aos outros autores, na sua maior parte restou apenas trilhar distante atrás de seus passos, isto é, nos casos que de fato conseguiu discernir seus verdadeiros rastros.
Se de fato Machado se inspirou fortemente na produção local para superá-la, e Schwarz desenvolve fortes argumentos para defender isto, não cabe com esta constatação apagar o fato de que ele de fato foi capaz de superá-la, e superá-la enormemente, e superá-la individualmente. Ainda que exista um sistema (e o aproveitamento dos exercícios literários que lhes eram anteriores comprova isto), não se deve esquecer que ele é composto pela ligação de elementos individuais, que por sua vez apresentam características que podem ser ou não ser singulares. Neste caso, Machado usou do que havia sido literariamente estabelecido naquele sistema e conseguiu construir algo superior. Afinal, é da própria interpretação de Schwarz a constatação de que Machado não foi realmente compreendido em seu tempo:

“Ao colocar na posição de sujeito narrativo o tipo social de Brás Cubas – o verdadeiro alvo da sátira – Machado tomava um rumo perverso e desnorteante. Camuflada pela primeira pessoa do singular, que a ninguém ocorreria suar em prejuízo próprio e com propósito infamante, a imitação ferina dos comportamentos da elite criava um quadro de alta mistificação: cabe ao leitor descobrir que não está diante de um exemplo de auto-exame e requintada franqueza, mas de uma denúncia devastadora. A julgar pelas reações da crítica, o disfarce prevaleceu quase inteiramente, o que não invalida a leitura social, embora faça refletir sobre a eficácia de uma forma tão enganosa. Como Stendhal, que sabia a sua literatura adiantada de cinquenta anos, Machado escrevia para um público ainda inexistente” (2006, p. 190-191)

A verdadeira grandeza crítica de sua obra não fazer parte (sequer ter sido percebida) na primeira recepção de seus livros não seria por si só uma prova substancial da existência de uma espécie de desajuste?
            Esta postura foi alcançada por um escritor que, ainda em seus anos de produtividade inicial, conseguiu enxergar a superficialidade de alguns dos critérios valorativos na produção literária de seu momento: trata-se um texto de expressão eminentemente crítica (no sentido de ter como objetivo apontar defeitos). Ainda que tenha tido repercussão positiva ou incorporação canônica, não é estranho à experiência intelectual de ninguém ouvir palavras de concordância de alguém em relação às ideias expressadas em determinado texto para depois se deparar com a realidade de que a pessoa que há pouco concordou na verdade não entendeu o que estava lendo, ou simplesmente deixou de absorver as ideias novas ali contidas.
Tratando-se de um sistema em que as relações se separavam claramente em amigos ou detratores[11], em que qualquer nota de discordância teria de ser expressada necessariamente pela polêmica vilipendiosa, não surpreende que as ideias à época revolucionárias (no plano da estética e da nacionalidade) de Machado passassem largamente sem discussão e sem verdadeira absorção pelo meio intelectual. O exotismo continuou sendo regra geral, e o nacionalismo explícito (não apenas o que enumera plantas e pássaros, mas também ele)continuou como critério valorativo, em grande parte intocado na concepção de muitos até hoje.Para tomar um rápido critério (e que reconhecidamente estanque e superficial) desta não absorção, a literatura brasileira ainda aguarda pelo seu aclamado romance situado em terras não-brasilianas, enquanto a literatura argentina tem seu Julio Cortázar e aestadunidense, a obra de Hemingway, ambos autores de obras de ambientação frequentemente diversa da nacionalidade de suas literaturas.
            Machado de Assis foi um salto qualitativo surpreendente para a literatura brasileira, e este texto nacionalista faz parte deste salto: Schwarz afirma que “Instinto de Nacionalidade” é a expressão de Machado de seu “próprio programa de trabalho” (1999, p. 151), isto é, além de apresentar suas ressalvas e seus elogios ao que está constituído literariamente no país, traça o próprio caminho que será percorrido pelo autor em seus romances. Como falar que este salto foi da literatura brasileira como um todo se Machado passou por várias décadas de sua recepção post-mortem sendo taxado de insuficientemente nacionalista pelos intelectuais brasileiros?
            Os outros períodos desta retrospectiva serão reconstituídos na medida em que apresentam esta constante do nacionalismo, formada em sua encarnação definitiva pelo Romantismo, em suas futuras variações com outros autores e outros contextos brasileiros. Machado de Assis, sendo o escritor de maior importância da literatura brasileira e de lugar central no cânone, servirá assim como uma espécie de medida em relação a como estes autores futuros tratarão a questão nacional, se eles a adotam como uma obrigatoriedade imediata, rapidamente identificável, ou como algo mais sutil e profundo, a ser desenvolvido em vez de imediatamente apresentado. O que estes escritores futuros pensaram de Machado de Assis, em especial seu relacionamento com o Brasil e a sociedade que lhe era contemporânea, será de grande valia para mostrar como a literatura brasileira evoluiu em relação a esta questão, em grande parte deixando para trás o conteúdo desta contribuição valiosa.
           

2.3 - Belle Époque

O fim da monarquia no Brasil significava o fim daquilo que foi um dos principais pilares de nossa vida política e cultural nos anos iniciais da nação brasileira, e isto não haveria de passar sem expressão (ainda que muitas vezes de forma implícita) pelos escritores brasileiros; até mesmo a muitos dos que se posicionaram contra a monarquia (e os que hoje pensam neste regime de governo como um absurdo) é perceptível como ela tende a fornecer ao meio em que governa uma estabilidade política/cultural que muitas democracias, em especial a de países subdesenvolvidos, têm dificuldades em propiciar. Por maiores que sejam as disputas políticas entre os partidos e dentro do povo, por mais acalorada que sejam as controvérsias, o rei está lá no fundo, sólido, um centro seguro supostamente ileso de todas as possíveis atribulações do mundo. O período da virada do século foi quando o Brasil perdeu este centro, com a declaração da república e a conquista da capacidade (não muito longeva) de (alguns) brasileiros de escolherem seus líderes. Em se tratando de uma literatura de fortes laços com o político e, estando restrita à elite em um país extremamente estratificado, também com o poder, não se trata de uma mudança pequena.
A expressão “literatura como missão” é utilizada por Antonio Candido para tratar da atividade intelectual de nossos escritores românticos, mas Nicolau Sevcenko a aproveita para usar de título de seu estudo sobre a produção literária brasileira da virada do século. A sociedade retratada e vivida pelos escritores de então é uma sob os efeitos de constantes e violentas mudanças, o culto ao progresso e ao desenvolvimentismo científico e urbano que se expressa das mais diversas formas. Ao fim do século XIX, o engajamento havia se voltado da busca da essência do povo para as “reformas nacionais”, encabeçadas pelo ideal de progresso e modernização intelectual e institucional do país. Como resume Sevcenko:

“A palavra de ordem da “geração modernista de 1870” era condenar a sociedade “fossilizada” do Império e pregar as grandes reformas redentoras: “a abolição”, “a república”, “a democracia”. O engajamento se torna a condição ética do homem de letras. Não por acaso o principal núcleo de escritores cariocas se vangloriava fazendo-se conhecer por “mosqueteiros intelectuais” (...) toda essa elite europeizada foi diretamente responsável pelos fatos que mudaram o cenário político, econômico, e social brasileiro: eram todos abolicionistas, todos liberais democratas e praticamente todos republicanos.”(2003, p. 97).

Sevcenko elabora mais especificamente sobre o fazer literário e sua relação contínua e meio dificultosa com o meio circundante:

“As duas primeiras décadas desse século experimentaram a vigência e o predomínio de correntes realistas de nítidas intenções sociais (...) faziam assentar toda sua energia sobre conceitos éticos bem definidos e de larga difusão em todo esse período. Assim, abstratos universais como os de humanidade, nação, bem, verdade e justiça operavam como os padrões de referência básicos, as unidades semânticas constitutivas dessa produção artística. O dilema entre o impulso de colaborar para a composição de um acervo literário universal e o anseio de interferir na ordenação da sua comunidade de origem assinalou a crise de consciência maior desses intelectuais” (2003, p. 31)

Ocorre, ainda:

“A homogeneização das consciências pelo padrão burguês universal da Belle Époque [que] deu o remate final no processo de estiolamento da literatura a que se assistia então. “Daí parecerem-se todos os romances uns com os outros e tomar a época neste ponto uma cansativa e pesada feição uniforme”. A literatura se tornou um espaço cultural facilmente identificável por um repertório limitado de clichês que só mudam na ordem e no arranjo com que aparecem. O próprio público e a crítica acabam criando uma expectativa do lugar-comum e da mesmice para identificar a natureza literária de um texto”(2003, p. 123)

Sevcenko constata uma auto-imagem que mostra muita continuidade com o imaginário romântico do intelectual empenhado demonstrado por Candido, falando de gerações anteriores que certamente muitos desses novos intelectuais dariam por velhos ou ultrapassados:

“No Brasil, esses intelectuais postavam-se como os lumes “os representantes dos novos ideais de acordo com o espírito da época”, a indicar o único caminho seguro para a sobrevivência e o futuro do país. Seu orgulho, o do papel que se arrogavam, beirava a soberba quando advertiam a nação vacilante em seguir-lhe os passos (...) O que ressoava era a certeza da sua utilidade insubstituível, a força da sua capacidade motivadora e transformadora e sobretudo a competência ímpar de seu programa”(2003, p. 102)

O lugar do escritor, por sua vez, se modifica: “anteriormente sua condição era de membro ou cliente virtual da elite monárquica (...) passando a uma condição de categoria social isolada, disputando a sobrevivência no concorrido mercado [do](...) espaço público da nova república” (2003, 276).
Dada esta constante de uma “concepção estritamente utilitária da palavra e das formas culturais”(2003, p. 142), não é de se surpreender o estranhamento de certas figuras ao contrapor este ideologia estética com a consagração de um autor como Machado de Assis, cuja carreira chegava ao seu auge por estes anos e cuja morte apenas aumentaria seu status dentro de nosso minguado e inseguro sistema literário. Estas figuras às vezes ficaram relegadas à posteridade principalmente pela sua opinião negativa em relação a Machado, sendo apenas lembradas quando o assunto é a possibilidade de um grande escritor também ser alvo de críticas. Sílvio Romero, por exemplo, apesar de ser autor de um vasto (ainda que falho) trabalho interpretativo, é quase sempre lembrado principalmente por suas críticas (por vezes ofensivas) ao grande escritor.
Em seu prolixo, redundante, disforme e bajulador livro Os inimigos de Machado de Assis, JosuéMontello, o autor maranhense faz uma espécie de coletânea mal-ajambrada de opiniões negativas a respeito de Machado, a mera existência de um livro com este assunto servindo de atestado para a primordial consagração do autor de Dom Casmurro.
Alguns exemplos de críticas: Agripino Grieco diz que “Sua obra é um decalque nem sempre feliz de duas ou três categorias da humanidade seleta (...) nota-se, em quase todas as suas páginas, a presença de uma arte muito voluntária, muito minuciosa. Falta-lhe a atração do interesse contínuo e – por que não? – realidade terrestre” (1998, p. 56); o poeta e professor Hemetério do Santos, negro,  diz em uma carta que escreve a um amigo, em 1908: “Machado não foi um observador fiel do nosso modo de ser (...) o problema do “negro” não mereceu do romancista e do poeta senão pálida e aguareladas pinturas tão tímidas que claramente revelam que do artista primeiro partiam as ideias preconcebidas contra a sua cor e procedência (...) nossas guerras (...) não existem para quem as procurar nos livros de Machado (...) A arte de Machado de Assis esgota as energias, não tem ela nenhuma relação com o sentimento nacional” (1998, p. 81-85). Em texto publicado no ano da morte do grande escritor, o crítico Pedro do Couto diz: “Quanto aos fenômenos morais e sociais (...) Machado de Assis não mostra, em nenhum livro, deles ter sequer conhecido a existência (...) Machado de Assis não deixa entrever em sua vasta obra nenhum sinal do momento em que ele viveu. Os fatos sociais são postos à margem, nem indiretamente mesmo eles se fazem sentir” (1998, p. 93).
No entanto, para além do tratamento de absurdo dado por Montello à mera existência de opiniões divergentes, epor mais que hoje seja claro o erro de avaliação por parte desses críticos, é difícil não enxergar certa coerência de algumas dessas críticas dado os critérios literários e intelectuais vigentes naquele momento histórico: como conjugar este empenho forçoso, em que a palavra missão não expressa exagero, com a obliquidade da literatura de Machado de Assis? O exemplo que se força como principal é o da escravidão, dado o empenho de muitos na campanha pelo seu fim, como conjugar a importância desta questão, a forma como o intelectual brasileiro tendia a se encarar e o não-ativismo de um inteligentíssimo escritor mulato?
Montello põe entre as primeiras colocações do livro, no prefácio que é uma resposta canhestra a uma resenha negativa de um livro seu anterior sobre Machado, a defesa de um tímido ativismo por parte de Machado diante da questão abolicionista: “o mestre, em vez de omitir-se na libertação da raça negra, apenas se retraía, por força do seu feitio, sem que isso implicasse esquivar-se à retidão de seu dever” (1998, p. 16). A mera presença e proeminência (contemporânea, vale frisar) desta constatação no livro, várias vezes repetida pelo romancista em diversas variações no decorrer de seu texto, serve de afirmação da existência deste problema percebido pelo sistema literário que continuamente valoriza em primazia o posicionamento político e tem em sua maior figura um autor que não partilha deste mesmo ponto de vista. Como constata Schwarz:

“uma parte ao menos da aversão que a literatura machadiana despertava em Sílvio Romero também nasceria aí, na incompatibilidade com o “são brasileirismo” e o “brado de entusiasmo para um futuro melhor”, termos de intenção progressista, cuja dimensão enganosa, de apologia de classe, naturalmente escapava a seus usuários. “Todo escritor nacional na hora presente está carregado do imperioso dever de dizer toda a verdade a nosso povo”” (2000, p. 188)

Nem todas as críticas, por exemplo, são oriundas de figuras obscuras de rememoração esparsa ou primeiramente negativa: o próprio Lima Barreto, escritor daquela época atualmente detentorde maior estatura no sistema literário brasileira, opina sobre Machado de Assis de forma que não se constitui somente de elogios de engrandecimento, como seria de se esperar. Como fala Sevcenko, no início de seu capítulo sobre Barreto:

“Compreende-se então sua opção por uma literatura utilitária e de forte cunho crítico: “quero modificar a opinião dos meus concidadãos”, o seu objetivo fraternário; “soldar, ligar a Humanidade, estabelecer a comunhão entre os homens de todas as raças e de todas as classes”. Não há mais validade na arte de Machado de Assis: Brás Cubas não transmitiu a nenhuma criatura o legado da nossa miséria; eu, porém, a transmitira de bom grado”” (2003, p. 232)

É possível ainda perceber certo tom de decepção ou de perplexidade por parte de Lima Barreto ao traçar o perfil do mais consagrado autor brasileiro, cujas características biográficas são difíceis de não conectar com as de quem escreve as palavras:

“Ele e a sua vida, o seu nascimento humilde, sua falta de títulos, a sua situação de homem de cor, o seu acanhamento, a sua timidez, o conflito e a justaposição de todas essas determinantes de condições, de meio, de indivíduo, na sua grande inteligência, geraram os disfarces, estranhezas e singularidades de Brás Cubas”(SEVCENKO, 2003, p. 197)

Tais estranhezas certamente não combinavam com o próprio programa estético de Barreto, de sua “convicção que a realidade não fala por si, é preciso que ela seja exagerada criticamente para revelar os seus defeitos e expor as deformações que despertam o desprezo geral”(2003, p. 132-3). Como destaca Irenísia Torres de Oliveira em ensaio sobre as críticas de Barreto a Machado, o autor renegava as comparações[12] que às vezes eram feitas entre suas obras e a do escritor consagrado. Em carta a Austragésilo de Ataíde, ele agradece ao crítico por separá-lo do autor de Dom Casmurro “as diferenças principais, comenta na carta, estavam na secura da alma, na falta de simpatia da obra de Machado, além do seu medo de se expor e do medo do “Castilho”, referindo-se à perfeita correção da prosa machadiana” (2008, p. 159) Nas próprias palavras do criador de Policarpo Quaresma:

“Gostei que o senhor me separasse de Machado de Assis. Não lhe negando os méritos de grande escritor sempre achei no Machado muita secura de alma, muita falta de simpatia, falta de entusiasmos generosos, uma porção de sestros pueris. Jamais o imitei e jamais me inspirou. Que me falem de Maupassant, de Dickens, de Swift, de Balzac, de Daudet, vá lá; mas Machado, nunca! Até em Turgueniev, em Tolstoi podiam ir buscar meus modelos; mas Machado, não!” (BROCA, 1983,196).

Oliveira ainda destaca crônica de 1919 em que Barreto tece as seguintes críticas: “Machado era um homem de sala, amoroso das coisas delicadas, sem uma grande, larga e ativa visão da humanidade e da Arte” (2008, p. 162) e constata que :

“a fraqueza, para o criador de Policarpo, era o desligamento diante de problemas, notadamente os problemas nacionais, que obsedavam os intelectuais na passagem do século XIX para o início do século XX. Lima deplorou em Machado o escritor de sala, assim como deplorava em Coelho Neto o escritor dos clubes de elite. Obviamente, ele estava errado quanto ao primeiro, mas seu equívoco me parece encaminhado não apenas por um erro individual de avaliação, mas pela leitura crítica dominante no período (...) [tinha] se estabelecido o consenso acerca do universalismo de sua obra [de Machado], havendo divergências apenas quanto ao valor, ou seja, se isso seria bom ou ruim. Para o nacionalismo de Sílvio Romero, por exemplo, era ruim. Para a exigência militante de Lima, também.”(2008, p. 162-3)

Para citar outro exemplo menos específico, mas oriundo do autor mais consagrado de seu tempo, Olavo Bilac “[em 1916] declaravapassada a “fase ignóbil” da ironia, proclamava que “a nossa literatura aqui e no Brasil, é hoje nacionalista, e será nacionalista” (...) Uma onda copiosa de literatura nacionalista toma conta do país”(SEVCENKO, 2003, p. 124), nenhuma das constatações combinando com o projeto estético machadiano.
Leituras mais recentes mostram o envolvimento de Machado e seus personagens com o mundo circundante e com a realidade política de então, mostrando com grande eloqüência como a ideologia e sua crítica ferina estão entranhadas na obra machadiana. A própria demora para a aparição destes estudos, no entanto, serve de atestado de um descompasso entre seu projeto estético, pelo menos no que diz respeito as questões de política e ideologia,e sua possível inteligibilidade no meio onde está inserido. Frequentemente se apaga um lado em nome do outro, e os que identificam o caráter político de sua obra tomam por resolvida a questão de seu não-ativismo na tentativa de apaziguar o fato de sua grandeza literária diante da concepção de uma função necessariamente social da literatura. Difícil lidar com uma figura criadora de um conto como “Pai contra a Mãe” (ainda que publicado bem depois do fim da escravatura) e que, como recupera Sevcenko, definiu os limites daquela que seria a principal instituição intelectual de seu tempo desta maneira:

“(...) A Academia Brasileira de Letras tem que ser o que são as instituições análogas: uma torre de marfim, onde se acolhem os espíritos literários, com a única preocupação literária, e de onde estendendo os olhos para todos os lados, vejam claro e quieto. Homens daqui podem escrever páginas da história, mas a história faz-se lá fora”(2003, p. 261)



2.2.4 Os Modernismos

Esta contraditória mistura de desajuste e consagração de Machado de Assis no sistema intelectual e literário recebe sua dose de continuidade com os modernismos, que em suas diversas facetas e formas diferentes, trouxe mudanças para o sistema literário brasileiro a serem resumidas aqui dentro do interesse do estudo. É o costume da crítica da literatura brasileira fazer a separação deste período em gerações diferentes, a geração de 22, com sua Semana de Arte Moderna e seu ativismo estético-cultural, e a de 30, com o desenvolvimento da ficção regionalista e um ativismo mais explicitamente político. Esta divisão, como qualquer outra, tem seu quê de artificial, já que qualquer discurso, por se tratar de uma atividade socialmente contextualizada e de grande capacidade de abarcar diversas sutilezas e complexidades, é sempre uma atividade política, assim como toda atitude artística e criativa reivindica, ainda que de forma implícita ou até sob o manto ingênuo da “imparcialidade/objetividade”, uma postura estética específica, assimnecessariamente rejeitando outras posturas estéticas possíveisainda que pela mera não utilização.
A divisão, no entanto, como qualquer definição que leva em conta o fato de que umsistema intelectual sempreapresentará heterogeneidades, tem sua utilidade se pensada, aproveitando a expressão de Lafetá com o grifo dele, como a marcação de uma “mudança de ênfase” (2004, p. 30). Isto se reforça com o fato de que a “divisão” dos autores propriamente dita entre uma geração e outra é menos frequentemente questionada do que a divisão do sistema nos blocos 22 e 30, mostrando certa validade nos critérios. Pode-se pensar, por exemplo, que Graciliano Ramos de fato apresenta grande interesse no refinamento estético em seus textos, e que as propostas de Oswald de Andrade certamente abalam a ideologia cultural dominante, mas dificilmente se imaginaria Graciliano participando entusiasmado na Semana de Arte Moderna e Oswald fazendo romances sisudos sobre retirantes e a miséria nordestina. As próprias figuras participantes do sistema literário dessa época parecem reforçar esta divisão, com Mario de Andrade escrevendo textos como “Elegia de Abril”, de 1941, sobre “a nova geração” tratando-a como algo a qual ele mesmo não pertence, e os próprios autores desta nova geração fazem, em diversos ensaios para revistas culturais da época, seus balanços críticos das iniciativas do modernismo paulista de 22 como sendo algo inquestionavelmente anterior e separado deles:

“Qualquer história da avaliação do modernismo feita nos anos 30 aponta uma recusa: partindo de pontos de vista diferentes, quase todos acabam chegando a lugares semelhantes. A esse respeito pode-se dizer, no entanto, aquilo que disse José Paulo Paes sobre a relação entre os modernistas e a geração que os precedeu, a de ser uma relação conflituosa entre filhos e pai.”(BUENO, 2006, p. 51)

Ainda que apresentem estas diferenças grandes de enfoque, estas duas vertentes não deixam de manter, cada uma a sua maneira, a constante do nacionalismo literário, a preocupação ativa com a realidade circundante expressada por meio de seus trabalhos estéticos. No trabalho dos intelectuais que participaram da Semana de Arte Moderna de 22, apesar da pesada influência das vanguardas artísticas europeias e todo o cosmopolitismo advindo desta influência direta e aberta, vê-se uma postura mais positiva, mais propositiva, de reivindicações específicas a respeito de nossas cultura e da forma como nós a encaramos e encaramos a nós mesmos. Mario de Andrade, em sua belíssima e melancólica retrospectiva de 1942 “O movimento modernista”, reiteradamente descreve o movimento como “destruidor”, e este termo também aparece nas diversas críticas da geração seguinte aos modernistas, que afirmariam (não sem algum acerto) que o principal saldo do movimento modernista não foi o de produzir obras grandiosas e sim o de desmantelar o beletrismo empolado vigente então. Contudo, creio que mesmo assim é possível perceber algo de construtivo para além do desfazimento de ideologias hegemônicas desinteressantes: no próprio texto da retrospectiva,Mario de Andrade repete sua defesa de um idioma “mais brasileiro”, o que é uma reivindicação positiva (no sentido da lógica formal do adjetivo) e, assim sendo, construtiva. Uma postura “destruidora” certamente há de ter mais ataques que defesas, e a proeminência da forma do “manifesto” (gênero propenso a ter propostas de mudança) nos textos modernistas delimita a existência de pelo menos tantas defesas quanto ataques.
Já a geração de 30 haveria de criar retratos mais negativos da sociedade assim como, de forma mais indiretaque a geração anterior, da cultura brasileira como um todo, que, à visão deste novo engajamento, teria defeitos mais profundos do que a valorização de uma forma cultural supostamente pouco autêntica. A postura dessa produção intelectual é mais a de crítica e de análise (pelo meio estético) do que uma proposta positiva de mudança, ou a reivindicação de mudanças específicas. Assim sendo, não surpreende a constatação, feita em tom de reclame, de Mario de Andrade diantede uma predominância irritante (ao seu ver) da figura do fracassado esvaziado de forças:

“Observo mais uma vez não estar esquecido de que para se dar entrecho, há sempre um qualquer fracasso a descrever, um amor, uma terra, uma luta social ,um ser que faliu. Um Dom Quixote fracassa, como fracassam Otelo e Madame Bovary. Mas estes, como quase todos os heróis da arte, são seres dotados de ideais (...) mas em nossa literatura de ficção, romance ou conto, o que está aparecendo com abundância não é este fracasso derivado de duas forças em luta, mas a descrição do ser sem força nenhuma (...) existe em nossa intelectualidade contemporânea a preconsciência, a intuição insuspeita de algum crime, de alguma falha enorme”(1974, p. 190-1)

Parte considerável desta geração de 30 se constitui do novo desenvolvimento do regionalismo brasileiro, que, se em sua forma romântica e oitocentista aderiu mais fortemente ao pitoresco, o exótico, o foco na cor local, desta vez se reinventa com tons de crítica social e consciência aguda do atraso (retomando o termo de Candido). Supera-se assim de forma aparentemente definitiva a realidade do sistema literário constatada sessenta anos antes por Machado, a de que o romance brasileiro estaria isento “de tendências políticas, e geralmente de todas as questões sociais”.(1873, n.p.).
Tamanha é a consagração deste período de 30 que frequentemente é esta iteração da literatura brasileira que vem à mente de muitos defensores de uma tentativa de um maior cosmopolitismo/internacionalismo contemporâneo de nossas letras, de que a literaturabrasileirahoje deveria abrir mão inteiramente da ideia da expressão de seu lugar de escrita uma vez que o regionalismo há de ser considerado superado. Esses desejosos pelo desbravamento de “novas fronteiras literárias mais profundas” curiosamente tomam como ponto de referência de atualidade literária brasileira uma realidade que teve seu auge de consagração há oitenta anos e que, de acordo com a historiografia tecida por Luis Bueno, entrou em declínio em sua forma mais enfática na mesma década em que se firmou.
O predomínio do plano imediatamente ideológico na literatura desta década é visível pelo próprio saldo literário que tende a ser apresentado deste período, uma vez que, quando se fala de literatura dos anos 30, frequentemente se pensa em regionalismo crítico e engajamento direto, sendo que havia na época outro lado da produção literária, de verve intimista e psicológica, que acabou sendo apagada da memória da maioria dos leitores de literatura brasileira. A divisão, como sempre, não deve ser entendida de forma mecânica e estanque, uma vez que se encontra riqueza psicológica em, por exemplo, Graciliano Ramos e grande expressividade do local de fala em muitos dos autores tidos como intimistas.Difícil pensar em todo o lirismo exacerbado de Crônica da Casas Assassinada destituído de seu cenário da fazenda decadente, e até mesmo o hoje esquecido romance apontado por Luis Bueno como precursor do intimismo modernista, Sob o olhar malicioso dos trópicos, de Barreto Filho, traz em seu título sua realidade em que está inserido.
No entanto, a divisão mais uma vez se mostra viável e útil a partir da atividade circundante à escrita das obras literárias.Para tomarmos um critério duramente material e até mesmo mercadológico, podemos constatar o número de edições existentes das obras de Graciliano Ramos, o mais consagrado “autor engajado” de nosso sistema literário, com as de Lúcio Cardoso, o mais consagrado dos “intimistas” surgidos então: em 1997, São Bernardo estava em sua 67ª edição, enquanto em 2002 Crônica da Casa Assassinada estava em sua quarta. Romances frequentemente apontados como importantes desta vertente, como A Menina Morta(1954), de Cornelio Penna, sequer se encontram disponíveis nos catálogos de editoras.
Ainda que Bueno busque relativizar a situação ao constatar que esta realidade de desigualdade “deve ser creditada muito mais aos efeitos de uma crítica empenhada – que faz o papel de leitor benévolo nuns casos e exigente noutros- do que à literatura empenhada” (2006,17), é produtivo recuperar também sua constatação anterior de que “(...)a ideia de que a literatura (...) pode ser encarada como um sistema, [inclui] também aspectos que ultrapassam os limites do texto, em especial a recepção que se fez e se faz dele” (2006,15). O estudo da literatura como um sistema não deve tomar a recepção da obra como um dado de importância secundária em seu entendimento do período: vale repetir, a literatura brasileira constitui um sistema, mas a existência desse sistema não apaga suas heterogeneidades, contradições internas e possíveis injustiças de relegar ao esquecimento obras de grande valor estético. O próprio estudo sobre os modernismos feito por Lafetá, publicado nos anos 70, já mostra um apagamento total desta vertente intimista: quando o crítico fala “a vitória da linha participante retirou coisas preciosas da produção literária e levou aos descaminhos da mediocridade” (2004, p. 256), a vitória é sobre Oswald de Andrade, e não Lúcio Cardoso, que sequer figura como vencido.
Apesar dessas constatações de uma “distorção”(palavra utilizada por Bueno, também entre aspas) na produção de seu legado literário, é importante constatar a principal herança literária deste momento da literatura brasileira:

“esta vertente colaborou grandemente para a que se ampliassem as possibilidades tanto temáticas quanto da constituição de um novo tipo de protagonista para o romance brasileiro. A incorporação dos pobres pela ficção é um fenômeno bem visível nesse período (...) o pobre se transforma em protagonista privilegiado nos romances de 30, cujos narradores procuram atravessar o abismo que separa o intelectual das camadas mais baixas da população (...) Junto com os “proletários” outros marginalizados entrariam pela porta da frente na ficção brasileira: a criança nos contos de Marques Rebelo; o adolescente, em Octávio de Faria; o homossexual, em Mundos Mortos do próprio Octávio de Faria e no Moleque Ricardo, de José Lins do Rego; o desequilibrado mental em Lúcio Cardoso e Cornélio Pena; a mulher, nos romances de Lúcia Miguel Pereira, Rachel de Queiroz, Cornélio Penna e Lúcio Cardoso”(BUENO, 2006, p. 23)

Bueno ainda generaliza, a meu ver de forma válida, esta nova operação que se tornou comum em nossa literatura “Uma abertura desse tipo coloca para o intelectual (...) o problema de lidar com um outro. Esse problema foi vivido em profundidade pelos autores daquela década e bem ou mal resolvido de várias maneiras diferentes”(2006, 23).
Para retornarmos ao foco principal desta reconstituição, pode-se dizer assim que no modernismo continua-se por meio dessas duas formas diferentes a constante do nacionalismo em nossas letras, seja pela reivindicação de uma melhor integração de nossas especificidades culturais e sociais diante de um academicismo formalista tido como estranho às nossas feições autênticas, ou pelo protesto esteticamente expressado diante uma realidade de injustiças sociais profundas e moralmente injustificáveis
Como não haveria de ser diferente, ao escritor que adota estas posturas como centro de sua atividade e não encara sua tradição como algo a ser aceito em obediência e silêncio, a figura e proeminência de Machado de Assis em nossas letras vai se apresentar como um problema diante da importância do engajamento, seja ele predominantemente estético ou político. Brito Broca recupera texto publicado em 1926 na Revista do Brasil:

“[Emílio Moura, figura do modernismo] Acusava Machado de, vivendo numa época que foi talvez a dos maiores surtos de nacionalidade, ter ficado indiferente à todas as ideias vitais e tumultuosas da época “Ninguém pratica, em grau tão elevado, a arte pela arte. Nos seus livros nunca nos revelou o homem nas suas relações com o meio físico e social” (...) Em 1926, Candido Motta Filho, que vinha sendo em São Paulo o crítico do Modernismo, publicara o ensaio [em que afirmava que Machado] Não podendo em absoluto compreender o mundo exterior, tornou-se um caprichoso da forma, elaborando-a castigada e cristalina”” (1983, p. 200)

Para citar opinião convergente de figura menos obscura, pode-se recuperar uma série de textos escritos por Mario de Andrade e publicados em um jornal carioca por ocasião do centenário do nascimento de Machado. Neles, depois de um elogio obrigatório da genialidade do autor de Dom Casmurro ao início, tece-se uma série de ressalvas diante de sua obra[13]: “Acontece isso da gente ter às vezes por um grande homem a maior admiração, o maior culto, e não o poder amar” (1993, p. 53), enquanto em retrospectiva de três anos depois, “irmanava-se” de José de Alencar, com quem, embora não deixe explícito no artigo, o modernista certamente sente maior afinidade pelo seu ímpeto de expressar o Brasil e uma língua brasileira: “O Brasil hoje possue (...) numerosas tendências e constâncias sintáxicas que lhe dão natureza característica à linguagem. Mas isso decerto ficará para outro futuro movimento modernista, amigo José de Alencar, meu irmão” (1974, p. 247).
Dentre as constatações de Mario de Andrade sobre a obra de Machado está, por exemplo, uma ausência de “certo sentimento do Rio de Janeiro”, não obstante certa meticulosidade na descrição dos caminhos dos personagens:

“Machado de Assis ancorou fundo as suas obras no Rio de Janeiro histórico que viveu, mas não se preocupou de nos dar o sentido da cidade (...) se percebe que não havia aquele sublime gosto da vida de relação, nem aquela disponibilidade imaginativa que, desleixando os dados da miniatura, penetra mais fundo nas causas intestinas, nas verdades peculiares, no eu irreconciliável de uma cidade, de uma classe. Por certo há muito mais Rio nos folhetins de França Júnior ou de João do Rio, há muito mais o “quid” dos bairros, das classes, dos grupos, na obra de Lima Barreto ou no Cortiço.” (1993, p.57-8)

Tomando o critério mais abstrato da nacionalidade como um todo, Mario de Andrade o analisa da seguinte forma:

“Machado de Assis se fez o mais perfeito exemplo de a”arianização” e de civilização de nossa gente (...) Machado continua insolitamente na literatura aquela macaqueação com que a nossa Carta e o nosso parlamentarismo imperial foram na América uma coisa desgarrada. (...) Machado errou o golpe (ou acertou para si só...) preferindo a Inglaterra (...) O Mestre não pôde se tornar o ser representativo do Homo brasileiro. Por certo que Gonçalves Dias, Castro Alves, o Aleijadinho, Almeida Júnior, Farias Brito e tantos outros os são bem mais, nas constâncias em que já conhecemos reconhecidamente o homem brasileiro. A generosidade, o ímpeto de alma, a imprevidência, o jogo no azar, o derramamento, o gosto ingênuo de viver, a cordialidade exuberante(...)” (1993, p. 66)

Já no que diz respeito a linguagem, fundamental reivindicação de Mario de Andrade, o modernista não deixa de se expressar claramente:

“Escasso de nós em si mesmo, ele nos deu, no entanto, como já se tem dito, uma boa coleção de almas brasileiras e uma língua que, apesar de castiça, não é positivamente mais o português de Portugal. Talvez isto contra a sua própria vontade (...) Como arte, Machado realizou o Acadêmico ideal, no mais nobre sentido que se possa dar a “academismo”. Ele vem dos velhos mestres da língua, pouco inventivos, mas na sombra garantida das celas tecendo o seu crochet de boas ideiazinhas dentro de maravilhosos estilos” (1993, p.67)

Mario de Andrade chega a escrever no início do seu terceiro texto: “De tudo quanto me dizem a obra e os críticos de Machado de Assis, consigo ver, com alguma nitidez arrependida e incômoda, a genial figura do Mestre. Ele foi um homem que me desagrada e que não desejaria para o meu convívio” (1993, p. 65) e, ao final, “Machado não profetizou nada, não combateu nada, não ultrapassou nenhum limite infecundo. Viveu moral e espiritualmente escanchado na burguesice do seu funcionarismo garantido (...) não pôde ser protótipo do homem brasileiro” (1993, p. 68). Andrade conclui seu texto constatando “se o humorismo, a ironia, o ceticismo, o sarcasmo do Mestre não o fazem integrado na vida, fecundador de vida, generoso de forças e esperanças futuras, sempre é certo que ele é um dissolvente apontador da vida tal como está.” (1993, p. 69).
Em meio a seus critérios de valorização de uma essência brasileira, que por vezes podem parecer excessivamente idealistas ao crítico contemporâneo, encontra-se, no entanto, uma leitura que me parece bastante acertada, a do lugar relativamente problemático de Machado em nosso sistema literário: “Machado de Assis é um fim, não é um começo e sequer um alento novo recolhido em caminho. Ele coroa um tempo inteiro, mas a sua influência tem sido sempre negativa” (1993, p. 68). Em análise publicada no mesmo ano aos livros lançados sobre Machado em seu centenário intitulada “os machadianos”, Andrade, após repetir que “[Machado] não cuidou de abrasileirar conscientemente a sua linguagem”(1993, p. 138),  encerra suas leituras reiterando este ponto da não-continuidade com uma eloquente metáfora:

“não é brasileiro nem luso: é o instrumento de Machado de Assis. Como sempre sucede em arte erudita, verdadeiramente artística, isto é, livre, o fato social foi ultrapassado pelo artista. Não subjugado ou deformado. Apenas, ultrapassado. A herança passou a ser desfrutada pelo indivíduo. E o que eram moedas de ouro circulante, ouro fino da tradição, ouro preto já da terra, foi gasto na construção de um sublime jardim. Pena é que um pouco perdulariamente, porque o jardim era fechado”(1993, p. 138)

Ainda que nos pareçam incorretas, anacrônicas ou exageradas as cobranças feitas a Machado, não há de se taxar de injustas ou incoerentes as constatações do modernista, uma vez que ele as aplicou em parte ao trabalho literário de si próprio e de sua geração em sua retrospectiva de 1942, criticando sua própria geração por ser detentora de um espírito fundamentalmente aristocrático e, assim sendo, isolacionista, burlador de um elemento que ele toma como fundamental da arte,a de que se trataria de uma atividade “muito mais larga e complexa (...) e tem uma funcionalidade imediata social, é uma profissão e uma força interessada da vida”(1978, p.252) :

“nós, os participantes do período milhormente chamado “modernista”, fomos, com algumas excepções nada convincentes, vítimas do nosso prazer da vida e da festança em que nos desvirilizamos. Si tudo mudávamos em nós, uma coisa nos esquecemos de mudar: a atitude interessada diante da vida contemporânea. E isto era o principal! (...) Não tenho a mínima reserva em afirmar que toda a minha obra representa uma dedicação feliz a problemas do meu tempo e minha terra(...) e no entanto me sobra agora a sentença de que fiz muito pouco, porque todos os meus feitos derivaram duma ilusão vasta (...) faltou humanidade em mim. Meu aristocracismo me puniu. Minhas intenções me enganaram. (...) Tem mais é uma antiquada ausência de realidade em muitos nós (...)em quase toda a minha obra [há] a insuficiência do abstencionismo (...) o engano éque nos pusemos combatendo lençois superficiais de fantasmas. Deveríamos ter inundado a caducidade utilitária do nosso discurso, de maior angústia do tempo, de maior revolta contra a vida como está. (...) duma coisa não participamos: o amilhoramento político-social do homem” (1978, 252-5).

Para além da constatação feita por Lafetá de que “o projeto estético (...) já contém em si o seu projeto ideológico [pois] o ataque às maneiras de dizer se identifica ao ataque às maneiras de ver (ser, conhecer) de uma época” (2004, p. 20)e a reclamação inicial de Andrade diante da produção de 30 por “tomar esse imperativo econômico por sua norma de conduta e única lei” (1974, p. 187), explicita-se de forma memorável nesta retrospectiva o arrependimento do modernista diante de sua atuação tida por ele mesmo como insuficiente.
O movimento seguinte, da geração de 30, por sua vez, dificilmente produziria tais arrependimentos, uma vez que “irradiava – certa ou errada – uma vontade de participação na vida nacional que vinha revelar – mais uma vez na história de nossa literatura – seu caráter empenhado e seu desejo de contribuir para a formação do país” (LAFETÁ, 2004, p. 73). Seu relacionamento com o empenho era mais explícito e contínuo, dando a tônica que seguiria dominante em nossas letras durante a ditadura.
Pode-se citar aqui um precioso texto de Jorge Amado, que ao início de carreira, nos anos 30, era romancista exemplar das preocupações coletivistas que se fortaleciam então. Em breve ensaio de 1934, intitulado “Apontamentos sobre o Moderno Romance Brasileiro”, publicado no primeiro número da revista Lanterna Verde, o romancista expõe claramente suas opiniões literárias e políticas:

“Canaan foi o primeiro a se preocupar com o problema do Brasil, a tentar um documento. É o mais próximo de nós no tempo e talvez pelo sentido da obra. Porque Canaan já há um grito. O sentido de documento, de grito, é a coisa que surge mais clara no novo romance brasileiro. Não é negócio de escola, besteira de grupo. É pensamento natural que não poderia deixar de acontecer (...) Grito, sim, de populações inteiras, perdidas, esquecidas, material imenso para imensos livros (...) romancistas novos do Brasil, revolucionários ou reacionários,  nos seus livros vive um clamor, um grito que era desconhecido e começa a ser ouvido”(1934, p. 48-9)

O romancista explicita um pensamento profundamente interessado em seu contexto:

“Hoje, na era do comunismo e do arranha-ceo, da habitação coletiva, oromance tende para a supressão do Heroe, do personagem (...) que é sempre uma coisa onanimada que vive da vida dos que nella trabalham ou habitam. Cito exemplos daqui: Em Menino do Engenho o personagen não é o menino Carlos de Melo. É o Engenho. O drama de um único sugeito não interessa. Interessa o drama coletivo, o drama da massa, da classe, da multidão.”(1934 p. 49)

A tomada de posições se mostra obrigatória ao intelectual e ao artista:

“Hoje a situação é de tal modo trágica que aquele que não está de um lado está necessariamente de outro. O conceito pode não agradar, mas é verdadeiro. (...) Estes que se definem são honestos. O que não se admite são os que querem agradar a todo mundo, a Deus e ao Diabo, se colocando na cômoda posição de romancistas puros e sem cor política. Em 1934, isto não pega mais...” (1934, p. 50-51)

Pode parecer pouco convincente tomar como exemplo de uma geração um autor como Jorge Amado, de posição não tão eminente em nosso cânone devido à baixa opinião que intelectuais tendem a ter de sua obra, mas muita da crítica feita aos seus romances se dá por conta de uma guinada que poderia ser descrita como “festiva” em suas obras, a partir da qual passa a predominar certo otimismo, sensualismo e ingenuidade. Tal guinada só se deu bem depois da escrita desta quase-manifestomal disfarçado de “análise” pelo título a ele dado. Àquela época, Amado publicava romances bem mais sisudos do que Dona Flor ou Gabriela, bem mais próximos do ímpeto literário comum de seus companheiros. Para tal, basta comparar a negação da importância do sujeito citada acima com esta descrição de Antônio Candido sobre a literatura do período:

“nesse tipo de romance, o mais característico do período e frequentemente de tendência radical, é marcante a preponderância do problema sobre o personagem. É a sua força e a sua fraqueza. Raramente, como em um ou outro livro de José Lins do Rego (Banguê) e sobretudo Graciliano Ramos (S. Bernardo) a humanidade singular dos protagonistas domina os fatores do enredo: meio social, paisagem, problema político. Mas, ao mesmo tempo, tal limitação determina o importantíssimo caráter de movimento dessa fase do romance”(2010, p. 131)

Retomando nosso índice de uma relação problemática entre o eminentemente literário e o forçoso empenho político, não é grande surpresa que Machado de Assis não caiba neste pensamento enfático de Amado, que abre seu ensaio listando autores oitocentistas, àquela época já canônicos, e não expressa muito receio em descrever Machado de Assis desta forma: “Desses romancistas, o maior delles – Machado de Assis, nada tem de comum conosco. É tão brasileiro como inglez, ou menos”(1934, p.48).
Em 1961, tomando posse na ABL e ocupando justamente a cadeira de Machado de Assis, Amado teorizaria a respeito da literatura brasileira desta forma:

“São os dois caminhos do nosso romance, nascendo um de Alencar, nascendo outro de Machado, indo um na direção do romance popular e social, com uma problemática ligada ao país, aos seus problemas, às causas do povo, marchando o outro para o romance dito psicológico, com uma problemática ligada à vida interior, aos sentimentos e problemas individuais” (BUENO, 2006, p. 31)

Percebe-se a separação dos dois autores e suas supostas respectivas vertentes, metaforicamente desenhados como caminhos, e pouquíssimos discutiriam a auto-classificação do romancista baiano de que “sou um rebento da família de Alencar”(1961, n.p.). Ainda que o autor busque amenizar a separação complementandoao fim de seu discurso que “a meu ver é da soma dessas duas vertentes, da soma de seus valores, que se forma o complexo do romance brasileiro. Sem Alencar não teríamos romance brasileiro. Não o teríamos sem Machado de Assis.”(1961, n.p.), fica feita a separação, e se complementarmos o tema geral do discurso de uma rebeldia e radicalismo de juventude que vai se transformando em maturidade com o passar dos anos, é fácil perceber que esta conciliação das duas vertentes diferentes (cuja mera existência como entidades diferentes é na verdade bastante questionável) certamente não se operava no jovem e radical escritor de 1934. Como se a auto-rotulação do autor amadurecido não bastasse, a comparação da brevíssima descrição indiretamente depreciativa de Machado como não sendo suficientemente brasileiro com seu entusiasmo radiante ao falar de Alencar certamente sela qualquer dúvida a respeito de seus critérios de valorização literária: “houve também a imensa força poética de José de Alencar, deturpador da realidade é certo mas de tamanha imaginação que creou outra realidade que ainda hoje maravilha e alegra inúmeras existências” (1934, p. 48).
O entusiasmo vale mais do que a realidade, parece ter sido esta a pensamento dominante de muito da literatura brasileira.



Capítulo 3 -Por que tanto Brasil?, ou a obsessão de um sistema

Há vários motivos que podem ser apontados como responsáveis desta tendência contínua do nacionalismo em nossa produção literária, a maioria deles relacionados com nossa condição de país periférico (econômica e culturalmente) no Ocidente. Roberto Schwarz abre seu ensaio “Nacional por Subtração” colocando esta questão de forma eloquente e apropriada:

“Brasileiros e latino-americanos fazemos constantemente a experiência do caráter postiço, inautêntico, imitado da vida cultural que levamos. Essa experiência tem sido um dado formador de nossa reflexão crítica desde os tempos da Independência. Ela pode ser e foi interpretada por românticos, naturalistas, modernistas, esquerda, direita, cosmopolitas, nacionalistas etc., o que faz supor que corresponda a um problema durável e de fundo. Antes de arriscar uma explicação a mais, digamos portanto que o mencionado mal-estar é um fato.” (2006: 29, grifo do autor).

Tendo origem/raiz europeia toda nossa cultura letrada(na qual a literatura está incluída), praticamente todos os temas e categorias de nosso pensamento (o indivíduo na sociedade, as relações de gênero, etc.) nos parecem importados, isto é, vindos de fora, oriundos de uma realidade que não é exatamente a nossa. Isto se reflete até (ou mesmo principalmente) na produção artística, que supostamente seria a expressão mais íntima de nossa subjetividade: o que fazer desta expressão subjetivase todas as formas artísticas (o romance, o soneto, a sinfonia, a sonata, a pintura e escultura, da peça de teatro à performance) são todas diretamente oriundas da Europa, de uma realidade cultural dotada de um fundo históricointeiramente diverso do nosso? Esta dificuldade se estabelece sem mesmo que se taxe o velho continente de nosso antigo opressor, de ex-inimigo a ser visto até hoje com desconfiança.Este problema se torna especialmente agudo diante do culto da individualidade do artista (aqui cercado de incompreensão em sua sociedade precária), da originalidade (em meios de expressão sempre importados) e da suposta comunhão com o coletivoem que habita, cultoque se desenvolveu no pensamento artístico (e, de certa forma,também no analítico e interpretativo) a partir do romantismo: o valor que se persegue se torna inalcançável até mesmo antes de se começar qualquer empreitada intelectual. Um lugar adequado do artista, a originalidade “pura” e a autenticidade genuínade sua expressão nunca estarão a dispor do artista brasileiro.
Depara-se com esta estrutura problemática constantemente nos estudos literários, em que um crítico que busca um ponto de vista do mundo midiático de excesso de imagens, ou do feminismo, ou das relações de poder do capitalismo pós-industrial, e assim adiante, precisa necessariamente tomar como ponto de partida um teórico estrangeiro, que por sua vez vai necessariamente elaborar suas categorias baseado em um sistema cultural que não é o instaurado no Brasil e muito provavelmente não leva em consideração características específicas da vida no Brasil. Parte significativa do esforço do intelectual latino-americano que se interessa por assuntos que não se limitam ao Brasil mas que se interessa também pelo meio circundanteserá o de transpor estas categorias estrangeiras para uma realidade diferente, tarefa nada fácil e que mesmo quando bem executada corre o risco de ter seus esforços tratados como apenas um exercício de importação/apropriação, isto é, algo que de alguma forma não é inteiramente “genuíno”. Já uma tentativa mais ambiciosa de se criar novas categorias para um pensamento que abarcaria mais do que a experiência brasileira há de ser taxado por muitos como alienado de sua realidade circundante, europeísta ou americanizado, por necessariamente ter de passar muito de seu tempo e esforço pensando sobre o desenvolvimento cultural e histórico de países que não são o Brasil.
O único assunto em que não se corre este riscode soar importado ou alienado é o do pensamento e estudo a respeito da própria nacionalidade, o que haveria de ser o Brasil e o que é ser brasileiro. Embora as formas de análise e investigação (o ensaio, a pesquisa, ou até mesmo o romance) deste assunto sejam todas importadas, assim como é também o idioma que se utiliza para escrever esses trabalhos, pelo menos o conteúdo teria algo de não-importado e de não-analisado (ou pelo menos não analisado de forma extensa) pelos intelectuais do Centro.Assim sendo, o assunto da nacionalidade é algo que tende a soar ou parecer mais autêntico e “verdadeiramente nosso”.
O assunto nacional conta com pelo menos duas vantagens estruturais em relação a todos os outros possivelmente adotados por intelectuais brasileiros. O primeiro é aquilo que se pode chamar de “especialidade natural”, que haveria de compensar a precariedade material e ideológica do trabalho intelectual no Brasil: enquanto intelectuais dos países centrais contam com mais investimento e um lugar e papel mais orgânicos dentro da sociedade, só o intelectual brasileiro teria a experiência do que é ser brasileiro, com todas as ineficiências e injustiças de nosso sistema social. Se o intelectual escolhe o Brasil como assunto de estudo, a experiência amarga destas dificuldades todas se transforma em matéria prima possivelmente indispensável para o seu trabalho acadêmico ou artístico. Como coloca Mario de Andrade, com honestidade admirável, em sua leitura dos poetas que lançavam livros em 1930 (entre eles, Drummond e Bandeira): “Só mesmo o nacionalismo que nos toca essencialmente para conseguirmos viver em paz com a nossa terra(...)”(1976, p. 41).
A outra vantagem de se escolher este assunto é o do que necessariamente se estabeleceria de uma continuidade interna, o trabalho intelectual contemporâneo sobre o país que busca por uma base nas obras do passado passará necessariamente (seja pela refutação, aproveitamento ou alinhamento total) pelos trabalhos elaborados anteriormente naquele mesmo contexto social, sem que se necessite passar pelo processo de “importação” de conceitos base e as dificuldades de legitimação/autenticidade descritas acima. Ainda que se possa dizer que existe bastante de Max Weber em Raízes do Brasil, o livro de Sérgio Buarque de Hollanda decerto é menos dependente da obra do pensador alemão do que, por exemplo, críticas pós-estruturalistas brasileiras são dependentes dos principais pensadores do pós-estruturalismo, todos eles estrangeiros. Por mais que se goste de acreditar que o intelectual em seu preparo e cultura consegue superar o deslumbramento quase instintivo do brasileiro comum diante daquilo que é oriundo de um país central, a frustrante experiência cotidiana do sistema intelectual brasileiro (sua precariedade material, seus favoritismos injustificados, a fragilidade das instituições,etc.) certamente exerce sua influência de idealização de um contexto menos dificultoso e assim colore nossa recepção daquilo que vem de fora. Esta continuidade interna e de certa forma incontornável de que se reveste o trabalho intelectual que adota a nação como objeto de interesse desarma o problema apontado por Roberto Schwarz, que, no fundo, pode soar como uma defesa da escolha do nacionalismo como objeto:

“vejamos algo da questão em nosso campo. Nos vinte anos em que tenho dado aula de literatura assisti ao trânsito da crítica por impressionismo, historiografia positivista, new criticism americano, estilística, marxismo, fenomenologia, estruturalismo, pós-estruturalismo e agora teorias da recepção. A lista é impressionante e atesta o esforço de atualização e desprovincianização em nossa universidade. Mas é fácil observar que só raramente a passagem de uma escola a outra corresponde, como seria de esperar, ao esgotamento de um projeto; no geral ela se deve ao prestígio americano ou europeu da doutrina seguinte. Resulta a impressão – decepcionante-da mudança sem necessidade interna, e por isso mesmo sem proveito (...) a cada geração a vida intelectual parece recomeçar do zero”(2006, p. 30).

            Esta problemáticaintrínseca à brasilidade é anterior mesmo ao próprio Brasil independente: encontram-se sinais fortes disto no nosso período colonial, possivelmente mais fortes do que em qualquer outro período. Para tratar dessa situação, Vianna Moog cria em seu livro Bandeirantes e Pioneiros uma categoria bastante interessante, que, apesar de seu escopo específico e historicamente situado, ainda serve de explicação para muitas das dificuldades vividas até hoje pelo brasileiro, não se restringindo apenas ao trabalho intelectual. Trata-se do mazombo.
Explica o autor que o termo “brasileiro” era praticamente inexistente “até meados do século XVII” (1966, p. 116), que, antigamente, “brasileiro”era o termo utilizado ou para o explorador da madeira específica (quando o contexto do uso do termo era o colonial) ou o retornado enriquecido da colônia (quando o termo era utilizado na metrópole). Acrescenta o autor que “os filhos de portugueses nascidos no Brasil eram os mazombos, categoria social à parte, a que ninguém queria pertencer (...) fazia até viagens a Portugal com o único objetivo de apagar o epíteto”(1966, p. 116). Tratando-se de um lugar sob todos os aspectos direta e explicitamente submetido a outro superior, uma inferioridade que pagava impostos e em troca podia esperarapenas investimentos de ampliação de controle político e econômico, a cultura ligada a esta realidade material estendia esta submissão e inferioridade às pessoas que a compunham. A pessoa nascida nessas terras, desde os tempos iniciais de colônia, já precisa superar uma deficiência desde seu princípio: ainda que hoje se expresse menos por nascença do que pelo seudesenvolvimento em contextos insatisfatórios, o problema não muda significativamente.
            Como consequência desta inferioridade, interiorizou-se toda uma postura diante das atividades sociais, não restritas ao mundo letrado:

“E em que consistia esse mazombismo brasileiro? Tal como nos primeiros tempos coloniais, consistia essencialmente nisto: na ausência de determinação e satisfação de ser brasileiro, na ausência de gosto por qualquer tipo de atividade orgânica, na carência de iniciativa e inventividade, na falta de crença na possibilidade de aperfeiçoamento moral do homem, em descaso por tudo quanto não fosse fortuna rápida e, sobretudo, na falta de um ideal coletivo, na quase total ausência de sentimento de pertencer o indivíduo ao lugar e à comunidade em que vivia”(1966, p. 122)

            Viana Moog estrutura sua argumentação ao redor da dicotomia do Brasil diante dos Estados Unidos, como o colonizador veio a esta terra com intuitos de mera exploração para se enriquecer e retornar, enquanto o estadunidense foi para criar um novo lar para si sem qualquer retorno no horizonte. Apesar de todas suas idealizações e categorias estanques e perfeitamente idealizadas (e, diferente de Raízes do Brasil, sem a presença de qualquer ressalva de que se trata de tipos ideais), os problemas descritos por Vianna Moog certamente soam familiares a qualquer brasileiro dotado do mínimo de senso crítico. Ainda que não se tenha mais uma pátria originária para o retorno, e nem mesmo planos de fuga para o exterior, esta postura de exploração e a busca de oportunidades para ganhos imediatos provavelmente é muito mais comum em brasileiros (este nome contemporâneo para mazombos) do que se encontra em países desenvolvidos.
Esta insatisfação perpétua com o lugar e a sociedade em que se habita foi desenvolvida em uma fórmula muito mais conhecida poucos anos depois: a do “complexo de vira-lata”, criada por Nelson Rodrigues em uma crônica futebolística de 1958, anterior à ida do time Brasileiro à copa do mundo que seria sua primeira vitória. O complexo, sucintamente definido como “a inferioridade que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores (...)” (1993, p. 51) é pouco desenvolvido pelo dramaturgo, o que é de se esperar considerando o gênero textual em que foi expressado, a crônica esportiva. Curiosamente, é neste mesmo gênero textual (e o fato de que se trata do texto não-ficcional mais lembrado do dramaturgo) que jaz seu grande valor, o de que esta problemática do ser brasileiro não se restringe ao meio intelectual, como pensa Mario de Andrade ao dizer que “o complexo de inferioridade sempre foi uma das grandes falhas da inteligência nacional” (1976, p. 191). É possível ainda contrapor esta ideia de uma auto-imagem negativa como especificidade do intelectual brasileiro com outra crônica do dramaturgo, de 1968, em que ele reafirma: “o brasileiro tornou-se um Narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade – não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a auto-estima”. (1997,p. 21).
Se Sérgio Buarque de Hollanda abre seu famoso Raízes do Brasil falando em forma genérica do problema de ser brasileiro, como se seu autor fosse um brasileiro comum entre quaisquer outros e a erudição do resto do livro não servisse como uma espécie de contra-atestado desta ideia de que seu autor é apenas um brasileiro comum, a simplicidade argumentativa de Nelson Rodrigues e seu objeto de discussão inequivocamente popular, o futebol, mostra efetivamente o como este problema é presente de forma mais disseminada do que pode parecer para nós, do alto de nossos estudos de humanas impressos em tiragens limitadíssimas e discussões frequentemente iniciadas e encerradas brevemente mencionando alguns nomes respeitados.
O complexo de vira-lata, como “conceito”, foi criado para definir com maior expressividade um problema específico, isto é, a situação do futebol brasileiro que lhe era contemporânea, mas decerto sua aplicabilidade é, assim como os conceitos anteriormente citados, de grande abrangência.Se trouxermos o pensar desta postura problemática do brasileiro a respeito de si mesmo e do contexto que o rodeia para o campo da produção cultural, o problema se torna de imediato visível. A impressão que se tem é que diante desse cenário uma dicotomia aparentemente incontornávelse faz impor: ou se busca recusar o contexto, pensando-se ou declarando-se inteiramente cosmopolita (ou apenas desejando ser, eternamente tristonho de não se ter nascido em Paris), ou abraça-se a questão nacional por completo, fazendo dela centro de toda sua produção, atacando de frente o problemanuma tentativa de superá-lo e assim, de certa forma, se tornando parte dele. Ou o intelectual finge ignorar o problema da precariedade de seu lugar, brevemente vituperando os Deuses quando se depara com os momentos cotidianos em que este problema se torna uma incontornável realidade, ou toma o problema como assunto principal de seus esforços, alcançando assim uma espécie de nova liberdade ao mesmo tempo em que se prende mais diretamente a ele.
Luiz Costa Lima afirma que muitas destas questões do intelectual periférico se relacionam com o fato de que a atividade intelectual em si historicamentetende a não ser encarada pela intelligentsia brasileira com a importância ou autossuficiênciaque éencarada pelos intelectuais do Centro, e que o pragmatismo (já presente no período romântico, como observou Candido e busquei resgatar neste trabalho) é apenas uma faceta desta falta de importância. Assim sendo, qualquer pensamento só teria valor quando imediatamente voltado à atuação, só justificável se resulta em mudanças inteiras na postura do individuo e, melhor ainda, de seu coletivo. Como se defende Mario de Andrade, em sua crítica à geração de 30:

“nós, os modernistas de minha geração, sacrificávamos conscientemente, pelo menos alguns, a possível beleza das nossas artes, em proveito de interesses utilitários. (...) fomos descobrir, mais nas revistas de combate que nos livros de filosofia, a palavra salvadora (...) que acalmava as nossas ambições estéticas maltratadas: pragmatismo.A desgraça é que a palavra deslumbrou. E deslumbrou demais numa terra e coletividade pouco afeita a estudos concienciosos e que, se libertando aos poucos de suas tradições religiosas, não se preocupava de preencher o vazio ficado com uma qualquer outra conceituação moral da inteligência. Só é verdade o que é útil, e toca o zabumba ensurdecedor dos pragmatismos. Pragmatismo ou displicência nova?” (1974, p. 191-2)

Outro sintoma dessa falta de importância é certamente o fato de que, na maioria esmagadora dos casos históricosem nossa literatura, o trabalho intelectual não eraa atividade publicamente dominante da vida de seus atuantes, e sim servia como uma espécie de adendo (ou distração) aos seus outros (provavelmente públicos) deveres profissionais. Citando exemplos mais recentes, Guimarães Rosa, Vinícius de Moraes e João Cabral de Melo Neto, publicamente falando, seriam assim escritores semelhantes, por todos serem diplomatas que, uma vez ou outra, colorem seu tempo livre e suas reputações pessoais(atitude de grande importância, em se tratando de uma cultura personalista como a nossa) com alguns fazeres literários. Ainda que pessoalmente dessem muito mais importância ao seu trabalho estético do que à sua carreira pública (Vinícius de Moraes sendo um caso mais claro disto), e que este trabalho estético tenha rendido bons frutos, não deixa de estar bem demarcado o lugar secundário (como um passatempo ilustrado) do trabalho intelectual nas relações discursivas da sociedade.
O mesmo tipo de situação existiu no trabalho crítico brasileiro até que aparecessem alguns inícios de sistema acadêmico com a fundação das universidades; ainda assim com a montagem deste aparato de apoio material e institucional, precisa se deparar diariamente com a precariedade de seus recursos e a precariedade da sociedade que o rodeia e o sustenta, a fraqueza desta mesma sociedade fortalecendo a demanda constante do pragmatismo.
No capítulo “Literatura e Sociedade na América Hispânica” de seu livro Sociedade e Discurso Ficcional, Luiz Costa Lima dizque deste pragmatismo, imediatismo e ausência de lugar próprio das iniciativas intelectuais decorre o caráter geral e globalizante dos livros produzidos e o “direcionamento histórico ou histórico-crítico” (2007, p. 327) que se vê em quase todos os trabalhos que são consagrados pelo sistema intelectual.O caráter globalizante decorre da falta de meios específicos e especialistas para se discutir as ideias, e o elemento histórico serve de lastro de pragmatismo, pois se a precariedade da sociedade parece negar implicitamente voos abstratos de maior duração ou profundidade (por taxá-los de intelectualismo vazio, desconectado com os problemas “sérios e verdadeiros” do país).A História aparece nos esforços de estudos de humanidades como menos abstrata do que outros aliados possíveis do estudo de literatura (como a filosofia, antropologia, etc.), por ser, em sua forma mais ingênua (e, portanto, sua forma mais difundida), um relato daquilo que de fato aconteceu no passado, não deixando de ser assim uma espécie de pragmatismo dentro das possibilidades dos discursos intelectuais.
Mais do que uma escolha metodológica ou ideológica (como pode parecer, diante da valorização que o marxismo coloca na disciplina), a escolha deste lastro de historicidade (ou pelo menos a frequência em que é feita esta escolha) fica como uma consequência da precariedade do sistema, que só consegue plenamente sustentar iniciativas intelectuais calcadas na fria e estrita (e suposta)“realidade dos fatos”, ainda que seja a de acontecimentos do passado. Pois, como afirma Costa Lima:

“para que exista um sistema intelectual (...) é preciso que a sociedade reconheça em seus membros “sinais” particulares, i.e., um critério de produtividade diverso do que se exige em outros incluídos noutros centros de produção; um princípio de lealdade distinto do vigente entre os membros (...)” Só a partir destes parâmetros pode-se entender a clássica distinção gramsciana entre o intelectual tradicional e o orgânico. Ora, à medida que este último inexiste na América Latina no século XIX, também aquele é afetado. Se o orgânico aqui se converte em um desgarrado, o primeiro seria antes um fantasma (...) os intelectuais passam a se identificar por traços tomados de empréstimo de outros subsistemas e/ou apreendidos por comparação com sociedades que possuam um efetivo subsistema intelectual. No primeiro caso, são reconhecidos em função de seu ajuste ou não com o subsistema político (...)o critério político concede ao intelectual uma identificação local (Mesmo hoje, posso ignorar tudo o que um Sarmiento de fato escreveu, bastando-me saber que pertenceu à geração dos liberais no poder depois de Rosas)”. (2007, p. 338)
           
            Dificilmente se considerará um esforço muito grande trazer esta última colocação de Costa Lima para o objeto de estudo desta dissertação. A obsessão por política imediata da nossa intelectualidade se dá não só pela importância que a políticade fato tem, ou pelos ares de emergência que ela toma em contextos de precariedade social, muito menos por um acerto contínuo na escolha de rumos de nossos intelectuais, e sim por uma falta de lugar próprio das iniciativas intelectuais, que tomam emprestado esta importância de outro campo:da importância patente do posicionamento político se consegue alguma força para as iniciativas intelectuais em uma sociedade que não as valoriza.Nesta forma de pensar, Marilena Chauí, mais do que uma intérprete de Spinoza e divulgadora do Merlau-Ponty, é primeiramente uma ideóloga do PT.
Luiz Costa Lima também toma Machado de Assis como medida desta constante, dizendo que “se não consigo identificar politicamente um autor, como Machado, tendo a vê-lo com desconfiança ou procuro reunir peças para sua “salvação”” (2007, p. 338). Se este caráter “escorregadio” de Machado historicamente se mostrou de dificultosa apreciação por parte dos intelectuais mais empenhados (isto é, a maioria dos intelectuais consagrados), este tipo de demanda atingiria seu ápice durante a ditadura militar, em que a crise social da democracia parecia acrescentar um peso enorme a esta obrigação de empenho.
Toda esta retrospectiva se faz importante para a reconstituição desta constante (ou obsessão) nacionalista de nossa literatura, fator a meu ver decisivo para o entendimento da produção literária brasileira (ou da cultura como um todo) durante o nosso período ditatorial. Conforme se constatou, durante o período militar chegava a ser difícil encontrar um livro bem-recebidoque não mencionasse o regime autoritário, seja por metáforas ou até mesmo de forma direta (ainda que omitisse sem grande sutileza os nomes próprios), tornando-se assim o assunto obrigatório por parte dos artistas textuais brasileiros naquela situação.
Como já deve ter sido intuído por muitos dos poucos que lêem estas páginas, penso que o procedimento efetuado pelo sistema literário brasileiro naquele momento difícil foi apenas o de uma espécie de transferência de objeto de obsessão, do nacionalismo literário historicamente consagrado ao posicionamento contrário ao poder vigente, das questões de brasilidade às questões de liberdade (no Brasil). Manteve-se a estrutura básica que orientava as iniciativas literárias, mudou-se apenas o assunto, como uma mesma forma musical sendo praticada em uma variação diferente, embora de origem reconhecível.Isto, claro, se é que não é possível afirmar que esta postura de rebeldia contra a ditadura não é apenas mais uma versão extremada e sob enorme pressão do mesmo nacionalismo literário. Quando o assunto é escorregadio como o da nação, o que seria mais certamente brasileiro do que o Estado e o Governo que o controla? É interessante lembrar a definição anti-romântica apresentada por Hobsbawm, que afirma que a nação nada mais é do que um grupo de pessoas unido pela subjugação a um Estado e suas leis.  Que tópico abordaria mais inequivocamente o Brasil do que falar dos problemas (naquela situação de autoritarismo, particularmente óbvios e graves) que se originam de seu governo?
Gastou-se mais tempo com o período romântico do que com os outros porque foi com ele que se estabeleceu de forma mais definitiva as várias constantes da vida intelectual e da atividade literária no Brasil; as seções seguintes tratariam apenas de confirmar a continuidade ou de mencionar as variações em cima desta base estabelecida no século dezenove. Como já foi dito, o foco ao tratar dos diferentes períodos de nossa literatura se manteve naquilo que interessaria posteriormente ao período-objeto deste estudo, de forma alguma tendo a pretensão de servir de algo mais do que uma ferramenta para o entendimento do que será analisado mais adiante. Para os propósitos deste estudo, o que interessa neste passado todo aqui relembrado é justamente o que ele tem de herança e inércia para a atividade literária desenvolvida naquele período.
Os estudos de crítica literária elaborados anteriormente sobre este períododão pouco realce a esta questão da continuidade: ou pegam um único período e elaboram uma conexão com a produção dos anos 70 (como Janete Gaspar Machado em seu Os romances brasileiros dos anos 70: fragmentação social e estética, ao falar das heranças dos modernismos) ou trazem um capítulo meio solto, com aparência de obrigatoriedade/imposição acadêmica para a obtenção do título perseguido com o estudo, isto quando não é totalmente ausente qualquer elaboração de conectividade com períodos literários anteriores; a necessidade estrutural do recorte por vezes opera uma desarticulação problemática do período com o sistema no qual ele se insere.
Como o ponto fulcral de meu interesse no estudo do período ditatorial é justamente a forma que toda a produtividade equalidade literárias dos anos 60 e 70, surgidas em um contexto político bastante desfavorável em que a atuação intelectual encontrava-se violentamente cerceada pelo Estado autoritário, não foram capazes de se sustentar e continuar com a supostamente libertadora abertura política, tem-se a continuidade como ponto de interesse principal.Nada mais natural, portanto, do que se estabelecer a continuidade deste período dos anos 70 com os períodos anteriores, ainda mais se levarmos em conta que os períodos anteriores foram também regidos por uma obsessão específica, seja a de definir uma nacionalidade ou de se melhorar tal nação, apontar mazelas sociais desta nação no intuito de melhorá-la ou reformar ideologias estéticas vigentes, modificando o pensamento vigente da sociedade ou, pelo menos, do sistema intelectual. Todas estas obsessões nada mais são do que variações em cima do nacionalismo literário fundado de forma definitiva pelos românticos, e a obsessão de nossos autores se posicionarem na literatura, das mais variadas maneiras, como estando contra o regime militar e seu autoritarismo ditadura nada mais é do que a mais nova variação desta mesma constante.
Seria de se pensar que uma constante intelectual que sobrevive à opressão de uma ditadura de vinte e um anos de duração poderia se garantir como algo eterno em nosso sistema; no entanto, ao dedicarmos algum tempo à produção literária brasileira dos últimos quinze ou vinte anos, percebemos no geral uma mudança bastante drástica na forma de encarar esta questão eterna, ou, para ser mais preciso, uma mudança na forma de não encarar esta questão. O país ainda está lá (se entendermos a palavra pela sua etimologia, de paisagem), mas dificilmente se encontra a nação figurando como essência ou centro,quando se encontra, certamente não é a mesma estabelecida pelo nosso cânone dificilmente estabelecido.
Não creio que este deslocamento brusco de nosso sistema literário tenha ocorrido por acaso, e este estudo sobre continuidade tem a ambição de realçar elementos que, espero eu, serão capazes de iluminar a literatura brasileira não apenas do período ditatorial, como também a dos períodos anteriores e do atual.Ainda que não renegue os primeiros estudos, este trabalho conta com a pesquisa mais recente feita sobra o período da ditadura militar que,a medida que vai se afastando historicamente, se mostra capaz de uma postura mais equilibrada em relação aos problemas do período. Trata-se de um assunto que suscita as mais emocionadas reações e memórias, e frequentemente o pesquisador que escolhe este assunto se depara com obras que ainda trabalham sob as dicotomias maniqueístas vigentes naquele período, um mundo constituído exclusivamente por torturadores e stalinistas, porões e gulags, americanos exploradores e soviéticos invasores. Mantém-se, assim, a mesma lógica de “amigo ou detrator” que governou (e em grande parte ainda governa) as relações sociais, explicitamente políticas ou não, no Brasil, sem que exista espaço para o elogio comedido ou a crítica construtiva. Ou você está conosco, ou está com “eles”.
Não creio que a palavra “relativismo” seja adequada para descrever esta postura que almejo, já que a palavra transmite uma ideia de amenização e de diminuição que não é apropriada quando o assunto é a ditadura em uma cultura de memória curta como a brasileira; trata-se de dar o peso adequado e justo às ocorrências daquele período, fugindo dos maniqueísmos simplificadores. Como um exemplo rápido deste maniqueísmo, pode-se citar o exagero recorrente que é a menção da influência estadunidense durante o golpe e na atuação da repressão às dissidências; já o recente livro O Grande Irmão(2008), de Carlos Fico, mostra o tamanho exato da atuação do tio Sam em terras brasileiras: apoio moral, preparo logístico para auxílio material e atuação “real” praticamente inexistente.O golpe foi inteiramente executado e “planejado” por brasileiros, e a ausência total de resistência ao “movimento revolucionário” tornou inteiramente desnecessária a ajuda efetiva que os Estados Unidos pretendiam dar.
Não se trata de inocentar os americanos, que realmente possuem apreço demasiadamente baixo pela forma democrática quando se trata de países que lhe exportam matéria-primae importam produtos industrializados e que de uma forma ou de outra se mostram desinteressados em permanecer naquela situaçãosubjugada, e certamente o apoio moral de um país como os Estados Unidos exerceu sua influência nas iniciativas brasileiras de tomada de poder (ou, no caso de Goulart, na ausência de iniciativas de se enfrentar o golpe), mas daí a se afirmar, como qualquer um já escutou, que o golpe militar foi arquitetado e articulado inteiramente com o auxílio e a orientação (ou até mesmo a imposição) de Washington é apenas mais um dos exageros frequentemente cometidos por entusiastas politizados ao tratar da ditadura. Raramente se menciona nesses textos e falas a importância que a eleição de Jimmy Carter, com sua contínua condenação pública de regimes opressores, teve para pressionar o governo militar durante a reabertura (bem narrada pelo capítulo “Bye Bye Brother”, no livro A ditadura Encurralada, de Elio Gaspari). Também não se menciona com tanta frequência a reação dos Estados Unidos ao AI-5:

“suspendendo qualquer ajuda que pudesse caracterizar apoio à ditadura militar. Duas iniciativas importantes estavam prontas para serem decididas pelo presidente Johnson e foram interrompidas: a venda do jato Douglas A-4 e o início das negociações do pacote de assistência para 1969 (...) o secretário de Estado sugeria um apelo algo descrente ao governo brasileiro para que abandonasse o Ai-5, mas orientava a embaixada no sentido de que essa posição fosse levada com “um estilo calmo, amigável e franco, sem aparência de dramatismo, ameaça, tutela ou dirigismo” ”(FICO, 2008, 204).

Trata-se de apenas mais uma das maneiras em quese nega implicitamente ou se subestima seriamente a capacidadebrasileira, frequentemente exercida, de se tomar rumos inteiramente equivocados.
PARTE DOIS - Ditadura e cultura
           
            Capítulo 4 - Ponto de partida

            O elemento que primeiramente se destaca no entendimento contemporâneo do período ditatorial é de que, semelhantemente a narrativas como as sobre a Guerra Civil Espanhola e, provavelmente por outros motivos, as da Guerra do Vietnã, ele acaba por se encaixar muito bem na categoria benjaminiana da “história dos vencidos”, isto é, uma inversão empírica da máxima que diz que a história é sempre contada pelos vitoriosos. Gaspari, do alto da autoridade dos quase vinte anos de escritura de seus livros sobre a ditadura, afirma que “Pode-se estimar que entre 1979 e 2000, para cada dez livros de memórias e biografias de oposicionistas, publicou-se apenas um relacionado com as lembranças ou a vida dos hierarcas da velha ordem” (2002, p. 37). Como um exemplo numérico, pode-se pegar a bibliografia de quase 80 páginas sobre a ditadura militar brasileira reunida por Carlos Fico em seu livro Além do Golpe, que faz constar 23 obras sob o subtítulo específico de “Memórias de Militantes da Esquerda” (2004, p. 192-193) e não possui um subtítulo específico para as memórias dos militares envolvidos.
            Carlos Fico coloca a questão em termos inequívocos: “são raros, hoje em dia, os que defendem a ditadura militar, mesmo os que se beneficiaram diretamente dela” (2004, p. 9). Como exemplo disto, basta pegar qualquer trabalho contemporâneo da Rede Globo (seja ficcional ou jornalístico) sobre o governo que auxiliou de forma decisiva seu desenvolvimento inicial.            Antes de se tomar qualquer postura otimista a respeito desta quase-unanimidade, achando que o Brasil teria de alguma forma aprendido sua lição de valorização de democracia, creio que este posicionamento se dá mais por uma questão de cinismo e de apagamento de conflitos do que como fruto de uma reflexão ponderada a respeito dos eventos daqueles tumultuosos anos. Para constatar isto, basta ver uma espécie de ressurgimento de posturas reacionárias e até mesmo de conservadorismo saudosista daqueles tempos depois de dez anos de presidência do PT e da decepção de muitos com a atuação contemporânea de políticos profissionais que eram militantes na época da ditadura. Com o derradeiro fracasso “organizacional” e econômico da ditadura, cujas ambições de ordenação nacional e de planejamento econômico se mostraram ineficazes no decorrer dos anos, ressalta-se o elemento autoritário e, diante das violências e arbitrariedades cometidas pelo Estado naquele período, toma-se a fácil postura de rejeição imediata, irrefletida e, em última instância, superficial, sem levar em conta tudo que de fato estava (e ainda deveria estar) em jogo na discussão do período.


4.1 A cultura e a literatura nos anos ditatoriais
           
            Este apagamento de especificidades em favor de uma explicação geral (e genérica) da situação brasileira em contexto ditatorial é talvez ainda mais vigente no plano da cultura do que no da política, pois neste último algumamínima distinção acaba sendo obrigatoriamente feita pelo próprio passado de algumas figuras que permaneceram ativas daquela época até hoje, passando do colaboracionismo à negação contemporânea destas atitudes do passado.Qualquer atuação destes políticos nos anos 60 a 80 que poderia ser interpretada como anti-democrática é sempre reduzida ao “simples erro do passado”, sem que com isto busque se entender o contexto específico e a verdadeira ideologia subjacente àquelas decisões de ontem, hoje rapidamente renegadas e forçadamente esquecidas.
            No plano da cultura, por sua vez, qualquer passado problemático não é apagado com o mesmo cinismo de uma questão a ser rapidamente posta de lado; no lugar disto, frequentemente acaba tomando certa primazia indevida.A hegemonia cultural da esquerda em tempos de dominação política da direita (para aproveitar a expressiva fórmula de Roberto Schwarz de texto contemporâneo aos eventos) certamente não via com bons olhos qualquer atitude que não fosse a reprovação imediata e expressada, e contemporaneamente este julgamento em grande parte se encontra inalterado.A indiferença era inteiramente insuficiente, chegando até mesmo a se reprovar o tratamento de assuntos que não eram imediatamente ligados à crise política em questão.Carlos Heitor Cony relata que esta intensificação política estava em desenvolvimento até mesmo antes do golpe:

“Nos começos de 1964, instalara-se radicalmente (e simploriamente) no cenário nacional a mesma divisão esquemática que cindira a Convenção francesa, quase dois séculos antes. Fora da dicotomia esquerda-direita – que transformava o debate político e cultural numa espécie de partida de futebol em que a maioria torce e alguns poucos jogam, qualquer outro tipo de assunto era tido como conversa para boi dormir” (2004, p. 7, grifo meu)

Esta radicalização prévia é certamente índice da instabilidade política do país nos meses antecedentes ao golpe,tal radicalização e se tornando ainda mais intensa após a derrubada do governo, sendo exemplar disso o próprio caso de Cony, que passou a militar contra o golpe quando antes suas colunas não tinham conteúdo político. O jornalista e escritor rememora que “a intelligentsia estava toda à esquerda e eu próprio era amaldiçoado por ser alienado, dedicando-me a temas literários ultrapassados, sem nunca abordar a luta social, recusando-me ao engajamento com as grandes causas da época” (2004, p. 29). Com o golpe, o jornalista passou a se expressar continuamente contra a nova ordem em suas crônicas, e a publicação de seu romance Antes, o verão, naquele mesmo ano de 1964, causou espanto: “Leitores de minhas crônicas ficaram indignados. Como podia eu desperdiçar tempo e trabalho numa história banal, de angústias pequeno-burguesas, quando tudo parecia pegar fogo na vida nacional?” (2004, p. 63).
A questão não era simplesmente a da importância de se tomar o lado correto na disputa, mas também de ser obrigatória a tomada de um lado, ou como depõe Gullar a Ridenti: “A ditadura aqui obriga o Mário [Pedrosa, crítico de artes plásticas] a participar da luta política de novo, porque nenhuma pessoa digna realmente ficaria indiferente ao que estava sendo feito no país. (2000, p. 203). Era como se fosse necessário identificar o lado para que se pudesse decidir imediatamente se era válido dar ouvidos a determinada figura ou não. Assim sendo, naquela época decerto soa menos ridícula a crítica ao romance surrealista O Púcaro Búlgaro, de Campos de Carvalho, publicado em 1964, que repreendia o romancista “por fazer piadas com a Bulgária (um país socialista, como pode!)”(2006, p. 9)[14].
            O que dizer então dos escandalosos casos de apoio?Obras de figuras como Gilberto Freyre e Nelson Rodrigues parecem só ter sobrevivido ao terrível dano de seus autores terem escolhido o lado errado da disputa política por conta do valor seminal e verdadeiramente incontornável de seus trabalhos para seus campos de atuação, a sociologia e a dramaturgia. O mesmo não ocorreu, por exemplo, com o romancista Adonias Filho, hoje praticamente esquecido, talvez por ter sido praticante bem-sucedido em seu tempo de um gênero textual mais solidamente estabelecido na cultura brasileira e, assim sendo, se torna mais dispensável para o nosso campo intelectual. Ainda assim, não deixa de ser curioso ver no prefácio de Janete Gaspar Machado a recusa de estudá-lo, colocando-o ao lado de Autran Dourado, Lygia Fagundes Telles, e Guimarães Rosa, entre outros também amplamente reeditados no cenário atual, por se tratar de autores que “o tempo já consagrou”(1982, p. 17). Não se trata de uma reputação que entrou em declínio, como, por exemplo, parece ser o caso hoje de José Lins do Rego, e sim de um total apagamento, no espaço de menos de trinta anos se contarmos da publicação do texto de Gaspar Machado.
No caso de artistas e intelectuais que apoiaram a ditadura e não foram relegados ao esquecimento, como Nelson Rodrigues e Gilberto Freyre, quando seus nomes são suscitados geralmente se vê parágrafos explicativos ou denunciativos de suas posturas políticas, querendo redimi-los ou incriminá-los, frequentemente espalhando o valor do julgamento da postura política para os campos onde de fato exerceram seu ofício principal. Nelson Rodrigues, assim, se encaixa entre duas variações interpretativas: ou é um grande dramaturgo apesar de seu posicionamento político, o que causa grande perplexidade a muitos, ou não é um grande dramaturgo por conta de seu posicionamento político, pois, no pensamento hegemônico de então (e em certa medida até hoje), um artista, ainda mais brasileiro, deve sempre ser um ator político consciente e constante.É este o sentido muito bem expressado por Antonio Callado, em entrevista ao Pasquim publicada em maio de 1971:

“Darwin Brandão: Você se cansou de Nelson Rodrigues?
Callado: Ele se despediu de mim num artigo e eu achei muito bom. Realmente cansei, porque não dá. Ele até nos ajudou, sabe? Nelson é o grande clássico das Forças Armadas. Houve um período em que ele ajudou o Pellegrino, ajudou a mim, depôs em nosso favor.
Millôr: Ajudou depois de ter prejudicado.
Callado: O artigo de despedida chamava-se “Adeus a um amigo Socialista”; Foi porque eu justificava a morte do embaixador alemão na Guatemala como um ato de guerra. Um negócio que a gente estava conversando realmente, entre amigos. Eu aceitei o adeus.
Darwin: Vocês eram muito amigos antes?
Callado: Eu conheço o Nelson há muito tempo mesmo. Antes de sair daqui pra Europa, em 41, eu já o conhecia. Trabalhamos juntos n’O Globo um tempo. Tenho até uma fotografia dele me levando ao embarque para Europa.
Millôr: Por acaso existe uma possibilidade de se exercer uma atividade politicamente definida conservando esse tipo de amizade?
Callado: Não, não existe.” (2006, p. 335)

Se contemporaneamente no plano da História a reconstituição do período da ditadura militar passa de forma muito mais frequente pelas categorias da esquerda do que pela direita, mais pelos relatos e entendimentos daqueles que foram contra o poder vigente do que os registros daqueles que tomaram as decisões dirigentes, esta constante de posicionamento contrárioaparece de forma ainda mais profunda em nossa produção artística, seja nos livros escritos e publicados durante o período da ditadura quanto nos livros escritos contemporaneamente de ambientação naqueles atribulados anos. Se é possível mencionar relatos históricos de alguns poucos militares relevantes durante o período, ainda que seus textos tenham recebido relativamente pouca circulação nos meios intelectuais, no campo da ficção isto se torna quase impossível, dado a um exercício de pesquisador de museu interessado por bizarrias exóticas. Regina Dalcastagnè, em seu estudo de 1996, recupera a categoria sartriana que associa a literatura à liberdade e que conclui que não se escreve para escravos, e por conta dessa recuperação acredita que talvez por isso se tenha escrito “tão pouca literatura exaltando o regime de 1964 – e os poucos exemplares são de uma pobreza gritante” (1996, p. 21).
Em vez de acreditar em uma essência libertária inerente à atividade literária (como contra-argumento, basta lembrar do fascismo de Ezra Pound, ou do anti-semitismo de Louis-Ferdinand Celine), creio que esta inexistência de romances de direita no período se dá por conta de certa consagração generalizada de posturas de esquerda no meio intelectual daquele momento:  não se tratando de uma característica presente desde seus primórdios, àquele momento já se parecia uma realidade bastante consolidada. Não se trata de dizer que existiram vários romances de apoio à ditadura que foram esquecidos, e sim de que o meio artístico brasileiro tornava improvável que esses romances sequer chegassem a existir ou pelo menos circularem significativamente.
O crítico austríaco Otto Maria Carpeaux, ao chegar ao Brasil nos anos 40, não deixou de registrar seu espanto ao perceber que “aqui quase todo mundo era de esquerda” (VELOSO, 2008, p. 15). Heloísa Buarque de Hollanda, em estudo de 1979 sobre a cultura brasileira de suas duas últimas décadas, no capítulo inicial de seu livro descreve com palavras inequívocas a produção cultural do período: “largamente controlada pela esquerda” (2005, p. 21).
Em se tratando de um país sub-desenvolvido cuja situação, após a mínima análise crítica, revela ter sido a de recebedor principalmente das partes ruins do sistema econômico vigente, não deve causar surpresa a muitos esta dominação de ideologias de esquerda entre os meios intelectuais.Afinal, para que seja possível o conservadorismo crítico, é preciso primeiro que exista algo na sociedade que seja intelectualmente digno de ser conservado. Em um país de miséria dominante, brevemente interrompida por trechos de progresso fomentado pelo endividamento estatal, fica difícil defender uma grandeza e um valor do que se consagrou historicamente no passado do país.
Com a crescente concentração populacional e o desenvolvimento dos meios de transporte e comunicação (construção de estradas, criação de canais televisivos e onipresença da comunicação via rádio), o debate ideológico foi se tornando cada vez mais acirrado e abrangente, a politização das camadas que tinham acesso à educação se tornou cada vez mais frequente e cobrada. No relato pessoal e informal de suas memórias, Caetano Veloso expressa as ideias que lhe pareceram unânimes nos círculos que ele frequentavanaquela época:

“Os estudantes ou eram de esquerda ou se calavam. No ambiente familiar e nas relações de amizade nada parecia indicar a possibilidade de alguém, em sã consciência, discordar do ideario socializante. A direita só existia por causa de interesses escusos e inconfessáveis. Assim, as passeatas “com Deus pela liberdade”, organizadas por “senhoras católicas” em apoio ao golpe militar, nos surgiram como cínicos gestos hipócritas de gente má” (VELOSO, 2007, p. 15).    

            É difícil não identificar este maniqueísmo de juventude do cantor com a breve análise feita por Roberto Schwarz de duas crônicas políticas de Nelson Rodrigues, onde o crítico diz que “ninguém acredita nas razões da direita, mesmo estando com ela, [da sua parte sendo] desnecessário argumentar e convencer” (2000, p.53-54). Embora seja obviamente verdadeiro que a direita triunfou no país não por conta de argumentação e sim pelo uso da força bruta, ainda aparenta existir dificuldade considerável de se entender como uma pessoa poderia ser a favor da ditadura sem que seja por interesses escusos e inconfessáveis.
Veloso relata com grande honestidade também sua perplexidadeao lidar com a ideia de uma pessoa tida como esclarecida possa ser contra o anti-capitalismo, qualquer que seja sua forma:

“Elizabeth Bishop (...) em cartas a amigos nos Estados Unidos, exulta com essas passeatas que, segundo ela, tinham sido “originalmente organizadas como paradas anticomunistas” mas que “se tornaram marchas da vitória – mais de 1 milhão de pessoas na chuva!”(...) Leio essas palavras hoje com mais assombro pela distorção da minha perspectiva na época do que a exibida pela autora. Não é sem mal-estar que tomo conhecimento de sua versão do golpe de Estado, mas é uma lição a mais (...) constatar que alguém amável – e uma mulher poeta! – no Brasil de então pudesse assim resumir o movimento militar que pôs na cadeia meus melhores colegas e meus melhores professores.” (VELOSO, 2008, p. 14-15, grifo do autor)

Aproveitando e adaptando uma famosa máxima de um reacionário, toda a unanimidade há de apresentar diversos pontos cegos, e este não-entendimento é frequentemente resumido como “mistério impossível de resolver” em vez de realmente analisado. Mantém-se intocada a unanimidade do pensamento de esquerda irrefletida, apagando-se especificidades importantes do período, ainda que seja o próprio período em que se esteja vivendo.
É com o desejo de se questionar esta unanimidade que se busca desenvolver este trabalho, não em um intuito absurdo de se defender a ditadura militar que tanto foi e é corretamente atacada (ainda que às vezes de forma simplória), e sim de questionar os porquês de tanta presença do tema explicitamente (e diretamente, no sentido de ligado imediatamente à situação de governo do país) político em nossa produção artística da época, de buscar ver quais são as consequências contemporâneas para o sistema literáriobrasileiro deste engajamento explícito contínuo de nossa produção artística da época.
Como foi dito na introdução deste estudo, a escolha deste objeto parte do interesse de uma situação aparentemente paradoxal vivida naquele período e no período imediatamente seguinte: um curioso convívio da opressão estatal à liberdade de expressão (opressão seletiva, isto é, não generalizada, mas opressão ainda assim)com uma surpreendente pujança produtiva por parte dos artistas que publicaram várias obras que até hoje são lidas, estudadas e re-editadas com frequência, e o posterior marasmo cultural que se instaurou com a recuperação da liberdade (como, por exemplo, a recém-conquistada impossibilidade de um autor ser preso por publicar um romance, como aconteceu com Renato Tapajós ou Antonio Callado). Até mesmo autores que surpreenderam com obras sólidas publicadas durante a ditadura pareceram incapazes de repetir durante a redemocratização e o período democrático posterior o sucesso estético anteriormente conquistado naquele contexto opressivo.
Como todo estudo de época, ele se desenvolve a partir de generalizações que necessariamente abrem brechas para exceções e desajustes; não se pretende agrupar toda a atuação literária da época em um bloco unívoco, nem mesmo de homogeneizar a atuação política de quem se colocava contra o autoritarismo de então. O mesmo intuito de não se pautar por simplificações excessivamente facilitadoras no entendimento do regime militar certamente vale (em dobro ou mais, por ser o assunto central deste estudo) para o entendimento da ação dos atores da cultura e intelectualidade da época. Um exemplo rápido que se pode ter desta homogeneização excessiva é o fato de que o primeiro elemento que surge na cabeça da maioria das pessoas quando se fala de “esquerda durante a ditadura” é a figura do guerrilheiro, quando este foi uma minoria muito pequena dentro da totalidade dos que se colocaram contra o regime: a principal instituição de esquerda da época, o Partido Comunista (apelidado “Partidão”) se colocava de forma veemente contraesta forma de atuação.
Ao seu estudo sobre a cultura da época, vivida pela própria autora, Heloísa Buarque de Hollanda dá o subtítulo de CPC,vanguarda e desbunde, correspondendo aos de ativismo artístico-político mais explícito (como as coletâneas de Violão de Rua, da qual participaram, entre outros, Moacyr Felix, Ferreira Gullar e Paulo Mendes Campos), os concretistas e o tropicalismo, e, por fim, pós-tropicalismo(aqui incluindo-se a poesia dita marginal de autores como Cacaso, Torquato Neto e Chico Alvim). A mera constatação dessas três vertentes, não-exaustivas por não serem aplicáveis a muitas outras manifestações culturais do período, já indica que a produção literária de um sistema na duração de mais de duas décadas não deve ser rapidamente resumida e dificilmente poderá ser exaustivamente delineada.
Ainda assim, por mais que apresente diversas variações (difícil pensar em contraste estético maior entre o formalismo concretista e a poesia marginal, ou de não perceber o contraste político entre estas duas manifestações poéticas e o ativismo do CPC) é certamente possível agrupar a produção do período como sendo repetidamente anti-autoritária: se esta postura se dá pela “análise fria” do marxismo tradicional/universitário ou pelo comportamento culturalmente subversivo do desbunde, ou pelas inovações formais do concretismo, ainda fica a constante do questionamento da situação vigente (esta sim que busca impor pela violência a univocidade e a homogeneidade) como força-motriz da atuação cultural dos escritores do período, onde quer que se posicionem no sistema literário.
A situação vigente particularmente negativa parecia servir de incentivo direto a todas essas iniciativas: o questionamento sempre parece mais importante quanto mais o status quo for desfavorável, chegando até a alcançar às vezes o absurdo bordão de “quanto pior, melhor”. O elemento ostensivamente político, eterna presença ou até mesmo protagonista da atuação intelectual no Brasil, não só mantém seu lugar histórico de privilégio como se agigantanaquele contexto que, ainda que a descrição de sufoco não seja imprecisa, permitiu que os intelectuais continuassem atuando dentro de seus círculos restritos.
ElioGaspari, ainda que neste trecho esteja falando mais especificamente da “velha esquerda”, descreve bem a situação cultural em que o posicionamento político era protagonista em qualquer consideração a respeito de qualquer produtor cultural:

“Uma mistura de talento, compadrismo e disciplinada sacralização associara o Partidão [Comunista] os maiores nomes da cultura nacional. O melhor exemplo dessa anomalia, e de sua conexão com a cultura oficial, esteve na glorificação da arquitetura de Oscar Niemeyer, contemporânea da esquecida suavidade funcional de Affonso Eduardo Reidy (...) Havia menos espaço para o lirismo de Alberto Guignard do que para o miserê-chic de Cândido Portinari, ou o mesmo para as repetitivas marinhas do pintor-marujo José Pancetti. Os donos do poder, a construção weberiana de Raymundo Faoro, tornara-se obra rara depois do esgotamento de sua primeira edição, no final dos anos 1950. (...) Já os esquemas da historiografia marxista de Nelson Werneck Sodré eram sistematicamente reeditadas. Festejava-se o trânsito da direita para esquerda como ocorrera com Alceu Amoroso Lima, mas não se tolerava uma mutação do centro para a direita, como a de Gilberto Freyre. Mesmo censurado, Nelson Rodrigues nunca recebera da esquerda a solidariedade que ela cobrava na defesa de seus intelectuais (...) A distância que separava dois poetas como Manuel Bandeira de João Cabral de Melo Neto não era medida pelos versos que escreveram. Era determinada pelo fato de um ter sido amigo do rei, comensal do presidente Castello Branco, enquanto o outro (...) perseguido por ter sido membro do Partido.” (GASPARI, 2000, p. 21)

Como recuperamos na primeira parte deste estudo, o empenho político sempre esteve longe de ser um estranho às nossas iniciativas literárias, por mais que ele tenha tomado diversas formas no decorrer das transformações internas do sistema literário e da sociedade brasileira como um todo. Da independência, à construção da nação, da sua modernização ao desejo de uma mudança cultural ou econômica do país, nossos escritores frequentemente exerciam seu ofício dotado de certa missão, certo objetivomaior. Nesses anos da ditadura, o objetivo se tornara claro, diante da óbvia ilegitimidade do regime militar e seu autoritarismo violento. É tão contínuo e identificado este foco que a primeira vista parece uma reação àquela conjuntura específica, quando na verdade é apenas a continuidade de uma postura comum em nossas letras. Não soa, portanto, fora do lugar a recuperação de uma constatação feita por Antonio Candido em 1980 a respeito da cultura e seu empenhonos anos trinta, arriscando uma hipotética substituição das datas por 1964:

“Quem viveu nos anos 1930 sabe qual foi a atmosfera de fervor que os caracterizou no plano da cultura, sem falar de outros (...)foi um marco histórico, daqueles que fazem sentir vivamente que houve um “antes” diferente de um “depois”. Em grande parte porque gerou um movimento de unificação cultural (...) não há dúvida que depois de 1930 houve alargamento de participação dentro do âmbito existente (...) devido às novas condições econômico sociais. E devido também à surpreendente tomada de consciência ideológica de intelectuais e artistas, numa radicalização que antes era quase inexistente. Os anos de 1930 foram de engajamento político, religioso e social no campo da cultura. Mesmo os que não se definiam explicitamente, e até os que não tinham consciência clara do fato, manifestaram em sua obra esse tipo de inserção ideológica, que dá contorno especial à fisionomia do período” (2006 p. 219-220)

Mais adiante em seu texto, o crítico até esboça brevemente a conexão com a situação cultural que analisava com a que naquele momento lhe era contemporânea, que, no que diz respeito a questão social (a religiosa, bem menos), certamente soa adequada: “houve penetração difusa das preocupações sociais e religiosas nos textos, como viria a ocorrer de novo nos nossos dias em termos diversos e maior intensidade”(2006, p. 227).  Ainda, posteriormente, Candido constata que as modernizações culturais de 30 tiveram como “uma das consequências o conceito de intelectual e artista como opositor, ou seja, que o seu lugar é no lado oposto da ordem estabelecida, que faz parte da sua natureza adotar uma posição crítica em face dos regimes autoritários”(2006, p. 235), conceito certamente vivo e atuante nos anos anti-ditadura.
No texto “A nova narrativa”, praticamente contemporâneo a este anterior, Candido discute brevemente a situação vivida pelo sistema literário naquele momento autoritário, novamente estabelecendo a conexão forte da situação anti-ditatorial com os anos 30, explicitando que, à época do romance de 30:

“Geralmente essas diversas orientações [do romance dos anos 30] eram concebidas pelos autores e apresentadas pela crítica de um ponto de vista disjuntivo: uma ou outra. Sobretudo porque os autores tinham muita preocupação com os temas e uma concepção da escrita como veículo, mais do que como objeto central e integrador do processo narrativo”(2006, p. 247)

Este ponto de vista “disjuntivo” certamente parece uma descrição hábil do ambiente político brasileiro durante a ditadura, e se não tem tanta aplicabilidade ao campo da cultura isto se dá principalmente pela hegemonia cultural da esquerda: não haveria muito “outro” literário para se estabelecer um maniqueísmo dessa forma. As disputas internas pareciam se estruturar ao redor de “o quão contrária” a arte deve se posicionar em relação à ditadura.
Candido constata que no período entre o romance de trinta e a literatura pós-64 muitos dos autores se libertam um pouco da obrigatoriedade de expressão política. Após uma listagem de autores de destaque que inclui Dalton Trevisan, Fernando Sabino, Otto Lara Rezende, Bernardo Elis, Osman Lins e Ligia Fagundes Telles, Candido afirma que “Nenhum deles manifesta preocupação ideológica por meio da ficção, com exceções que aumentam depois do golpe militar”(2006, p.249). Para além de constatar que o grande crítico não se expressou de forma que transmitisse a força da politização que tomou conta a partir da derrubada do governo, é útil mencionar que pelo menos os dois últimos autores escreveram literatura com elemento políticoe de grande relevância estética durante os anos ditatoriais, nominalmente, Avalovara e As Meninas.
Candido, no entanto, comete um erro ao limitar ao campo da forma sua constatação de que “estamos ante uma literatura do contra”(2006, p. 256), chegando à estranha constatação de que o trabalho literário da época ficaria contra, “à ordem social, sem que com isso os textos manifestem uma posição política determinada. Talvez esteja aí mais um traço dessa literatura recente: a negação implícita sem afirmação explícita de ideologia”(2006, p.256). Como estar contra a ordem social de forma despida de ideologia?
O erro do grande crítico, ao meu ver, está com a comparação que ele parece fazer implicitamente com o engajamento mais explícito dos anos 30, em que a divisão que cingia a camada cultural do país, fascismo contra comunismo, seguia expressões positivas tanto quanto negativas: defendia-se certas posturas ao mesmo tempo que se atacava outras, declarando seus sins e seus nãos. A literatura anti-ditatorial tendia a nãofazer defesas, não elaborava propostas positivas e específicas de atuação para além do ataque contra o autoritarismo hegemônico. As defesas, quando aconteciam, eram pálidas porque frequentemente discutíveis, e perdiam em presença (em capacidade de marcar a mente do leitor) diante dos ataques, que, no contexto autoritário, eram sempre válidos e autenticidade pouco questionável. O máximo que se mencionava, nos poucos casos em que se mencionava algo de maneira positiva, era a necessidade (ou iminência, no caso dos otimistas delirantes)de uma revolução, mantendo-se na vagueza a respeito de como se constituiria esta revolução. Esta ausência de elemento positivo é um aspecto muito relevante para o entendimento do período e do marasmo do período seguinte, mas este ponto será discutido com maior detalhamento mais adiante.


4.2. Antonio Callado

Difícil pensar em um caso mais exemplar de escritor brasileiro sob a ditadura que Antonio Callado, sendo ele frequentemente o primeiro autor que se pensa quando se discute o período. Heloísa Buarque de Hollanda, em artigo de 1981, o descreve como “nosso romancista político por excelência” (GASPARI, 2000, p. 210), que soube com Quarup “traduzir a imagem desesperada e a extrema vitalidade da cultura brasileira num de seus momentos mais críticos e estimulantes” (2000, p. 206).Pois não é ninguém menos que o próprio Callado que coloca de maneira clara a questão da produção literária em contextos autoritários,em conferências proferidas em uma universidade inglesa em 1974(isto é, posterior à publicação de seu romance-desilusão Bar Don Juan). Nessas palestras, o romancista se expressa a respeito da função da arte e do escritor no contexto ditatorial:

“[sobre a defesa de Borges de uma “arte pela arte”] Um romance não deveria ser aprovado ou condenado pelo fato de ter ou não uma “mensagem” política, como se costuma dizer. O que ele[Borges] sustenta na verdade é que um artista, se bem entender, pode viver numa torre de marfim, mas um homem, não. (...) Sua posição, acredito eu, estaria acima de qualquer crítica se ele fosse, digamos, um escritor em sua amada Suíça (...) a responsabilidade de um escritor enquanto tal é grande demais para que ele se contente em fazer apenas o que gostaria, em países que as pessoas estão longe de viver como gostariam (...) nossos escritores deveriam estar pensando, à medida que nossos regimes ditatoriais tornam-se cada vez mais sofisticados, em novas formas de combatê-los. Nos velhos tempos, e até recentemente, escritores com uma propensão a desempenhar o papel de heróis geralmente paravam de escrever para tomar atitudes ousadas – como Byron indo para a Grécia ou Malraux e Hemingway indo para a Espanha. Nos nossos dias, como estamos vendo agora na União Soviética, a atitude heróica a adotar é permanecer firme diante de sua máquina de escrever, e trabalhar duro na sua obra, se quisermos ajudar a mudar o destino de nossos compatriotas” (2006, p. 48-52)

Ainda que o autor não chegue a tomar armas (embora frequentemente ainda escreva cenas em que personagens o façam), fica patente certa propensão a uma espécie de heroísmo, uma espécie de heroísmo menos filme-de-ação que a de Byron, Malraux ou Hemingway, mas ainda assim trata-se de ser, a sua maneira,um enfrentamento grandioso. Fica implícito (ou talvez nem isto) a ideia de uma figura do escritor inserida de forma perfeita e inteira em seu contexto social e nacional, situação que, tomando o Brasil por sua totalidade e não apenas os círculos em que transitava a intelligentsia, jamais foi alcançada em qualquer época de nossa literatura de crítica social. É como se entre o autor e a totalidade social que ele habita exista uma conexão profunda e inegável, e nenhum obstáculo sendo intransponível pelo esforço literário devidamente politizado.
É bastante reveladora a menção da máquina de escrever ao fim do discurso, pois sua presença como ferramenta e instrumento de ação é bastante semelhante à presença de armas (fuzis e assemelhados) nos discursos e hinos sobre guerrilhas e revoluções.A máquina de escrever também aparece de forma ostensiva no estúpido final do conto “O Homem Cordial”, publicado em 1967 em coletânea intitulada 64 D.C. O enredo narra a história de um intelectual que, pela atuação de sua filha estudante, se convence da importância do envolvimento político naquele momento, largando seus estudos sobre a “cordialidade” brasileira, resumidos logo nos parágrafos iniciais da história: “Circunstâncias várias haviam criado tão imperativamente no Brasil o tipo de homem cordial que estávamos a caminho de ser o primeiro povo a construir um grande país por meios não-violentos: o primeiro país racional” (1993, p. 9). O mesmo entendimento inteiramente equivocado do conceito de Sérgio Buarque de Hollanda (citado pelo nome na primeira página do conto) do “homem cordial” aparece repetido pelo próprio autor nas conferências estadunidenses: “a noção de que os brasileiros encarnavam fundamentalmente “o homem cordial”, que teria o dom de resolver os problemas mais intrincados de forma conciliadora” (2006, p. 45), citando a abolição pacífica da escravatura como um exemplo que seria utilizado para defender este conceito que qualquer leitor atento de Sérgio Buarque de Hollanda pode atestar que não é o defendido pelo sociólogo.
Outro elemento explicitado no discurso do autor é a percepção de um caráter refinado ou, para aproveitar a palavra utilizada por ele, “sofisticado” da dominação política exercida pelos militares, quando os mais diversos relatos de historiadores politicamente mais distanciados reiteradamente enfatizam a verdadeira desorganização interna do regime. Obviamente não se pode cobrar este conhecimento de quem vivia na época, mas não é por isto que o entendimento deixa de estar equivocado e, esta percepção de um oponente sofisticado é um elemento de importância fulcral para o pensamento político da época: o que dizer de uma esquerda que é derrotada por um vilão que sequer pode ser descrito como particularmente sagaz?
Ao falar da própria obra, Callado deixa claro o intuito por trás de seu esforço literário ao escrever Quarup, seu mais popular romance, que soma quase quinhentas páginas (um épico, para os padrões literários brasileiros) e que foi saudado por muitos na época como um marco literário e até mesmo político: na orelha da primeira edição, Franklin de Oliveira chega a comparar o livro com Grande Sertão Veredas em grandeza e, para além de tentativas editoriais de se vender o peixe, Roberto Schwarz, em seu ensaio já muito citado nesta dissertação, descreve Quarup, três anos depois de sua publicação, como “romance ideologicamente mais representativo para a intelectualidade de esquerda” (2000, p. 55). O livro narra a conversão de padre Nando de uma indiferença de intelectual (à sua maneira cristã) ao ativismo armado que seria fundamental ao verdadeiro progresso do país: “[Quarup foi] o projeto de um romance brasileiro abrangente que, de alguma forma, deveria abarcar o desenvolvimento do país dos dias de Vargas até o golpe militar de 1964”(2006, p. 68). O leitor contemporâneo deste livro presencia um caso raro na literatura brasileira daquilo que pode ser chamado depolifonia clássica, semelhante a que foi descrita por Bakhtin como predominante na fase madura deDostoievski: são vários os diálogos-discussão, em que cada personagem assume um ponto de vista e o romance passa a ser um campo para se desenvolver ideias diversas, os eventos narrados como uma espécie de laboratório ideológico ou “prova artística”, o amadurecimento do protagonista misturando a saga pessoal com o triunfo argumentativo, amadurecendo-se simultaneamente o personagem e as ideias veiculadas no romance.
Esta explicitação por parte do autor é bastante útil para os propósitos deste estudo, mas fica claro na mais descompromissada leitura do romance o intuito da criação de uma espécie de GreatBrazilian Novel, versão tupiniquim do fantasma literário que tradicionalmente assombra (ou pelo menos por muito tempo assombrou) escritores estadunidenses na tentativa de se criar uma arte-síntese da sociedade em que se habita. Percebe-se nitidamente esta vontade de totalidade, de perfeito pertencimento. Um dos livros que nesta dissertação será analisado com mais profundidade, o romance A Festa, de Ivan Angelo, certamente partilha de muito desta vontade de se captar a essência inteira de seu tempo naquele lugar(chegando a haver uma referência no romance de Ângelo ao The Great Gatsby, de Scott Fitzgerald, frequentemente apontado como obra que mais perto chegou desse ideal), e as forças e limites desta forma de expressão serão mais detalhadas mais adiante.
Callado chega a finalizar suas palestras dizendo que “não há hoje praticamente nenhum romance na América Latina que não pregue a revolta. Em nossos países, romances suaves e etéreos não iriam mesmo convencer nenhum leitor” (CALLADO, 2006, p. 98). Antes dessa finalização, o autor carioca faz uma breve defesa da produção mais recente e mais engajada de JulioCortazar, mais especificamente O livro de Manuel, e, ainda que se trate de uma obra fora do sistema literário brasileiro(nas palestras, Callado trata sempre a América Latina como um todo relativamente uno), é interessante resgatar esta defesa pois ela mostra claramente os critérios de avaliação literária naquela situação engajada:

“O livro de Cortázar é absolutamente explícito. É um romance, mas o autor fez questão de escrever para ele uma introdução que é uma declaração formal de um recém-descoberto sentimento de pertencer a algo, a um lugar. Ele começa afirmando que seu Livro de Manuel talvez vá desagradar tanto os que apreciam a realidade na literatura – porque contém elementos de fantástico – como os amantes da ficção em seu estado puro, já que apresenta ligações tão estreitas com a história presente(...) Cortázar caracteriza como uma convergência de dois cursos, duas correntes. Escritor argentino que tem vivido durante anos na Europa, Cortázar já era conhecido há muito tempo, mas não especificamente como argentino ou latino-americano. Livro de Manual, apesar de passado inteiramente em Paris, é um romance completamente latino-americano (...) é pontuado com transcrições de recortes de jornais sobre atividades revolucionárias em muitos países, sobretudo na Argentina e no Brasil (...) Pode-se lamentar que o sequestro em Paris (...) não tenha base em nenhum fato real, quando tantos seqüestros aconteceram no continente e ainda estão na moda no seu país natal, a Argentina (sic). Mas é possível afirmar que o modelo está tão bem representado e de forma tão abrangente, que é aceitável transplantá-lo para qualquer lugar. E o acontecimento em si, no Livro de Manuel, pode ser considerado quase como um padrão abstrato no qual são inseridas pessoas bem reais que buscam, sem aceitar concessões, sua identidade latino-americana” (2006,  88-90)

Pode-se ver imediatamente um ponto de tensão mal-resolvido na análise de Callado, a ponto de talvez configurar uma espécie de ato falho: depois de mencionar o prefácio do autor em o autor da literatura argentina afirma misturar realidade com fantasia, o escritor brasileiro apaga ou esquece o segundo elemento após mencioná-lo e elogia o intuito fundamental do livro do argentino (que seria “completamente latino-americano”, aspecto que, em sua concepção, seria louvável) e depois faz uma breve reclamação do romance não ter se baseado em algum acontecimento histórico e real.Neste sentido, faz-se sentir o peso de todas as constatações críticas de uma suposta influência do jornalismo à literatura, que frequentemente se restringem a apontar uma natureza fragmentária da narrativa (da mesma forma que uma página de jornal pode apresentar várias histórias diferentes).Aqui, esta influência se faz sentir no conteúdo e na função. Por mais que o escritor carioca abra a concessão para uma possibilidade de interpretação abstrata (e de aplicação geral do caso narrado), ainda se percebe certa decepção da oportunidade perdida por Cortázar de também informar o leitor a respeito de um caso real, de alcançar um grau maior de realidade e até mesmo de valor como obra por tratar de algum evento que de fato teria acontecido.
Claro que não foram todos os autores que abraçaram a causa com tanto ardor, expressividade e entusiasmo quanto Antonio Callado, que, afinal de contas, é o “escritor-exemplo” e assim sendo é a figura em que este elemento aparece de forma mais clara. No entanto, seu sucesso e renome no período, sendo nome verdadeiramente incontornável no estudo da literatura da época, mostram como fatia considerável o público leitor da época realmente esperava este tipo de engajamento por parte dos autores que liam. Não se busca aqui diminuir a figura de Callado, que, além de um autor importante para a época, escreveu livros que até hoje são de leitura bastante proveitosa, e sim de apontar os pressupostos estético-ideológicos (que, para a felicidade do estudioso, foram explicitados pelo autor nessas conferências) que ressoavam com os produtores literários durante nosso período de opressão.





Capítulo 5 - Da censura

O intuito deste trabalho é fazer uma análise mais profunda das categorias praticamente unânimes vigentes na produção intelectual do períododa ditadura e, em parte, vigentes também nos estudos contemporâneos sobre esta época, buscando fugir do binarismo simplificador e maniqueísta.Um dos primeiros passos para o estabelecimento desta crítica mais profunda não poderia deixar de ser a abordagem do entendimento generalizado eequivocado da atuação da censura no período, tanto nos seus atos de cercear a circulação de determinadas obras (e ver quais obras foram estas) quanto de perceber como sua atuação foi recebida pelos produtores culturais do período.
Praticamente qualquer pensamento sobre a produção literária do período passa necessariamente (e, às vezes, exclusivamente) pela atuação da censura exercida pelo estado autoritário, o que certamente é de se esperar considerando a presença constante do elemento político na literatura feita na época. Se o autoritarismo é um tema favorito, como não levar em conta nas reflexões a respeito do período a forma que este autoritarismo interferiu diretamente na produção da época, impedindo a circulação de certas obras? Trata-se, claramente, de uma etapa obrigatória.
Entretanto, geralmente ocorrem equívocos na tentativa de se incorporar este elemento à interpretação dos objetos culturais do período, frequentemente se adotando respostas rápidas e fáceis que resumem toda a questão em alguns poucos pontos. Não se trata aqui de se desfazer de fatos inegáveis, como o de que a censura de fato proibiu a circulação de certas obras que foram consideradas perniciosas, e que esta atuação certamente era uma presença na mente dos autoresdurante a escrita de seus textos, mas é preciso dar uma medida mais precisa destas influências, frequentemente exageradas na busca de “resolver” problemas críticos.
Quem coloca de forma clara a situação da interpretação da censura pela crítica literária é Flora Süssekind, que abre seu livro de 1985 dizendo que:

“A censura tem sido uma espécie de rua de mão única, explicação privilegiada para os que analisam a literatura brasileira dessas duas décadas que se seguiram o golpe militar (...) Tudo se explica em função do aparato repressivo do Estado autoritário. Seja a preferência pelas parábolas ou por uma literatura centrada em viagens biográficas, a chave estaria ou no desvio estilístico ou no desbunde individual como respostas indiretas à possibilidade de uma expressão artística sem as barreiras censórias.” (2004, p. 17)”

O entendimento corriqueiro desta influência é, de forma não muito resumida, o de que a censura acabava por obrigar o escritor crítico ao regime a escrever de forma metafórica e indireta, geralmente se acreditando que a finalidade daquilo seria a de enganar os censores burros que, em toda sua burra burrice, não entenderiam a verdadeira mensagem por trás daquilo que encontra na superfície do texto e permitiriam assim que aquela subversão circulasse e divulgasse a verdade que os órgãos tanto gostariam de ocultar. Haveria, assim, supostamente uma cifração obrigatória na escritura dos textos por parte dos autores que precisavam ocultar sua subversão política para conseguir continuar escrevendo e disseminando seu dissenso.
Pode-se citar como exemplo desta postura o estudo de Letícia Malard, publicado em 1986, de título “Romance sob censura”, em que se busca constatar que “a tematização de questões sócio-políticas não criou problemas com a censura porque os escritores lançaram mão de recursos capazes de ludibriá-la” (1986, p.70). Outro exemplo que pode ser citado se encontra no meio da pertinente análise de Reflexos do Baile feita por Regina Dalcastagnè, que bem recupera a constatação de David Arrigucci de que o caráter oblíquo da narrativa do romance se dá pela própria natureza do objeto narrado. No entanto, em certo momento, a crítica constata que esta obliquidade “parece ter funcionado inclusive para o próprio romance como um todo, uma vez que, apesar da violenta crítica expressa contra o regime, nunca chegou a ser censurado” (1996,  p. 59). Ainda que de fato seja um dos romances mais difíceis da literatura brasileira, não se explica por que outros livros do autor, como Quarup e Bar Don Juan, bastante explícitos em sua temática política, não foram proibidos, uma vez que não contavam com esta forma oblíqua de escrever.
Há dois equívocos básicos na adoção desta ideia de uma cifração obrigatória, um de identificação imediata e outro mais profundo e, a meu ver, mais importante. O primeiro exagera a importância pragmática da literatura no contexto brasileiro já dominado pela mídia incipiente;o outro, subestima a capacidade abstrata da literatura, não compreendendo seu real valor e poder.
O equívoco de identificação imediata se percebena simples leitura dos livros de destaque da época, a ponto de ter sido o primeiro ponto de surpresa na minha parte ao embarcar nesse estudo: a leitura de alguns romances de destaque publicados nos anos da ditadura mostra vários trechos que certamente teriam sido censurados se a interpretação simplificada do papel da censura correspondesse à realidade da época. Em Pessach, a travessia, de Carlos Heitor Cony, em uma cena o pai do protagonista do livro sofre de paranoiaanti-semita conversa com o filho e dificilmente se poderia colocar em termos mais explícitos sem que se citasse nomes dos dirigentes:

“- Não entendo de política, mas veja a situação: estamos sob ameaça fascista.
- O governo é fascista, pai, nisso o senhor tem razão. Mas ninguém pensa em exterminar os judeus.
-Mas pode pensar. No momento, pensa em exterminar os comunistas. Um dia, os comunistas estarão exterminados e como é que um governo fascista mantém-se sem a existência de um inimigo interno para exterminar. Este inimigo interno, que serve sempre de pretexto para justificar os regimes de força, é o judeu” (1967, p. 82, grifo meu)

No contemporaneamente esquecido Agá, de Hermilo Borba Filho, o primeiro capítulo do romance publicado em 1973 traz este trecho significativo na terceira página: “tirei a pasta com o romance que iniciara em 64 e que pretendia continuar escrevendo (...) para que inventar estórias quando a importante era a minha, quando me aconteciam coisas estranhas (...) Afinal de contas, estou escrevendo no tempo da censura e para ela cago.” (1973, p. 3).
Outro exemplo mais fecundo que se pode pinçar é o de Incidente em Antares, de Érico Veríssimo, publicado no auge dos anos de chumbo em 1971 e cuja publicidade editorial chegava à ousadia de estampar em cartazes que “Em um país totalitário este livro seria proibido!”(PELLEGRINI, 1997, p. 68). Um dos personagens mais importantes do livro é o garoto JoãoPaz, morto aos dezoito anos nos porões por ter se envolvido com grupos de esquerda. Se o sobrenome tolamente explícito não serviria por si só como índice da simpatia do autor e de alinhamento do livro com aqueles que contestavam o poder, o livro ainda narra seus heroicos esforços de fazer que sua namorada grávida pudesse fugir do país sem ser pego pela polícia, em uma cena cuja intertextualidade bíblica um dos personagens faz o favor de interpretar para nós “ocorreu-me um símile que o Padre Gerôncio acharia profano: a fuga da Virgem Maria co o Menino para o Egito”(2006, p. 441).
Se a mera existência deste personageme desta comparação no livro não servissem de atestado à inexistência de uma cifração obrigatória, em certo momento o padre Pedro-Paulo, não ciente de que, estando em um romance brasileiro dos anos 70, ele deveria se expressar de forma indireta e oblíqua, diz ao truculento delegado da pequena cidade de Antares:

“Suponhamos que Jesus Cristo tenha mesmo voltado... Delegado Pigarço, não seria prudente mandar seus investigadores procurar o Filho do Homem? Olhe que esse indivíduo é perigoso... um subversivo socializante, um terrorista com antecedente criminosos, com ficha negríssima no DOPS de Pôncio Pilatos. Lembre-se do que ele andou dizendo e fazendo contra o grande Estabelecimento Romano (...) Prenda Jesus, delegado, prenda-o o quanto antes! Interrogue-o. Faça-o confessar tudo, dizer o nome de todos os seus discípulos e cúmplices... Se ele não falar, torture-o em nome da Grande Civilização Ocidental” (2006, p. 328).

Em outro momento, o advogado ressuscitado acusa o mesmo delegado de sádico, falando que ele “esconde seu uniforme negro de oficial da SS de Hitler debaixo do camisolão do anjo da guarda que zela pela ordem do baile” (2006, p. 349). Levando em consideração falas como estas, como pensar com Letícia Malard que “a recorrência ao fantástico foi a melhor saída literária rentável e infensa à censura”(1986, 79), ainda mais que o padre que acusa o regime de torturador não está entre os mortos ressuscitados, estando assim fora do elemento fantástico do romance?
Abrindo um breve parêntese, não deixa de ser muito representativo do espírito cultural da época que Érico Veríssimo, sempre criticado pelo politizado establishment intelectual brasileiro por ser excessivamente liberal (e, assim sendo, americanizado), individualizante e desligado das questões de “verdadeira importância para o país” (Em crítica recuperada por Tânia Pellegrini, Paulo Heckler Filho afirma que “há nesses livros [de Veríssimo] apesar das homilias ocasionais, uma básica crença nos valores e objetivos burgueses” (1996, p. 69)), tenha passado a publicar depois do golpe de 64 romances de caráter eminentemente políticos: O Senhor Embaixador(1965), que talvez por acaso conta a história de uma ditadura latino-americana (caribenha, mais especificamente) que se instala baseando-se  no argumento de que é uma defesa a um outro golpe que era inevitável, e O Prisioneiro (1967), que narra eventos de uma não-nomeada guerra muitíssimo parecida com a do Vietnã (esta ícone da esquerda dos anos 70) e centralmente trata do dilema do protagonista de torturar ou não um guerrilheiro que é visto como responsável por uma bomba que está para explodir.
Veríssimo, em uma entrevista a Norma Marzola, fala da polêmica da literatura engajada:

“Julien Green, interpelado num almoço íntimo pelo poeta equatoriano Carrera Andrada sobre sua alienação, a sua fuga dos problemas políticos e sociais do seu tempo, ficou por um instante perplexo e por fim balbuciou: “Mas eu não entendo desses assuntos!” Seria justo que um Comitê Literário, em nome de uma doutrina política, obrigasse Julien Green a produzir “realismo socialista” ou, em último recurso, o impedisse de escrever o tipo de romance para o qual ele se sente mais inclinado? A minha resposta é negativa.” (1996, p. 70).

E mesmo assim, Veríssimo afirma, na pergunta anterior da entrevistadora:

“não vejo como – no meu caso particular – se possa escrever sobre pessoas e fatos desta hora eliminando de caso pensado todos esses problemas (...): guerras, fome, injustiças, mentiras publicitárias, interesses industriais e comerciais mantidos à custa de vidas humanas, falta de liberdade, torturas policiais, etc.” (1996, p. 70).

Em artigo panegírico de Flávio Aguiar, cita-se o escritor dizendo que “hoje em dia a gente não deve perder qualquer oportunidade de criticar o fascismo” (1997, p.96), assim como sua recusa de receber o título de doutor honoris causa da UFRGS,“por não querer receber honrarias de uma instituição a que qualificava de ocupada(1997, p. 98).
Embora seja verdade que Érico Veríssimo seja um dos autores mais populares da época, comparável apenas a Jorge Amado em número de leitores, e, assim sendo, ele possa ter se dado o luxo de assim como seu colega baiano não enviar seus livros à censura prévia, ainda restava à censura a possibilidade do recolhimento dos livros depois de publicados, como fez com Zero e Em Câmara Lenta. Dado este conteúdo bombástico, é de se refletir qual seria a verdadeira função e atuação da censura durante este período ditatorial, no que diz respeito à produção artística, seria de impedir a proliferação de ideias politicamente subversivas ou se o ato da proibição se basearia em outra motivação.
O estudo de Deonísio da Silva, Nos Bastidores da Censura, publicado em 1989, traz em um de seus anexos a listagem completa de livros que tiveram sua circulação cerceada pelo Estado, fruto de sua extensa pesquisa documental por parte do crítico. O subtítulo do livro já é um indício forte de um dos elementos principais da atuação da censura: sexualidade, literatura e repressão pós-64. A ordem dos dois primeiros substantivos é certamente significativa:o que esta listagem completa mostra é que a enorme maioria (estimo entre os oitenta e noventa por cento) dos livros proibidos pela censura, a julgar pelos seus títulos, não é de conteúdo abertamente político ou literário, e sim livros pornográficos ou de algum conteúdo centralmente sexual. Embora seja verdade que isto de fato é uma afronta à liberdade de expressão e indesejável em uma sociedade que se preza pela livre circulação de ideias, dificilmente se pode alegar que os sistemas político e intelectual brasileiro tenham sofrido sérios revezes com a proibição de livros com títulos como “Cidinha a incansável”, ou “As garotas que dizem sim”, ou ainda “Meu amor o bode”.
Inclusive, a leitura da lista para os estudiosos do período ditatorial não deixa de ser surpreendente, pois a maioria dos títulos que se supõe serem de esquerda que constam nela já tem sua proibição mencionada em numerososestudos sobre o autoritarismo brasileiro: ao se ler em quase qualquer ensaio sobre cultura brasileira sob ditaduraque neste período proibiu-se a circulação de livros como A Revolução Brasileira de Caio Prado Jr ou Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, fica normalmente implícito que estes exemploscomporiam uma fração bem menor do que realmente é da quantia total de livros proibidos de conteúdo intelectualmente não-insignificante, que a atuação da censura teria sido a da proibição de centenas de livros que teriam enriquecido o panorama intelectual brasileiro e facilitado a reconquista da democracia no Brasil.
Para além de citações livrescas que comprovam esta presença frequentemente nada cifrada da crítica do regime, o mero fato de que a ditadura foi uma presença constante na escrita literária da época que, por sua vez, não se mostra de difícil entendimento a nenhum leitor médio de romances épor si só um atestado de que na censura também se praticou aquela opressão calculada que Roberto Schwarz atestou ao falar que o regime só perseguia quem buscava fazer uma ponte com as classes baixas da sociedade: em um país até hoje grassado pela ausência de hábito de leitura, não seria com romances que esta ponte com as classes baixas seria feita. Como bem expressa Silviano Santiago, “a proporção de 60 mil leitores para 110 milhões de habitantes, já levantada por Roberto Schwarz em 1970 e retomada por Carlos Guilherme Motta em 1977, é ridícula e deprimente” (1982, p. 25) A cifra equivale a um leitor para cada 1832 não-leitores. A questão se torna ainda mais clara se pensarmos qual proporção destes 60 mil leitores seria leitora de literatura e, ainda mais, literatura contemporânea, que certamente não usufrui do mesmo prestígio dos textos já consagrados do cânone.
Flora Süssekind, quanto à inserção do discurso intelectual na sociedade mais ampla, se expressa com palavras duras ao falar de certa “inutilidade” dos protestos (literários ou acadêmicos) que circulavam apenas no próprio meio em que foram produzidos: 

“aos intelectuais ligados à produção ideológica, à cultura de protesto, restava uma espécie de “diálogo de comadres”. Ou falavam com os que já simpatizavam com seu ideario, ou com a própria camada dirigente. Quando se imaginavam em diálogo com a massa operária ou camponesa, seus interlocutores costumavam ser bem outros (...) seus possíveis espectadores já tinham sido roubados pela televisão. Os protestos eram tolerados, desde que diante do espelho (...) Sem os media e sem público, a produção artística e ensaística de esquerda se via transformada assim numa espécie de Cassandra. Podia falar, mas ninguém a ouvia. A não ser outras Cassandras idênticas.” (2004, p. 23-24)

Frisando este descompasso entre esforço criativo e intelectual e sua comunicabilidade, é produtivo citar a frustração de Tapajós:

“Tapajós estava muito feliz com o resultado de uma pesquisa no meio sindical e popular, que mostrara que seu documentário Greve de Março, patrocinado pelo Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, no prazo de um ano, fora visto pelo expressivo número de 250 mil pessoas, fato raro para um filme alternativo, de mercado independente. A alegria só durou até chegarem os dados do IBOPE da audiência de Os peçonhentos[documentário feito para o Globo Repórter, sobre bichos venenosos]: 35 milhões. Então, ele se perguntou: nos movimentos populares, “a gente tá fazendo filme pra 250 mil pessoas, e os caras aqui tem 35 milhões, o que estamos fazendo?”.” (RIDENTI, 2000, p. 326)

Na introdução de sua coletânea de textos de jornalismo cultural publicados nos anos ditatoriais, Flávio Aguiar lembra que naquela época “A pressão interna sobre a editoria de cultura era muito grande. Como parte menos visada pela censura do que as de política e reportagens, esperava-se que produzíssemos muito para preencher eventuais lacunas nas páginas(...)”. (1997, p. 13, grifos meus). A constatação ganha contornos ainda mais definidos se lembrarmos que a circulação muito maior que jornais tem em relação à literatura: se a censura caía menos em cima das partes culturais dos jornais, o que dizer quando o assunto são livros, cuja leitura é bem menos difundida?
Foi reconhecida já na época uma espécie de postura específica da censura em relação à literatura. Até mesmo o artigo de Zuenir Ventura de 1973, em todo seu tom catastrófico e título explícito de “Falta de Ar”, reconhece que a censura foi “mais indireta na literatura e no movimento editorial em geral” (GASPARI, 2000, p. 59). Já o texto de Heloísa Buarque de Hollanda e Marcos Augusto Gonçalves (publicado pela primeira vez em 1979): “[a literatura] ocupa um lugar até certo ponto privilegiado diante da censura oficial, na razão direta de seu alcance social e das próprias características de seu consumo, individualizado e caseiro” (HOLLANDA, 2004, p. 103). Encontra-se respaldo a esta interpretação de privilégio na opinião de um dos escritores mais socialmente engajados do período, João Antônio: “quando a censura abrangeu diretamente todas as formas de expressão, da televisão ao jornal, do teatro à vida sindical, a literatura cresceu em importância” (HOLLANDA, 2004, p. 146).
É possível ainda ver este espaço “privilegiado” da literatura de forma indireta nos números apresentados por Zuenir Ventura em seu livro de 1988 como o “saldo cultural” do AI-5, na forma como o número de apresentações de teatro e o de letras de música proibidas são mais de duas vezes maior que o número de livros proibidos: “um implacável expurgo nas obras criadas (...) cerca de quinhentos filmes, quatrocentas e cinquenta peças de teatro, duzentos livros e mais de quinhentas letras de música” (1989, p. 285).
Heloísa Buarque de Hollanda, em entrevista de 1979 com escritor e letrista de música Abel Silva, chega a fazer a pergunta que até hoje para muitos é central na produção literária da época, e recebe uma resposta que certamente surpreende a muitos:

“Eu tenho três livros publicados (...) Os dois escritos ao mesmo tempo e que são como verdadeiros sintomas do que eu, minha geração estávamos vivendo. Repare nos títulos dos livros: Açougue das almas (...) neste período de 1968/69 eu via tudo como um grande açougue, via tudo esquartejado, exposto aos pedaços, tudo ensanguentado. Eu poderia escrever mais 30 livros e todos teriam um título deste mesmo sentimento de esquartejamento. Eu reparo que na verdade todos os livros escritos naquela época são sintomas desta visão de terror
-Este procedimento é o que se costuma identificar como “Alegorias Táticas”, num momento em que não se podia falar claramente?
- Mas estas metáforas estão só nos títulos, dentro se diz tudo bem claramente. Em O Afogado há um personagem que vai preso como terrorista (...) não há nenhuma alegoria tática, eu não estava em condições de armar táticas” (2004, p. 130)

Creio que a proibição de romances e contos durante o período ditatorial se deu muito mais por um autoritarismo referente aos costumes (a tal “moral e bons costumes”) do que a cerceamento da circulação de ideias políticas do período: a literatura que era proibida frequentemente apresentava conteúdos de natureza sexual ou de violência explícita, às vezes sem qualquer desenvolvimento explicitamente político. A ofensa aos “bons costumes” era assim justificativa muito mais frequente à proibição de um livro do que “perigo nacional”, por mais do que a camada intelectual gostaria (ou ainda gosta) de acreditar o contrário. A proibição de Zero e a não-proibição de A Festa não aconteceu porque o primeiro seria mais subversivo ou que incitaria com maior eficácia a revolta, e sim pelo seu conteúdo de mais violência e sexualidade explícita, elementos reprovados pelo conservadorismo que detinha o poder e mandava na censura. Uma leitura atenta dos livros inclusive aponta A Festa como um romance muito mais diretamente crítico da ditadura, enquanto as críticas de Zero beiram o niilismo de tão abrangentes e violentas.
Apesar disto tudo, o problema principal deste entendimento simplificado da censura está muito além da constatação imediata de sua patente inaplicabilidade. Além de ser uma postura equivocada, ela se generaliza a resumo completo de toda a atividade literária da época, e quanto a isto Idelber Avelar se expressa da forma taxativa: “Apesar da importância que possa ter a denúncia das políticas repressivas, nada tem obstruído o entendimento da produção simbólica sob ditadura como o enfoque exclusivo na censura” (2003, p. 54).
Fundamentalmente pior do que isto, a ideia de que o uso da alegoria e de formas mais imaginativas se explica e se justifica pela existência de uma censura que impediria a publicação do livro deixa implícito que o uso da alegoria necessitaria de uma justificativa externa ao livro, no sentido de que seria uma forma inferior ao realismo padrão que seria a linguagem utilizada pelo escritor se ele não estivesse seu trabalho cerceado. A imaginação fica como recurso de emergência, talvez até mesmo como um mal necessário, em vez de caráter central da produção artística.Isto é perceptível, como já foi falado, na leitura de Callado do romance de Cortázar, que após citar o prefácio do autor argentino que menciona a existência de elementos fantásticos na narrativa, lamenta o fato de que O Livro de Manuel não trata de um sequestro que realmente ocorreu, já que isto, em sua concepção, teria dado ao livro mais valor. Esta postura parece permanecer até os dias de hoje quando o assunto é ditadura: no romance Não és tu Brasil, de Marcelo Rubens Paiva (autor do best-seller Feliz Ano Velho¸ em que narra seu drama pessoal de paralisia vertebral e o fato de seu pai, o deputado Rubens Paiva, ter sumido durante a ditadura), elogia-se no material de divulgação mercadológica a “inovaçãofactualista” do livro, que traz em seuposfácio uma breve bibliografia sobre o período.
Concordo com Idelber novamente no que diz respeito sua interpretação da recorrência do uso da alegoria, não por uma recusa admiravelmente admitida de “não conceder aos censores argentinos qualquer mérito por Respiração artificial de Ricardo Piglia (...)(2003, p. 20), mas sim de que, como o próprio crítico elabora, a própria realidade social em que o escritor habitava no contexto ditatorial era uma de verdades interditadas, de silêncios de significados verdadeiros e aparências falsas:

“[falando sobre a simplificação do uso da alegoria como forma de despistar] nessa interpretação a irrupção do alegórico aí se reduziria a um conteúdo já prévio e meramente recoberto a posteriori, supostamente enunciável transparentemente em tempos de “livre expressão”. Contra essa simplificação, vale lembrar a anedota de Ricardo Piglia, que ao regressar a Buenos Aires depois de uma viagem aos Estados Unidos, em 1977, observava que as paradas de coletivos haviam sido rebatizadas pela ditadura argentina: chamavam-se agora de “zona de detenção”. Na medida em que o país havia se transformado numa imensa zona de detenção, as próprias paradas de coletivos se deixavam ler como inscrição alegórica. Mais que de objetos alegóricos em si, falamos aqui, então, de um deixar-se ler como alegoria, um devir-alegoria experimentados pelas imagens produzidas e consumidas sob ditadura (...) caberia aqui, por conseguinte, uma primeira proposição: a ditadura põe em cena um devir-alegoria do símbolo. Como imagem arrancada do passado, mônada que retém em si a sobrevida do mundo que evoca, a alegoria remete antigos símbolos a totalidades agora quebradas, datadas, inscrevendo-os na transitoriedade” (2003, p.20-21)

Trata-se, portanto, de uma forma literária que ganha maior expressividade e, se é possível usar tal termo, “validade estética” em um contexto como o autoritário, uma vez que encena formalmente a situação vivida pelas pessoas naquele contexto. Sua identificação completa, no entanto, no sentido de atribuir uma lógica mecânica de causa e efeito e de criar laços de dependência direta, imediata e total, é um exagero e um erro, uma vez que este tipo de forma literária não é invenção de tempos autoritários. Basta lembrar que Kafka não escreveu sob uma ditadura.
Não se deve confundir também, como comumente se faz, alegoria com a mera expressão indireta, pois todas as formas literárias bem construídas comunicam ideias de forma indireta e se abrem a interpretações daquilo que se encontra no não-explicitado: nada mais esteticamente contraproducente que um parágrafo em que Machado de Assis expressaria diretamente sua opinião da canalhice de Brás Cubas ou da figura do pai em “Teoria do Medalhão”, por exemplo. Para aproveitar um livro aqui já discutido, ainda que de forma breve,Incidente em Antares tem pouco medo de expressar sua opinião quanto à realidade do país e, ainda assim, trata-se de uma alegoria[15], dada a impossibilidade dos eventos narrados e sua tentativa de representação da realidade que parte do universal para o particular, uma ausência de especificidade muito querida ao indivíduo moderno: Antares é qualquer pequena cidade do sul do país, sua existência depende da existência de muitas outras parecidas (inclusive na vida real), os mortos que ressuscitam são de todos os estratos sociais formando eles mesmos um pequeno microcosmo da sociedade que teriam deixado de integrar e passa a ser alvo de crítica.
Esta capacidade de uma realidade que acaba por se deixar ler como alegoria é certamente parte (frequentemente não reconhecida) da presença esmagadora que tem o status quo político tem sobre a atuação do intelectual brasileiro, a ponto de produzir percepções pesadamente enviesadas. Silviano Santiago produtivamente cita o caso de Murilo Rubião, que produzia seus contos fantásticos desde os anos 30 e parecia ganhar ares de atualidade com o novo contexto (Como diz Candido, “Na meia penumbra ficou ele até a reedição modificada e aumentada daquele livro em 1966”(2006, p.252)):

“Murilo escreveria como escreve – aliás, sempre escreveu – independentemente da censura. A censura apenas tornou mais significativa e mais atual a necessidade que tinha de escrever como escreve. A censura pôde ainda levar seu texto enigmático a ser compreendido de maneira mais concreta pelos seus contemporâneos dos anos 70. Não é por coincidência que Murilo, um escritor desprezado pelas histórias literárias, emerge de repente e com grande sucesso de tiragem e de crítica. A censura preparou o campo, as mentes, para receber o impacto de um texto tão estranho e parabólico quanto o de Murilo. Há hoje facilidade para o receptor sintonizar, com maior prazer e proveito, O Ex-mágico. Durante a década de 50, época em que realmente foram escritos os contos que hoje têm sucesso, o receptor estava pouco preparado para receber o texto de Murilo e, portanto, era pouco entusiástico na leitura” (1982, p.52-53)

Se tomarmos “censura” e ampliarmos sua abrangência para todo o contexto político-cultural, a colocação ganha ainda mais pesode validade interpretativa. A constante presença da ditadura estava não apenas na mente dos criadores culturais como também na pequena parcela da população que consumia aqueles bens culturais criados por escritores de consciência crítica. Um exemplo mais concreto disto pode ser pinçado na introdução da coletânea organizada em 2006 dos textos do semanário Pasquim, fundado no ano seguinte àpromulgação do AI-5 e que nos anos seguintes se tornaria um marco da cultura anti-ditatorial brasileira:

“(...)um dia, com a página do Tarso em branco e seu deadline vencido, Jaguar fez valer de sua autoridade e sua porra-louquice, enchendo todo o espaço com a palavra “blábláblá”, mantendo a assinatura do Tarso, que afinal levou a fama pela original ideia. Os leitores acharam o máximo, inventivo, o escambau, -especialmente aqueles que entenderam a brincadeira como uma dissimulada cutucada na Censura, não pelo que de fato era: um inconsequente sarro dadaísta”(2006, p. 10)

Como foi feito com a citação de Silviano Santiago, aqui também é produtivo tomar censura como metonímia e entender que a centralidade que a ditadura ocupava no pensamento da maioria dos intelectuais brasileiros da época, centralidade ainda forte em qualquer estudo da produção simbólica da época. Tudo era anti-ditadura, anti-ditadura era tudo, até o que não era realmente. Se não era, deveria ser. E assim ia.
Até mesmo Idelber Avelar, autor de uma leitura contundente, sutil e profunda da situação latino-americana na realidade pós-ditatorial em seu livro Alegorias da Derrota, acaba por expressar indiretamente este ideia contínua nas leituras da produção da época. Sua breve interpretação de A Hora dos Ruminantes(1965), de José J. Veiga,decerto se encaixa na questão da obrigatoriedade de se estar falando estritamente da ditadura.
Em se tratando de um romance relativamente desconhecido nos dias de hoje, é produtivo resumir o enredo, que é bastante simples.O vilarejo de Manarairema passa por três reviravoltas desconcertantes: primeiro, um grande acampamento surge perto do rio, povoado por estrangeiros, que em seus poucos contatos acabam estabelecendo uma dominação cultural e econômica com algumas figuras importantes do vilarejo. Logo depois, a cidade sofre duas invasões surreais: a primeira é de cachorros, que rondam famintos pelo vilarejo e depois subitamente somem, e a segunda é de bois, e esta invasão praticamente destrói a cidade, em um dos capítulos que é dos mais interessantes da literatura brasileira. Os bois também somem, e a população reunida nas ruínas do vilarejo se dá conta logo depois que os estrangeiros também sumiram.
A leitura de Avelar aparenta ser bastante sólida e razoável, e é na verdade bastante predominante nas leituras feitas da obra de José J. Veiga, em especial seus romances publicados nos anos ditatoriais, a de que o texto faz referência oblíqua e contínua ao autoritarismo vigente no país naquele momento. Analisando o romance junto a duas outras obras de autores latino-americanos tidas como semelhantes às de Veiga, Avelar alega que:

“Estas alegorias nos apresentam, portanto, um mundo desprovido de toda exterioridade, onde o fundamento último se tornou invisível. Não por acaso, todas elas têm lugar dentro de um espaço circunscrito (...) Mais além dos muros alegóricos, pode existir um domínio ou uma lógica alternativa,  mas esse espaço se tornou inenarrável. (...) A história se apresenta atribuir fato algum à ação de uma consciência ou sujeito.A ordem em que se transita revela tal arbitrariedade ou gratuidade que vem a ser associada, intra e extradiegeticamente, com a própria natureza (...) é quase como se os opressores fossem tão acidentais ao marco da dominação como os oprimidos”(2003, p. 91-92)

O crítico sabiamente não chega a elaborar em cima destas categorias no sentido de fazer uma conexão direta à realidade autoritária vivida pelo Brasil, mas o passo para isto parece curto, já que seu livro inteiro é a defesa de uma forma literária (a alegoria) que daria melhor expressão à realidade vivida sob e posterior à ditadura. Feita a conexão por muitos certamente realizada, o romance de Veiga então seria uma crítica à ditadura na medida em que as opressões que surgiram e fizeram da vida da população um inferno se equivaleriam à opressão imposta pela ditadura ao povo brasileiro,o fato de serem estrangeiros os invasores certamente combinandomuito bem com a ideia de que a ditadura brasileira foi idealizada e executada a partir de Washington e que o capitalismo é uma imposição externa e estranha ao povo brasileiro. A ideia das invasões ficando gradativamente mais problemáticas também combina com a realidade brasileira que, sob o jugo dos militares, se tornava mais e mais opressiva (inclusive o crítico desta hipotética leitura poderia colocar que o livro pressagiava o AI-5 de dois anos depois).
Assim sendo, o romance apresentaria algumas falhassignificativas, seja na sua ambientação de pequeno vilarejo do interior, que não corresponderia com a realidade cada vez mais urbana do país e onde o debate ideológico circulava com mais intensidade (por conta das universidades, jornais de grande tiragem, etc.), ou, defeito principal, sua conclusão, que a opressão de repente sumiria de forma tão misteriosa quanto veio, não pelo enfrentamento daqueles que se colocaram contra a nova ordem. Não consta no romance qualquer luta séria e contínua contra a nova ordem, apenas a constatação da miséria que ela impõe e a perplexidade diante de seu surgimento.
Ainda que a data de publicação de 1965 e a centralidade de um autoritarismo imposto possam dar a entender que o livro tem uma relação estreita, imediata e completa com a realidade política de então, Alcmeno Bastos, em seu ensaio sobre a obra de Veiga, faz bem em lembrar de que o autoritarismo no abstrato e imaginário, junto com certa perplexidade e forte dose de desconhecido, é uma temática constante na obra de Veiga, para além de conjunturas externas que possam dar a ver uma maior relevância para sua obra. O exemplo mais claro que se pode ter disso é seu livro de estreia, Os cavalinhos de Platiplanto, de 1959, em que os contos desenvolvem reiteradamente, nas palavras de Bastos, “a origem absurda do poder” (2000, p. 110). Uma das narrativas, “A usina atrás do morro”, chega a se mostrar como uma forma anterior ou rascunho de seu romance de 1965, contando a história de que estrangeiros impõem uma nova ordem a um vilarejo que pouco faz para reagir, e não houve quem fizesse a conexão dos contos com o governo de Juscelino Kubistchek.
O mesmo tipo de interpretação politicamente imediatista aparece também relatada por Bastos a respeito da obra de Roberto Drummond, fortemente calcada na imagística pop, citando livremente nomes de refrigerantes, estrelas do cinema e figuras históricas, literárias e políticas (sem respeito a qualquer cronologia ou hierarquia). Bastos recupera entrevista em que o autor “anunciava o propósito de escrever um “ciclo da Coca-Cola”, tal como José Lins do Rego escrevera o ciclo da cana-de-açúcar e Jorge Amado, o ciclo do cacau” (2000, p. 131). Dando a ver de forma explícita a força de um sistema que frequentemente enquadra toda tentativa de novidade em seus parâmetros pré-estabelecidos, um crítico de jornal elogiou a “coragem do livro” e o editor foi rápido e esperto em aproveitar para colocar na orelha do livroSangue de Coca-Cola, de 1980:

“Pela primeira vez no Brasil alguém tem a coragem de escrever um romance onde os ditadores não se chamam Juan, Hernandes ou Pérez, mas Castelo Branco, Costa e Silva e Garrastazu Médici. E, ao invés de se passar no Eldorado, Sangue de Coca-Cola de Roberto Drummond se passa no Brasil mesmo, no negro período marcado por um ininterrupto massacre de indefesos presos políticos. Os nomes estão todos lá” (2000, p. 140).

Como é bem analisado por Bastos, “a singularidade de chamar Garrastazu Médici de Garrastazu Médici é amplamente compensada pela livre manipulação de nomes, pela desestabilização da referencialidade.” (2000, p. 141). Na obra de Roberto Drummond, Médici é citado ao lado e da mesma forma que Bob Kennedy, ou Marilyn Monroe, ou até mesmo Coca-Cola: trata-se de uma salada de nomes que visa expressar a abundância de referências em que se vive no mundo midiático de hoje, e não uma acusação de dedo em riste e destemor diante de possíveis retaliações estatais: a publicação do livro em plena reabertura política certamente seria assim um enfraquecimento desta ideia de coragem como elemento principal do livro, quando a censura estava praticamente extinta no país.
A censura serve de metonímia também para uma espécie de valorização pelo negativo que é o fenômeno central da produção cultural em anos ditatoriais que este estudo busca entender melhor. Embora seja verdade que tudo que é proibido tem, para muitos, um apelo a mais, a injustiça patente da proibição certamente fortalecia este apelo e acabava produzindo critérios pela negativa: aquilo que era proibido, haveria de ser bom. A citação de Roberto Schwarz transcrita na introdução desta dissertação, em que durante um debate um poeta acusa o outro de não ter um verso que o leve à cadeia, é exemplar: o campo político solapa o artístico, e no lugar de se discutir metáforas, interpretações e construtos estéticos, discute-se entre literatos sempre a política e a polícia, e o ato estético se resume em seu elemento contestatório. A arte toma emprestada a importância da política e busca se engrandecer por meio deste envolvimento direto (para além do envolvimento inevitável pelo aspecto inescapavelmente ideológico de todo discurso): o contexto político sendo claramente negativo e anti-intelectual, este envolvimento se dá pela crítica repetida e reformulada. A censura, sendo a forma de contato direto da produção artística com a injustiça institucional estabelecida, não haveria de deixar de tomar seu espaço de importância nesta nova estruturação do campo intelectual.
Osman Lins, um dos escritores de maior apuro formal de nossa literatura, discute brevemente a questão da censura em seu livro sobre o fazer literário, o hoje esquecidoGuerra sem testemunhas, publicado em 1969 e nunca reeditado. No último capítulo do livro, o romancista interessantementeencena umdebate entre um escritor e um censor, dando plena (ainda que imaginada) voz ao oponente, que diz que a censura é “um órgão que, conquanto poderoso, não é um inimigo, mas – e só – uma realidade inevitável” (1969, p. 234). Retrucando, o escritor define de forma exemplar que

“a função do Censor, em todas suas modalidades, é contrária à nossa evolução e nossas buscas: intenta impor-nos padrões e normas cuja obediência corresponde à negação do que somos ou devemos ser (...) Asperseguições, onde quer que se manifestem, aos escritores, fundam-se antes (e assim confinam a impostura) num desconhecimento radical do fenômeno literário”(1969, p. 234-6)

A literatura, portanto, não tem nada a ver com censura, cuja mera existência é um contra-senso. No entanto, à pergunta posterior do censor sobre se o artista vê qualquer aspecto positivo na atuação da censura, o escritor notavelmente responde:

“A censura presta uma homenagem involuntária ao escritor e ao livro. Com o pretexto de abalar as vozes que se opõem ou parecem opor-se à ordem – e que são, afinal, a expressão ou tentativa de expressão da consciência coletiva, por muitos motivos silenciosa, manifestando-se através do poema, do ensaio, do romance – estimula muitas vezes, naqueles cujo silêncio, do mesmo modo que o da comunidade, seria desejável, a confiança em seu instrumento próprio. Poderíamos duvidar, nós que fazemos da escrita uma razão de ser, de seu peso fora do âmbito exclusivamente literário. A perseguição de que são alvo e os sofrimentos de tantos companheirosnossos – prisioneiros, degredados ou mortos – obrigam-nos a ver as coisas de outro modo. Não temos força bastante para destruir a Besta; mas a inquietamos” (1969, p. 237)

Isto é, o autor sergipano primeiramente nega de forma correta qualquer valor à atuação da censura, mas depois constata que ela valoriza o trabalho literário ao dar suficiente importância a ele para que seja digno de sua atenção e sua proibição. Tratando-se de um país em que a atividade intelectual é colocada sob constante xeque e acusações de inutilidade[16], esta valorização involuntária acabaria deixando o papel secundário dado a ela por Osman Lins e tomaria protagonismo, que aquilo que era proibido ou corria o risco de ser proibido era certamente melhor que aquilo que não correria este risco.
Não se trata, claro, de uma exclusividade brasileira esta função de valorização feita pelo negativo exercida no entendimento da atuação da censura. No capítulo de seu livro Literatura e engajamento intitulado “Voltaire ou a idade do ouro” (idade do ouro do intelectual engajado), Benoit Denis faz um retrato ainda que historicamente e geograficamente distante, não deixa de ter suas fortes semelhanças com o contexto vivido durante a ditadura brasileira:

“(...)a imprensa conhece um forte desenvolvimento: o número de textos impressos cresce e assiste-se, numa lógica de concentração capitalista, à constituição de importantes grupos editoriais, capazes de difundir as obras numa escala europeia e de contornar as proibições da censura. Esta última continua, com efeito, a se exercer tanto no plano da realeza, quanto no religioso, mas, em vez de frear a atividade, ela contribui para o nascimento, entre os escritores, de um tipo de consciência de sua existência coletiva: as estratégias utilizadas para driblar os efeitos da censura (o recurso a edições estrangeiras ou clandestinas); a importância da cópia igualmente (...) Além do mais, as dificuldades e as proibições com as quais se confronta o filósofo tornam-se de um certo modo um signo de eleição e de reconhecimento entre os pares, todos sujeitos às mesmas penas da censura” (2002, p. 143)

Quanto as edições estrangeiras, difícil não se lembrar de Zero, que teve sua primeira edição na Itália, e a possibilidade da clandestinidade e da importância da cópia faz lembrar a geração mimeógrafo, cujos livrinhos facilmente reproduzíveis decerto não passavam pelo crivo da censura da época. É claro que as agruras sofridas em grupo haverão de constituir uma questão de identidade, como este citado reconhecimento entre pares faz lembrar movimentos anti-censura como o que foi mobilizado a favor de Rubem Fonseca na proibição de Feliz Ano Novo (“Afonso Arinos, Lygia Fagundes Telles, Aliomar Baleeiro, Guilherme Figueiredo, Roberto da Matta, Bernardo Élis, Nelson Werneck Sodré e mais de mil outros intelectuais assinaram um manifesto contra a censura[de Feliz Ano Novo]”(1989, p. 29-30)), é produtivo reavaliar estas questões e atuações da intelectualidade. Não havia, por exemplo, movimentação na classe artística quando a proibição recaía sobre as peças de Nelson Rodrigues, notório apoiador do regime: a eternamente importante questão da liberdade de expressão parecia se fazer secundária à expressão de quem se proibia. Como o próprio o dramaturgo desabafa: “Durante dezoito anos ou vinte, fui o único obsceno do teatro brasileiro. Minhas peças Álbum de Família, Anjo negro, Senhora dos afogados foram interditadas. E não tive a solidariedade de ninguém” (1997, p. 29).
É possível ver bastante inércia no entendimento do papel da censura e da atuação da camada intelectual brasileira na orelha da edição recente (a 12ª, de 2007) de A Festa, escrita por Ignácio de Loyola Brandão.Nela, o autor questiona como “este romance não foi proibido nos anos 70? Burrice da censura? Escapou pela tangente? Não entenderam? Não foi denunciado por ninguém?”(2007, orelha do livro), nenhuma havendo entre as possibilidades a de que a circulação do livro foi permitida por não terem visto perigo ou significativa ofensa naquela denúncia específica que, diferente do próprio romance proibido de Brandão, não contem grande carga de violência ou de sexualidade explícita.Dificilmente tamanho sucesso de crítica e vendas passaria despercebido pela ditadura (que, um ano após o lançamento do romance de Angelo prenderia Renato Tapajós por Em Camara Lenta).
Brandão chega a dizer que: “pelos cânones de tempos obscuros, bem “merecia” uma proibição (...) este é, felizmente, um livro subversivo”. Ainda que o autor coloque o verbo “merecer” entre aspas, não deixa de ficar clara a categoria da proibição como um mérito ou vantagem específica do livro, e ainda que perto do final o escritor faça o tradicional apelo de “Livro clássico é o que podemos ler em qualquer época, qualquer tempo, não importa há quantos anos foi publicado. A Festa se inclui entre os belos clássicos(...)”, o resto do texto ainda assim ressalta continuamente a questão contextual em que o livro foi escrito e publicado. Embora certamente não seja descabida a ênfase (como veremos mais adiante, o centro absoluto do livro de Ângelo, em suas várias narrativas que incluem dramas de aparência totalmente pessoal, é a ditadura), é válido pensar em como o mesmo não acontece com romances de outras épocas brasileiras: não se lê obrigatoriamente nas orelhas de clássicos do romantismo retrospectivas da sociedade brasileira do século XIX, muito menos panoramas dos anos 30 e 40 nas edições de Graciliano Ramos. Enquanto isto, até mesmo a edição comemorativa de 35 anos de Zero conta com uma frase de 2010 de Antonio Candido que ressalta o contexto de publicação do romance de Brandão.
Ainda assim, é este merecimento de proibição como elogio da obra é a expressão mais concisa de todo o espírito da classe intelectual brasileira da época e da de hoje que pensa sobre a época. Existia um Grande Mal, e o combate contra este grande mal foi certamente corajoso e louvável, mas seu engrandecimento para além da função realmente exercida não produziria distorções interpretativas? O que dizer dos anos seguintes após a ditadura, em que todo o vigor cultural que conseguia resistir parece incapaz de se manter sozinho? E se a muralha de autoritarismo que os autores constantemente tentavam derrubar não era na verdade coluna de sustentação?Em um contexto social-político sem a atuação de uma censura, que elogio se equivaleria ao “merecimento” de uma proibição? Como o sistema literário repensaria suas categorias tão solidamente estruturadas ao redor do ser-contra?




Capítulo 6 - Problemáticas da resistência anti-ditadura

6.1 O “vazio cultural” e a solução mágica

            Antes de finalmente analisar com mais detalhe esta questão principal deste estudo, a pujança produtiva da literatura brasileira sob a ditadura (que faz com que Érico Veríssimo, ao fim de quarenta anos de carreira, diga em 1973, não sem exagero, que “nunca tivemos uma literatura mais rica que a de hoje no Brasil (GASPARI, 2000, p. 66)) seguida do marasmo cultural sob a redemocratização, a ponto de os anos 80 serem chamados por muitos de “década perdida”, é interessante constatar inicialmente que, por mais que em anos posteriores tenhamos uma opinião positiva do saldo literário daqueles anos, a percepção dos próprios agentes culturais daquele tempo sobre seu contexto não era das mais benevolentes ou otimistas. A expressão mais correntemente utilizada na época era a de “vazio cultural”, que, de acordo com Heloisa Buarque de Hollanda, se originou em um artigo de Zuenir Ventura, de julho de 1971, em que o jornalista atribui ao AI-5 a responsabilidade por uma ausência de movimentação cultural do país.
Para além das automáticas reprovações a respeito da cultura produzida no tempo em que se vive, independendo de qual tempo que seja, postura um tanto presente e persistente quando se trata de um discurso de centenas de anos de tradição, creio que isto também se dá por conta da conexão inescapável que se via e se forçava entre produção cultural e o campo político: se o político-social era a categoria de importância máxima para o intelectual, a interferência nesta sociedade teria certamente um lugar de privilégio nesta concepção de cultura; a sociedade permanecendo rigorosamente a mesma depois da publicação das obras, qualquer obra que fosse, não é de se espantar que analise a produção contemporânea como anêmica. O fato de o principal defeito social reiteradamente apontado pela literatura e pelos intelectuais ser um defeito bastante claro e óbvio, o autoritarismo imposto e a ausência de liberdade de exercício ideológico, tornava este caráter ineficaz ainda mais realçado. Assim, é possível encontrar constatações automaticamente contraditórias como as de Fernando Henrique Cardoso, que, em depoimento já citado a Zuenir Ventura, no mesmo parágrafo que constata a existência de uma contemporânea explosão de livros junto ao aumento “violento” de número de universitários no Brasil, constata-se que o país vive “um momento extremamente negativo, pálido do ponto de vista cultural” (2000, p. 81).
Flora Süssekind, em 1985, olha para o passado recente e tem a seguinte opinião quanto o diagnóstico de vazio cultural:

“[o vazio cultural é] verdadeiro lugar-comum quando se fala das duas últimas décadas (...) Tomando ao pé da letra a expressão, já seria possível negá-la. Não houve vazio, houve um volume significativo de publicações. É só pensar na ampliação do mercado editorial no Brasil dos anos 80, possível graças à conquista de público realizada na década anterior” (2004, p. 107)

Este pessimismo figurou como uma espécie de clichê entre vários escritores, encarando a realidade de modernização conservadora, falta crônica de lugar para o intelectual na sociedade brasileira e autoritarismo violento como impossibilidades estruturais de exercer seu ofício. Renato Franco,em seu livro Itinerário Político do Romance pós-64, bem resume esta situação:

“destaca-se os sentimento – então verdadeiro lugar-comum entre os intelectuais (...) da inutilidade da literatura, que teria transformado o ato de escrever em um anacronismo condenado ao rápido desaparecimento (“escrever virou bobagem sem importância” [Ângelo] dirá em outro texto).” (1998, p.212)

            É importante frisar que, apesar da presença bastante contínua deste questionamento a respeito da literatura da época, a dúvida se expressou em nenhuma forma mais frequentemente que na própria literatura e nos comentários tecidos sobre literatura: ainda que se duvidasse da efetividade e da “utilidade”, continuou-se produzindo, continuou se posicionando contra, apenas sob esta sombra de incerteza.
Isto certamente teve pesada influência da situação da camada cultural no período imediatamente anterior, com certa efervescência extrovertida dos anos 60 que era obviamente impossível de se manter após o golpe. O livro de Marcelo Ridenti Em Busca do Povo Brasileiro(2000), não obstante um entusiasmo talvez excessivo que adere um pouco demais às categorias do pensamento daquela época, é valioso pelos depoimentos que transcreve, como este de Cacá Diegues, feito em 1991: “Estávamos de tal modo convencidos de que iríamos construir um mundo melhor que nem alimentávamos dúvidas: no dia seguinte o mundo seria feliz e risonho graças aos nossos filmes, peças, etc.” (2000, p. 47). Talvez pela inércia, tal entusiasmo chegou a produzir, ainda nos anos iniciais e menos violentos da ditadura, o show Opinião, cujo tom festivo foi criticado de forma corretíssima por Roberto Schwarz em seu ensaio de 1970, questionando o tom de alegria diante da derrota política: “era inevitável um certo mal estar estético e político diante do total acordo que se produzia entre palco e plateia (...) se o povo é corajoso e inteligente, por que saiu batido? E se foi batido, por que tanta congratulação?” (SCHWARZ, 2000, p. 37-38). Era verdadeiramente impossível que o sistema intelectual e artístico aos poucos não fosse adaptando sua visão da cultura e situação do país e sofresse uma espécie de “queda de glória”, uma vez que seu ativismo político já existia antes do golpe e se intensificou a partir dele, e seu otimismo e ativismo explícitos não haveria de permanecer sem mudança a partir da percepção cada vez mais aguda de seu impasse.
Constatado isto, assim como a própria ditadura contra a qual se lutou discursivamente, a cultura durante este período teve várias fases. Ainda que alguns dos títulos de destaque mencionados neste estudo tenham sido publicados nos anos iniciais da ditadura, foi a partir da metade dos anos 70 adiante que ocorreram desenvolvimentos culturais mais vívidos. Como o próprio Zuenir Ventura opina em seu artigo seminal, a cultura vivia “uma fase de transição em que, como superestrutura, tenta a adaptar-se às alterações infra-estruturais surgidas no país” (GASPARI, 2000, p. 47). Para além da aplicação meio superficial de jargão marxista feita pelo jornalista, não deixa de ser válida a colocação de uma cultura que sofre um choque oriundo da esfera política (de onde, na sua maior parte, nunca conseguiu qualquer pequena independência) e acabou por se adaptar a esta nova realidade. Tratando-se esta realidade de uma em eterna mudança (mais por conta da desordem interna dos militares do que por estratégias de sobrevivência), seria difícil esperar os mesmos sinais de vitalidade, expressados da mesma forma, durante os vinte e anos de ditadura (e anti-ditadura).
Renato Franco divide, por exemplo, a produção literária em três fases, uma primeira que vai de 1964 a 1969, não-nomeada pelo crítico, e outras duas fases na década seguinte:

“a da “Cultura da derrota”, que predominou até 1974 e coincidiu com os momentos mais repressivos da ditadura militar, e aquela que denominei de “Fase de resistência” a qual se prolongou de 1975 até o final da década e coincidiu com o processo de “abertura política” promovida pelos militares” (1996, p. 24)

Para além das aspas inexplicáveis cercando “abertura política” (a ditadura militar não teria acabado?), e certo apreço por parte do crítico por divisões estanques com datas de início e fim e categorias perfeitamente delineadas, que, exceto quando patentemente válidas como a ideia de uma literatura pós-64, acabam por produzir algumas distorções, não deixa de ser interessante notar como seu pós-64 não inclui os anos 80, ainda que o poder só tenha retornado a mãos de civis na metade da década seguinte e o primeiro representante diretamente eleito só vindo em 1989.
A expressão “vazio cultural” hoje inexiste no pensamento a respeito da produção artística da época, mostrando assim de certa forma seu desacerto, mas em muitos casos esta percepção foi substituída por uma admiração meio irrestrita à coragem (sem dúvida real) diante daqueles que contestaram o regime autoritário, admiração que não leva em conta a situação de fato enfrentada pelos intelectuais da época: o empenho contínuo, uma repressão arbitrária e imprevisível e uma sociedade largamente indiferente. Neste procedimento de mudança de opinião, passou-se de um equívoco para outro, da leitura de uma ausência de atividade cultural, falsa, para a de uma luta cultural supostamente gloriosa. Assim sendo, como categoria descritiva seria produtivo retomar criticamente a expressão vazio cultural e adaptá-la para retratar a realidade de fato vivida pela produção cultural, uma que reflita sua existência e sua dificuldade de alcançar uma organicidade: seria interessante, assim, pensar em uma “ineficácia cultural” que, não obstante uma atividade vívida, não consegue alcançar minimamente seus objetivos e, desta forma, se frustra socialmente e alcança alguma consagração meramente interna.
Como uma última reação à percepção negativa a respeito de si mesma, a camada intelectual acabou por criar o mito das Gavetas Cheias. A ideia é a de que a censura e a perseguição estariam impedindo a circulação da verdadeira cultura brasileira e de que, terminada a ditadura, a cultura e a sociedade poderiam voltar a respirar com saúde e vitalidade: as gavetas assim guardariam os manuscritos de peças e romances que deixaram de circular por conta da opressão. De quem seriam essas gavetas varia de opinião a opinião: no texto de 1971 de Zuenir Ventura, o dramaturgo Augusto Boal afirma “[este vazio cultural] pode ser que exista, mas as gavetas dos censores não estão vazias. Esvaziem-se as gavetas dos censores e se encherá de imediato o vazio cultural que alguns sentem” (2000, p. 46-47).
Ainda que não mencione especificamente o autoritarismo, talvez por receio de sofrer uma represália uma vez que publicava o texto em jornal em 1975, é possível perceber sentimento semelhante também em João Luiz Lafetá quando diz, a respeito da indisponibilidade do romance Zero: “nossa insuficiência editorial estava fazendo-nos perder, se não o contato com obras-primas, pelo menos a oportunidade de conhecer experiências ficcionais interessantes e – principalmente – atualizadas em relação à vida do país” (2004, p. 449). O bom leitor decerto entenderia o que o crítico quis dizer por insuficiência editorial.
Já em outros momentos entende-se que as gavetas são dos próprios autores, que escrevem suas obras e, temendo retaliações estatais, guardam-nas até momentos mais artisticamente e intelectualmente propícios. Haveria, portanto, uma resistência artística não-registrada por parte da camada intelectual que é cerceada diretamente pela atuação do autoritarismo: reforça-se, mais uma vez, a conexão direta e antagônica entre a ditadura e a arte brasileira.


6.2 As gavetas vazias e a necessidade do vilão

Com o fim da ditadura, no entanto, as gavetas se revelaram vazias, e por mais que soe razoável a explicação de que a conjuntura negativa possa ter suscitado certa preguiça ou desmotivação por parte dos autores, que poderiam passar dezenas ou centenas de noites elaborando uma obra só para vê-la interdita posteriormente, é um equívoco acreditar que a questão da censura, qualquer que seja a interpretação de sua atuação, esgota a descrição dos problemas vividos pelos autores.
Retomando nossa constante de tomar a censura como metonímia do regime militar, as gavetas da camada artisticamente produtora do país se revelaram vazias porque elas só haveriam de estar cheias se houvesse alguma espécie de independência da produção cultural em relação ao autoritarismo vigente. A cultura intelectual brasileira, sempre muito conectada à realidade política do país, havia se entregado quase que inteiramente ao enfrentamento e à crítica do contexto autoritário daquele momento, restando pouquíssimo espaço e atenção para conjecturas que não estivessem de uma forma ou de outra conectadas com o absurdo e a ilegitimidade da ditadura. Ainda que não se falasse especificamente da impossibilidade de escolha de governo, qualquer assunto de contundência aparecia como que submetido à realidade ditatorial do país: pode-se falar de migrações internas do país, e estaria falando da falta de investimento estatal nas regiões pobres. Pode-se falar de famílias problemáticas ou de sexualidade, e estaria se falando do conservadorismo de costumes que os militares promovem. Pode-se falar de música, e estaria contrapondo canções proibidas com os vetustos e insuportáveis hinos militares.
Não se trata aqui de uma acusação de dedo em riste, apenas uma constatação que se torna patente a partir da leitura mais superficial dos textos da época: não existiam textos guardados da censura (ou pela censura) porque era raro o texto que de uma forma ou de outra não negociasse diretamente com aquela realidade autoritária vivida então. Neste sentido, não existindo mais a realidade autoritária, não existiria mais aquele contexto no qual a cultura foi, de forma gradual porém sólida, re-estabelecendo seus critérios e finalmente foi capaz de produzir diversos livros notáveis que sabiam conjugar expressão literária esteticamente pertinente e contexto autoritário. Fortaleceu-se esta conexão negativa e criou-se critérios quase que exclusivamente ao redor dela, estabelecendo este vínculo sólido com a questão conjuntural do autoritarismo de então.
Nelson Motta, não sem alguma simplificação, diz em depoimento de 1979:

“No Brasil, ficou o sistema de um lado e qualquer crítica, qualquer questionamento era contestação, uma palavra que teve seus dias de glória. E, na verdade, todo mundo perdeu o hábito de se questionar e de questionar o país. Como não podiam questionar publicamente, nem nos próprios trabalhos, então isso infeccionou, se adulterou num questionamento policialesco do trabalho dos outros artistas. É próprio do artista se questionar. O artista que tem certeza absoluta... aí fica estranho(...)” (1980, p. 41)

Havendo esta referência una ainda que negativa, não é de se surpreender que o campo cultural, bastante minguado já que se trata de um país subdesenvolvido, ganhasse certa força e foco contínuo, ocorrendo até mesmo uma união implícita de grupos ideologicamente bastante distintos sob a mesma descrição de “os perseguidos”, ou “os anti-autoritários”. É fácil perceber como uma colocação de crítica a um grupo nomeado de “anti-autoritários” se torna dificultosa em um ambiente de ditadura, uma vez que o contrário disso corre o risco de soar a favor do autoritário. José Arthur Gianotti declara:

“Até hoje o grupo sofre o peso dessa fase [de expulsões da universidade], pois foi unido pelo olhar e pelo porrete da repressão, não tendo assim tempo de se aperceber a si próprio, tecer uma identidade de projetos na base de nossas diferenças. Neste sentido a abertura nos ameaça, como a todos os grupos de oposição, porque nos ancoramos nas traves do autoritarismo externo, sem lograr uma articulação própria” (1980, p. 57)

Reconheço que o assunto que busco analisar é um tanto espinhoso: apesar de fazer muito tempo que convivemos na literatura brasileira com a questão do empenho político no discurso artístico e de suas possíveis limitações em relação à qualidade estética, creio que o problema não se resume a uma mera condenação à arte estritamente panfletária, ponto em que o assunto frequentemente é encerrado. É de conhecimento de todos os estudiosos e interessados em arte política a colocação de Walter Benjamin que desfaz a antiga dicotomia entre arte boa e arte politizada, subjugando a efetividade da segunda à realidade da primeira. Voltando ao sistema literário brasileiro, encontramos no próprio Formação da Literatura Brasileira, em todo seu entusiasmo pela recém-adquirida capacidade de auto-expressão literária por parte de uma nação, a preocupação de um possível apagamento do artístico pelo político: “como não há literatura sem fuga ao real, e tentativas de transcendê-lo pela imaginação, os escritores [brasileiros] se sentiram frequentemente tolhidos no voo, prejudicados no exercício da fantasia pelo peso do sentimento de missão” (2007, p. 28).
Não se trata do velho problema, a meu ver resolvido no que diz respeito o plano da teoria crítica, de uma presença exagerada do político em detrimento do estético. Para ver quão resolvido é este problema, basta constatar a pecha inequivocamente negativa que é para uma obra de arte a qualificação de “panfletária”. Não se fala aqui de quão artisticamente equivocadas eram as iniciativas populistas como as do CPC, equívocos em geral reconhecidos posteriormente pelos próprios participantes destas iniciativas: as obras destas vertentes de nossa produção cultural pertencem mais à recuperações historiográficas que às de análise literária que pretendem transcender pelo menos em parte o período histórico estudado. Afinal de contas, quais são as obras do CPC que hoje são encenadas, quais são as reedições contemporâneas de “Violão de Rua”?
O fracasso das iniciativas do CPC se dá no plano estético e no plano político: tanto suas peças não eram boas obras de arte quanto também eram ineficazes no seu ímpeto de produzir efeitos políticos imediatos ou profundos. Flávio Rangel, em depoimento de 1979, faz uma retrospectiva sobra de seu trabalho de teatro populista que certamente reforça a ideia de um valor da expressão de alteridade (não necessariamente atrelado aos estudos de minorias) como sendo elemento fundamental à literatura:

“um belo dia nós fizemos uma pesquisa para saber que peça, das que tínhamos montado (...) eles tinham gostado mais, e eles disseram que era de Leonor de Mendonça. Nós perguntamos por que, e um deles disse assim: “por que a gente percebeu que um duque também tem ciúmes”. E quando nós perguntamos porque eles não tinham gostado tanto de Semente: “é porque aquilo é uma estória de operário, a gente sabe disso, e inclusive não é bem assim” (1980, p. 91)

Esta expressão de alteridade profunda certamente não tem lugar neste ativismo artístico explícito e fervoroso, que tende a operar por agrupamentos e simplificações: quanto maior certeza tiver o indivíduo, maior chance é a de ele atuar e atuar com firmeza em determinado campo. Em um entendimento de mundo binário e maniqueísta, o outro só haveria de ser inteiramente mau e desprezível, havendo apenas consideração por parte de quem detém o discurso para aqueles que compartilham de seu posicionamento político prévio.
O fracasso do CPC também se estende ao campo do político, não só pelo fato da direita ter permanecido ininterruptamente hegemônica, mas pelos próprios defeitos internos do movimento, que não entendia com suficiente sofisticação sua situação de classe média que queria ser povo e se incumbia da heróica tarefa de elevar o povo ao seu “esclarecimento”:

“Numa apresentação teatral no Nordeste, os atores cantavam com entusiasmo uma música que dizia que “derramaremos o nosso sangue para defender a terra”. Ao final do espetáculo um camponês aproxima-se emocionado e diz que é aquilo mesmo que tem de ser feito. Os atores, sentem, felizes, que conseguiram passar sua mensagem. O camponês explica que está havendo uma invasão e os convida a tomarem seus fuzis e a se juntarem à luta. Eles, aterrorizados, explicam que os fuzis são de mentira. O camponês diz que tudo bem, que os fuzis são de mentira mas que os homens são de verdade, que ele tem os fuzis para lhes dar. Constrangidos, os atores explicam que são artistas e que não vão lutar. O camponês entende e completa: “Ah, então quando vocês falavam em derramar o nosso sangue era do nosso sangue que estavam falando”” (DALCASTAGNÈ, 1996, p. 39-40).

Pode-se estender esta constatação de ausência de um valor estético significativo também ao romance-reportagem, lembrado hoje mais pela crítica contundente de Flora Süssekind do que por qualquer um dos seus sucessos editoriais da época e de seus autores que apareciam como figuras culturais relevantes na época.
Como foi dito anteriormente, o problema do político e do estético não se restringe a esses casos de pobreza do estético. Mesmo os autores de romances reconhecidamente excelentes do período, como Ivan Angelo, Ignácio de Loyola Brandão e Antonio Callado (em cujos romances A Festa, Zero e Reflexos do Baile o trabalho estético de forma alguma aparece apagado diante do engajamento), mostraram certa falta de fôlego nos anos seguintes, quando não havia mais o governo autoritário para servir de tema inescapável e assim emprestar importância imediata à sua arte. Trata-se de um problema presente mesmo quando há qualidade estética, ou talvez especialmente quando ela existe, uma vez que assim ela projeta melhor sua sombra sobre outras obras: se há uma função essencial para a literatura, a de enfrentar literariamente o autoritarismo, o que os escritores devem fazer depois que o assunto principal sai de cena e esta função não existe mais? Seria fácil lidar com a questão se os romances escritos na época se resumissem inteiramente a panfletos toscos e descartáveis: o que fazer quando este ímpeto político aparece esteticamente bem elaborado, mas ainda inteiramente centrado (ou até dependente) da situação política denunciada? Os livros, escritos em época desesperadora, certamente não têm sua leitura datada, pois qualquer boa leitura de um texto leva em consideração o contexto de sua produção, mas o ímpeto artístico por trás deles estava tão bem centrado e focado na questão-central do momento, o absurdo autoritário que regia o país, que a mudança de contexto não haveria de produzir outra coisa além da desorientação. Como o sistema literário e intelectual haveria de re-estabelecer seus parâmetros com o fim da ditadura se o contexto social não apresentava seus problemas profundos e urgentes de forma tão imediata?
            Não é a primeira vez em que se percebe este problema, embora creio que seja a primeira vez que ele seja o foco principal de um estudo acadêmico sobre o período. A ideia aparece em forma de premonição (inteiramente acertada) nas palavras de Carlos Santeiro, protagonista-escritor de Um Romance de Geração, peça-romance de 1980 de Sérgio Sant’Anna:

“talvez não tenha havido uma época tão fértil, pelo menos quantitativamente, quanto esses quinze anos pós 64 (...) Mas por que essa fertilidade, ponto de interrogação? Não seria porque os escritores (...) teriam encontrado na ditadura um excelente ponto de referência, ponto de interrogação e parágrafo? (...) Tínhamos algo contra o que lutar, sem muito risco, e os melhores motivos, ponto. (...) a relação entre a ditadura e a literatura talvez tenha sido como um jogo de gato e rato, ponto. Sem o gato o jogo não poderia continuar, para a tristeza do rato. (...) Nós talvez passemos a ser conhecidos como os “Órfãos da Ditadura” (...) quantas pessoas eu vi pelos bares falando de Herzog como quem fala de um artista famoso (...) entre o Wladimir Herzog que foi morto numa cela do Exército e aquele que aparecia em nossos livros havia uma diferença de grau e substância, ponto. Este último era apenas o personagem que nós, os escritores, precisávamos para manter acesa a “nossa chama”, a “nossa fogueira”, o JOGO, em maiúsculas”. (1981, p. 65)

Apresentada em tom de provocação meio histriônica por um personagem bêbado e que não leva muito a sério sua entrevistadora e a entrevista, a ideia mesmo assim permanece inquietante: teria a maior parte de nossa literatura se resumido em uma mera afronta direta e indireta ao regime opressivo? Uma tradição artística de mais de dois séculos, com toda uma variedade de assuntos possíveis a serem tratados, teria ela se resumido a uma só questão e, posteriormente sem este centro duramente estabelecido, teria ela ficado desorientada?
É possível ver constatação semelhante, ainda que menos explícita e cronologicamente bem anterior, na anotação de diário de hospício do poeta tropicalista Torquato Neto, recuperado por Flora Süssekind:

“A data é 13 de outubro de 1970 e lia-se nele o seguinte fragmento “eu: pronome pessoa e intransferível. Viver: verbo transitório e transitivo, transável, conforme for. a prisão é um refúgio! é perigoso acostumar-se a ela.” (...) em parte profetiza a verdadeira síndrome da prisão que tomaria conta dos escritores e da literatura brasileira de modo geral durante a década passada. E o que caracterizaria esta síndrome? Como é frequente nas selas das prisões, ora gritos de rebeldia, como os da arte de protesto, ora sussurros medrosos,  como nas alusões ou parábolas. Ora a tentativa quase sempre difícil de estabelecer contato com o maior número possível de prisioneiros (...) ora o autocentramento(...)” (2004, p. 71-2)

Süssekind também aproveita a síntese de Geraldo Carneiro, que em 1985 depõe que “em vez de dialogar com a realidade, nossa interlocutora predileta era a censura (...) se converteu em nossa musa inspiradora” (2004, p.31-32). Acostumados com a prisão e com a interlocutora que era a censura, que se dispunha a ouvir atentamente (ainda que na busca de trechos ou obras a proibir), a camada artística se surpreenderia futuramente com a desconcertante liberdade e ausência de público.
            Na medida em que, como já foi citado antes, e de novo podemos aproveitar a censura como metonímia do regime como um todo, a censura servia de explicação-máxima para qualquer que fosse a postura estética adotada por um autor, o que dizer de quando não havia mais a explicação-mor? Se o autor dialogava continuamente com o regime (ou com a censura, se preferirmos manter a metonímia), com quem conversar quando a interlocutora não existe mais? E se, com o fim da perseguição estatal, o autor se dá conta que a sociedade não lhe dá ouvidos como ele imaginava que daria se ao menos não houvesse a censura? Se a “ego-trip” poética (expressão de Süssekind) antes parecia uma luta da subjetividade contra a rigidez comportamental desejada e propagada pelo militarismo, qual seria a seu valor subversivo quando o sistema econômico já se impunha não mais pela força, quando o narcisismo[17] individualista passa a ser combustível do consumismo e força-motriz do sistema econômico anteriormente tido como opressor e hoje aparentemente inescapável? O que dizer da revolução sexual, seu questionamento profundo dos costumes, e a facilidade com que ela passou de posição contestatória dos valores conservadores dominantes a regra geral midiática e mercadoria de excelente rentabilidade?
Parte dessa desorientação pós-boom e pós-ditadura se deu por motivos editoriais e bastante conjunturais: como já se constatou há algumas páginas atrás, a literatura era um discurso menos visado pela ditadura e a censura que o jornalismo ou o ativismo explícito. Assim sendo, acabou sendo a forma de expressão privilegiada e possível da indignação diante do autoritarismo. Na expressão de João Antônio, a literatura assim sendo “ganhou importância”, sendo a ela possível dizer o que não se podia dizer em outros discursos. A cultura passava a ocupar espaços até então específicos do jornalismo e do debate ideológico aberto, agora cerceados:

“Carlos Nelson Coutinho (...) vincula a hiperpolitização da cultura depois do golpe de 1964 ao fechamento dos canais de representação política, de modo que “as pessoas que tinham forte interesse pela política terminaram levando esse interesse para a área da cultura. Isso teve um lado positivo. Claramente a cultura tem uma dimensão política. Mas às vezes, também teve um lado negativo, no sentido de que se politizaram excessivamente disputas que na verdade são mais culturais que partidariamente políticas. [...] A esquerda era forte na cultura e em mais nada.(...) o crítico perguntou [a Geraldo Sarno] por que ele fazia cinema. Geraldo teria respondido: faço cinema porque não posso fazer política.” (RIDENTI, 2000, 55)

            Já Carlos Nelson Coutinho declara em 1979:

“A partir do golpe de 64 eu começo a me interessar muito por literatura e a fazer crítica literária -e isso passa a ser uma atividade dominante na minha vida. (...) eu me pergunto se essa passagem não teria sido um pouco inconsciente, na medida em que eu não podia falar sobre realidade brasileira diretamente, quer dizer, a literatura me servia de... de viés” (HOLLANDA, 1980, 52)

Flávio Aguiar, em texto de 1978, constata que a impressão que se tem ao examinar a produção literária que lhe era recente é a de que houve um renascimento e que os eventos organizados sobre literatura surpreendiam pois “Percebeu-se que a literatura atraía um público mais amplo do que a expectativa usual, e houve margem para muita coisa, que dormia na gaveta, ir pelo menos dormir na gaveta alheia”(1997, p. 179). (Digno de nota o uso da então consagrada e hoje esquecida imagem da gaveta, que certamente guardaria “muita coisa”).É difícil saber quanto desta plateia numericamente surpreendente não optaria sem hesitações por substituir aquele programa por um de motivação completamente política. Sendo possível nos anos seguintes fazer passeatas nas ruas, qual a surpresa de ver eventos literários mais vazios?
Percebe-se aí um refluxo daquilo que Candido constatou nos anos 50, do “Verbo literário vai perdendo terreno, não apenas em relação à matéria que lhe cabia, mas ao prestígio que tinha como padrão de cultura”(2010, p.138), especialmente se tomarmos a literatura como parte da atividade artística, cujas diversas formas estavam mais disponíveis àquela época do que no século XIX. O verbo literário, nos anos de autoritarismo, estava em alta.
No entanto, antes de se comemorar a alegria desta função grande da arte no mundo intelectual brasileiro, é preciso constatar, seguindo Candido, também que:

“a longa soberania da literatura, tem, no Brasil, duas ordens de fatores. Uns, derivados da nossa civilização europeia [etc..], outros, propriamente locais,que prolongaram indefinidamente aquele prestígio e obstaram esta irradiação. Assinalemos, entre os fatores locais (que nos interessam mais de perto), a ausência de iniciativa política implicada no estatuto colonial, o atraso ainda hoje tão sensível da instrução, a fraca divisão do trabalho intelectual” (2010, p. 138-139).

O lugar grandioso da arte é fruto, portanto, de uma fraqueza social de nosso país, e seu engrandecimento sob os anos da ditadura deve ser entendido sob esta ótica. Se dentre os fatores listados por Candido incluirmos um Estado autoritário de opressão seletiva, difícil pensar em outro resultado para as letras brasileiras.
Com a abertura gradual, lenta e frustrante do regime político, foi sendo aos poucos possível a expressão direta da dissidência ou, naquele momento mais especificamente, da história da dissidência, não sendo mais necessário o aparato formal do construto literário, sem que fosse preciso desenvolver uma estilística, um enredo, personagens, metáforas, etc. Foi a geração do depoimento, e houve verdadeiro “boom” editorial de livros que narravam estas experiências que agora podiam circular diante de um contexto político menos desfavorável: “Os anos de 1979-1980 foram marcados pelo extremo interesse em torno de relatos de próprio punho daqueles (...) que participaram dos movimentos de luta armada ou da militância política mais efetiva” (HOLLANDA, 2000, p. 234). Já Ridenti, em leitura abertamente marxista, analisa o desenvolvimento editorial desta forma:

“floresceu um mercado de oposição À ditadura nas classes médias, que a indústria cultural soube aproveitar a partir do fim dos anos 70, com a abertura do regime civil-militar[ditadura]. A tendência passava a ser o esvaziamento de projetos culturais coletivos de questionamento da ordem, mas permaneciam e prosperavam protestos individuais de artistas, em suas obras à disposição no mercado” (2000, p. 350)

Heloísa Buarque de Holanda, em artigo de 1981, descreve bem a situação da produção cultural em momentos simultaneamente menos e mais propícios:

“A retomada do discurso político na imprensa, a reorganização das entidades sindicais e estudantis, os movimentos de massa, a novidade das associações de bairro mobilizam os debates e retiram da literatura e da produção cultural em geral o privilégio de ter sido, por um bom tempo, o espaço por excelência da discussão sobre a realidade e o momento brasileiro” (2000, p. 188, grifo meu)

A literatura tinha deixado de ser o espaço por excelência do debate político, espaço conquistado por seu aspecto menos restringido de circulação. O leitor que se interessa essencialmente por política agora não precisava mais recorrer à criação estética e à imaginação, poderia partir diretamente para os depoimentos de quem de fato viveu a perseguição política e ter nessas pessoas fonte direta do que de fato aconteceu em suas lutas e derrotas. Se o valor principal dos romancistas engajados era o de fazer um retrato fiel e direto da realidade dificultosa, com o fim ou o relaxamento da censura, suas obras certamente se esvaziariam daquele valor, em parte perdendo até razão primeira de existir.
A literatura perdera o privilégio que adquirira (não por conta própria) naqueles anos difíceis, no entanto creio que a dificuldade não se resume ao lado material/editorial do problema. É possível apresentar a questão econômica do país como um todo como uma influência nesta produtividade dos anos setenta e a improdutividade da década seguinte, uma vez que as editoras, responsáveis por fazer circular as obras literárias, são, afinal, empresas que buscam o lucro e que numa situação de contração econômica seriam mais arredias e prefeririam apostar em iniciativas com maior chance de retorno financeiro que literatura (isto é, praticamente qualquer outra iniciativa editorial que não seja a acadêmica de livros não-introdutórios).
Isto pode até ser em parte verdade no que diz respeito os autores iniciantes: Rubens Figueiredo, um dos mais renomados ficcionistas contemporâneos, em depoimento oral atestou que seu livro só chegou a ser olhado por editoras por conta da recomendação de Luis Fernando Veríssimo, sendo possível também citar o conhecido caso dos cinco anos de demora entre a escrita de Relato de um certo Oriente(1989), de Milton Hatoum até a publicação pela Companhia das Letras. No entanto, o problema não se restringe aos iniciantes: como já se falou na introdução, o problema da descontinuidade produtiva é visível até mesmo em autores anteriormente consagrados, de certo público garantido, e se percebe não só pelo número de títulos publicados (que de fato cresceu bastante nos anos 70, causa e consequência do boom) como pelo próprio conteúdo daquilo que vinha sendo publicado.
Para pensar nesta pujança literária que se desfaz, é útil pensar de início no caso de três dos principais romances publicados durante o dito boom literário, Reflexos do Baile, Zero e A Festa, e na produção de seus autores depois disso. Três romances de altíssimo valor estético, dando a ver de forma primorosa a maneira como a literatura brasileira foi capaz de expressar variações enormes dentro das constantes estéticas (temática, no caso do anti-autoritarismo, quanto formal, na fragmentação) em um contexto político desfavorável. É certamente possível (e até quase natural) agrupá-los, como fez Dalcastagnè em seu estudo, mas é interessante e importante constatar que cada um tem sua própria voz e textura: difícil igualar a brutalidade meio tosca de Zero (o auto-proclamado “romance pré-histórico”) com a limpidez apurada, ampla e clara do romance:contos de A Festa ou a obscuridade claustrofóbica de Reflexos do Baile, livro impossível de ser lido casualmente. Arriscando uma comparação rápida com os gêneros musicais, é como se o livro de Brandão fosse punk rock, o de Callado fosse erudito moderno e o de Ivan Angelo fosse um bebop de big band, todos compostos com o foco na urgente questão política de seu momento.
Cada livro tem seu ponto de vista, seu estilo, e ainda assim é visível que são frutos de um mesmo contexto cultural e social, os três são uma resposta direta e esteticamente eficaz à sociedade opressiva em que vivem. Alcançado estes três enormes sucessos, várias vezes reeditados sem que seja possível dizer que os livros tenham qualquer apelo superficial da literatura do best-seller, qual foi a obra de Antonio Callado, de Ignácio de Loyola Brandão ou de Ivan Angelo escrita posteriormente à ditadura que chegou perto de se igualar a estas três obras-primas?
Brandão chegou a tentar repetir a si mesmo com o romance Não Verás país nenhum, de 1981, uma espécie de re-escritura de Zero, mas o contexto já não propiciava da mesma maneira aquele tipo de negatividade contínua. Em vez de atirar para todos os lados e se restringir a exagerar certos traços da modernização desumana do país, o livro apela para a criação de uma distopia tupiniquim de um típico futuro-não-distante que certamente não possui a mesma contundência do apocalipse contínuo descrito em Zero(que o leitor supõe ser contemporâneo e, assim sendo, vivido por ele). A impressão que se tem em Zero é a de que se falava diretamente, ainda que sob exagero literário, do mundo em que se vivia, não o mundo para o qual estávamos direcionados a alcançar. O aspecto brutal e caricaturesco que pulsava no livro com certa autenticidade e pertinência no livro de 1975 aparece meio postiço e forçado seis anos depois: os personagens desorientados e despidos de qualquer propósito não-biológico re-aparecem (com outros nomes, é claro) meio mecânicos e artificiais, títeres discursivos. Os exageros soam forçados. Ao leitor entusiasta de Zero e ávido para novos romances do escritor, resta ler com constrangimento passagens desajeitadas como esta já destacada por Alcmeno Bastos:

“- (...) O Esquema decidia a portas fechadas. De repente vinha uma campanha de preparação. Algumas semanas de amortecimento e ficávamos anestesiados pra o choque. Por oito anos abastecemos o mundo de madeira. Convencidos de que não havia problemas, aceitamos que vendessem trechos da Amazônia. Pequenos trechos, diziam. Áreas escolhidas por cientistas, para que não se alterassem os ecossistemas. Todo o miolo da floresta estava dizimado, irremediavelmente. O resto durou pouco, em alguns anos, o deserto tomou conta.
- O Esquema era inteligente. Negava, negava e agia ocultamente. Quando se viu, estavam no chão 250 milhões de hectares de florestas. Como nunca mais há de haver outra. Tudo no chão.
-E continuamos endividados.
-Mas ganhamos a Nona Maravilha.
-Ganhamos também tempestades de areia, dignas de países desenvolvidos. Não temos mais que invejar os furacões norte-americanos. As tempestades dizimaram o Maranhão e o Piauí. O deserto avançou para o mar.
-Sergipe sofreu duas tempestades de lama. Aracaju foi soterrada. O mar, lá, tem ondas de trinta, quarenta metros.
- Furioso. Tão furiosos quanto o Esquema, quando os grupos de defesa do meio fizeram uma denúncia internacional. O esquema ficou desmascarado.
- E se importou? Estava todo mundo ganhando . O escândalo que foi o Grupo dos Oito assinando concessões para as madeireiras estrangeiras! Oito pessoas ganharam mais dinheiro que toda a população em dez anos de trabalho.
-Os jornais falaram.
- Logo se calaram. Obrigados ou subordinados?
-Os dois. (...)” (1982, p. 91)

Como o próprio crítico analisa, há no livro um fracasso do nível mais básico da técnica ficcional[18], que é o apagamento da personalidade dos personagens e a transformação do diálogo entre duas pessoas em uma exposição monológica em que uma personagem completa a exposição da outra como um cérebro conectado a duas pessoas, que é de fato o caso: é o cérebro do romancista, que abre mão da técnica narrativa para uma exposição explicativa na qual ao leitor só resta o lugar de aluno diante daquilo que é ensinado para ele por meio do romance.Como coloca Bastos, “Sousa é-nos apresentado como um homem burocratizado ao ponto de praticamente não ter opiniões próprias. Assim sendo, essas análises políticas projetam (...) reflexões que vão além da limitada individualidade do narrador-protagonista”(2000, p. 57). Neste momento específico, abdica-se da personalidade dos personagens, sem que com isto se configure um propósito estético (como é, por exemplo, em Panamérica, de José Agrippino de Paula), uma vez que não é a expressão de um vazio e sim a da opinião política, levemente vestida de imaginação literária, do romancista.
Antonio Callado, cuja descrição já recuperada aqui algumas páginas atrás o tem como ninguém menos que o romancista político por excelência do período que provavelmente foi o mais politizado literatura brasileira, também passou por uma espécie de decadência de reputação e produtividade. Ainda que tenha continuado a produzir romances com alguma regularidade, ainda era tido como “o romancista de esquerda do período ditatorial”, nenhum de seus livros posteriores recebendo algo perto do destaque de seus livros publicados sob a opressão. Havia uma urgência nos anos 60 e 70 que fez falta na década seguinte. O próprio romancista, em entrevista perto do fim de sua vida em pleno neoliberalismo dos anos 90, em meio a diversas amarguras (“Não tenho esperança de nada diferente do que a gente está tendo (...)” (1997, n.p.)) faz uma dura auto-avaliação de sua obra “ponto de vista da minha carreira de romancista, acho que um único romance meu tem força em si: "Reflexos do Baile” (1997, n.p.)[19].
Em breve entrevista bastante anterior, de 1979, feita por Heloísa Buarque de Hollanda, o renomado romancista faz uma defesa do literário sobre o documental/factual e busca diminuir o valor da influência do jornalismo na literatura, já numa tentativa tardia de independência literária. Ao final da entrevista, a crítica faz a instigante e excelente pergunta a respeito de quais rumos tomaria Padre Nando, protagonista de Quarup, diante da nova realidade brasileira da lenta reabertura política. O autor responde que acha que ele entraria para a igreja novamente, e ressalta o papel da igreja durante os últimos anos autoritários. Ao fim, o romancista declara que “já comecei a tomar vagas notas para escrever, sem prazo e sem forma ainda, um livro que se chamará A velhice do padre Nando”(2004, p. 129).
Tal livro não chegou a existir, e talvez possamos tomar esta inexistência de um livro posterior sobre padre Nando como metonímia de uma inexistência de continuidade para a literatura brasileira daquele momento como um todo. Se em Quarup havia uma narrativa clara a ser desenvolvida, com lados do bem e do mal delineados de forma definitiva, sendo o romance o enfrentamento do protagonista com sua própria inércia diante da tomada do direcionamento correto, como formar uma narrativa como esta quando não se sabe tão facilmente (ou não se sabe de forma nenhuma) qual o direcionamento correto? O personagem sobreviveria ao relato de pasmaceira e perplexidade diante da redemocratização que não trazia a solução para todos os problemas do país?
O caso de Ivan Angelo é talvez o mais marcante, autor do mais elogiado romance anti-ditatorial de toda a década (ou de toda a ditadura). Dois anos depois de A Festa, Ângelo veio a publicar um volume de contos, A Casa de Vidro, uma espécie de repetição menos contundente de algumas das técnicas empregadas em seu romance consagrado. Depois disso, com a abertura político, só viria a publicar novamente sete anos depois, com um livro de contos de boa qualidade, mas que certamente não possuía a mesma força de seu romance e cuja fração significativa dos contos é o reaproveitamento de seu livro de estreia de quase trinta anos antes. Sete anos após isto, publicaria uma novela insossa e inconsequente de título Amor?(1993), em que só lhe restava o discurso meio batido a respeito da dificuldade de relacionamentos amorosos, imensamente menos interessante do que o painel complexo tecido por seu aclamado romance dos anos 70.
Em A Face Horrível (1986), pode-se ler o mais longo conto do volume, de título homônimo ao livro, como uma espécie de alegoria da incapacidade do homem mais ou menos intelectualizado dos anos 60 e 70 de lidar com a nova e dificultosa realidade que não se encaixava nos parâmetros anteriormente desenvolvidos. Apenas cinco anos mais jovem que Ângelo na época da publicação do livro, o protagonista é um publicitário mulherengo e cretino, em meio às manipulações emocionais que submete a sua esposa, conversa com sua secretária, vinte anos mais jovem:

“a nossa geração, Telma, nós preparamos as coisas pra vocês.
Perderam o pique?
É, a gente acabou perdendo o bonde.
Parados na esquina.
Não, correndo atrás. Vê as fotos dos anos 50 e depois as nossas, do nosso tempo. Vê a mudança só no jeitão, quanta coisa caiu. Vê os temas que a gente levantou. Tudo isso que tá aí a gente levantou. Liberdade sexual, direitos civis, moda, modernização, reformas sociais, droga. Pô, tanta coisa.
E aí, foi o golpe que segurou?
Foi? Sei não. Tem muita coisa que governo não segura, vem de contrabando. Chega na música, na tevê, vai chegando.(...) A gente corria pra tentar tirar os milicos do banco da frente e não prestava atenção no que tava acontecendo no caminho”[20] (1986, p. 137-8)

Como se pode ver, até mesmo escritores experientes e com alguma presença/nome editorial já formados tiveram dificuldades em manter a mesma força literária que os consagrou na década anterior. A não ser que se pense na possibilidade do crescimento econômico afetando diretamente a capacidade criativa e literária dos escritores, alternativa talvez não inteiramente descartável mas que certamente não cabe a este estudo adotar, torna-se difícil aceitar esta explicação como exaustiva do problema e tomar a questão como resolvida.
A dificuldade de se manter esta produtividade literária pertinente também se situa em problemas e imprecisões no plano ideológico e estético por parte de muitos dos que eram contrários ao regime. Estes problemas que se tornaram patentes com o lento fim daquela situação autoritária que, dada sua urgência e óbvia ilegitimidade, ofuscava esses defeitos em favor dos problemas obviamente maiores da tortura, do exílio e do silêncio político imposto.
            O hoje esquecido romancista Julio Cesar Monteiro Martins, em entrevista a Heloisa Buarque de Holanda, mistura erros sintomáticos, julgamentos questionáveis e acertos impressionantes em seu diagnóstico da cultura brasileira em 1979:

“Jamais a nossa literatura apresentou tamanha diversidade temática ou estilística, e portanto jamais atingiu o grau de representatividade que ora se nos apresenta. A tendência para os anos 80 é de acirramento destas posturas e de desenvolvimento prático destas tendências que agora se revelam, ainda de modo embrionário, principalmente nas publicações dos autores que emergiram durante a fase de arregimentação dos meados da década. Os panoramas confusos irão se clarificando, o patético, o cético e o lúdico irão sendo substituídos pela manifestação de crença dos mais variados valores, e os anos 80 prometem ser férteis em definições, posturas revisadas e questionamentos internos dentro da própria intelectualidade, tudo isto a partir de obras de fição e ensaísticas que tendem a proliferar-se, com crescente interesse e acompanhamento do público leitor. Nos anos 70 bastava saber-se o que não se queria. Nos anos 80, há que se revelar o que se pretende, sob o risco de, se assim não o fizer, ser o intelectual hesitante atropelado por uma avalanche de definições categóricas e passar a residir num certo limbo cultural, que também já aponta em estado embrionário.” (2004, p. 158, grifo meu)

            O romancista acertadamente diz que a tendência é (ou seria) o desenvolvimento dessas posturas, mas este desenvolvimento não veio, e o limbo cultural, que àquela época jáaparecia como ameaça, se solidificou. Não houve esta fertilidade de definições, posturas e questionamentos internos: não houve nada disso que parecia natural vir aexistir, uma vez que, novamente frisando, não havia grande solidez do meio intelectual sem a certeza da ilegitimidade do regime atuante.
Mais adentro do meio literário, Heloísa Buarque de Hollanda, em texto de 1981, tenta aplacar a questão da dificuldade dos anos vindouros com seu elogio a coletâneas de poemas hoje praticamente esquecidas: “coleção Frenesi”, “Nuvem cigana”, “Vida de Artista”, “Folha de Rosto” e “Gandaia”, entre outras, todas, pela descrição da forma manual de produção, inspiradas em ou derradeiros exemplos da geração mimeógrafo (dos poetas listados, apenas Francisco Alvim e Ana Cristina César contam com edições contemporaneamente correntes):

“A forte ligação com o dado político, portanto seu caráter marcadamente circunstancial (...) sugeriam negros prognósticos quanto a sua permanência na literatura. Caberia aqui a sábia categoria de “vítimas da abertura”, formulada em relação a uma gorda fatia da produção de prosa pré-78. A dúvida que pairava sobre os novos poetas era mais ou menos da mesma ordem. Sobreviveriam sem o álibi da repressão? À essa pergunta, esse lançamento parece responder;” (2000, p. 204)

            Dada a obscuridade atual da maioria dessas obras (para além de qualquer julgamento a respeito de sua qualidade, uma vez que não se tem acesso fácil a elas) e de tantas outras lançadas nos anos oitenta após o fim da ditadura (o fim do álibi, para aproveitar o termo de Hollanda), creio que a pergunta continua sem resposta, ou pior, com resposta negativa. Trata-se, como se pode ver, de um impasse já percebido em sua época ao fim da ditadura, mas que passou sem análise mais aprofundada e que, por tudo que pude ler na pesquisa para este estudo, foi inteiramente esquecido nos trabalhos e nas discussões de hoje a respeito da época, que em muitos casos preferiam repetir seus números de torturas, presos e mortos e deixar de lado questões dificultosas como sua própria ineficácia.
Este impasse se deu em parte por certa ausência de refinamento em parte significativa do pensamento político da época, que estendia a imediata certeza da absoluta ilegitimidade do regime imposto e violento a outras áreas de suas análises. Se a ditadura era o mal, ela haveria de encarnar todo o mal, tudo que era ruim haveria de ser central em sua atuação e ideologia. Pode-se exemplificar este procedimento a partir do pensamento dos que pegaram em armas para o enfrentamento direto da ditadura, provavelmente achando que se a ditaduras de Salazar e Franco eram ruralistas e economicamente estagnadas de Salazar, outras ditaduras latinas também seriam: “os guerrilheiros achavam que não havia alternativa de modernização e desenvolvimento econômico sob a ditadura militar, que por isso tinha de ser derrubada”(RIDENTI, 2000, 165). Diante das estatísticas grandiosas apresentadas pelo regime, defendia-se que estas eram completamente mentirosas, e se o regime, nos anos finais da década de 70, de fato manipulou os dados, é inegável hoje a realidade do crescimento econômico da época. Em se tratando de uma ditadura, no entanto, ou se está inteiramente a favor, compactuando com o autoritarismo, ou se nega quaisquer aspectos que poderiam ser interpretados positivamente.
Isto não se restringe, claro, ao plano político strictu sensu, uma vez que o político se situava em todos os planos da atividade intelectual. Flávio Aguiar, que publicava em um jornal independente na época da ditadura, escreve em sua apresentação de 1997 a uma coletânea desses textos:

“(...) [foi] a palavra escrita no calor da luta (...) entre malho e bigorna, forjada ao mesmo tempo de um tanto de ousadia e de outro tanto de fuga, em todo caso não omissa. Um tanto que observei sobre os limites dessas críticas talvez se possa estender a um grande número de livros de que elas tratam; havia um afã de dar resposta aos tempos difíceis em que vivíamos que tornou inevitável certo afrouxamento no rigor crítico- tanto na crítica quanto na criação. (...) Hoje penso que a ditadura não atingiu de frente a criatividade literária. Ela foi muito mais prejudicial para o teatro, o cinema, o ensaio e a universidade, Mas ela certamente prejudicou o modo de se pensar a literatura como parte criativa do coletivo, seja porque a vida intelectual sofreu restrições, seja porque no afã da resposta muitas vezes se envereda, mesmo que insensivelmente, pelo clichê e pelo lugar comum” (1997, p. 19)

Tratando-se mais especificamente do campo literário, pode-se pegar como exemplo desta simplificação as críticas feitas por Callado em suas palestras no estrangeiro, à obra e empenho social de Machado de Assis, ilustre desconhecido da plateia descrito como gênio pelo escritor empenhado. Trata-se de uma visão bastante esclarecedora daquilo que se pode chamar de uma ideologia literária dos anos 70, aplicada não a um reles contemporâneo facilmente criticável que expressa sua suposta alienação ao tratar de subjetividades, e sim ao escritor principal do Cânone brasileiro:

“O meu trecho favorito de Machado aparece em uma de suas obras primas, Memorial de Aires, os cadernos de anotações de um diplomata aposentado chamado Aires. Certa manhã, ele sai de sua casa no Rio e caminha pelas ruas porque uma reforma há muito aguardada ocorreu no Brasil: a escravidão acaba de ser abolida, a data é 13 de maio de 1888. Por toda parte ocorrem manifestações de alegria, discursos nas esquinas, procissões. Aires decide ir ao Bairro onde moram seus melhores amigos, uma família que sente falta de seu filho querido, que ameaça não voltar de Portugal, tendo parado de escrever para os pais. Aires chega, encontra também a casa dominada por um sentimento de alegria e começa a felicitar a todos. “Já sabia?”, eles lhe perguntam. “Bem...” ele se interrompe, ligeiramente surpreso. “A Carta finalmente chegou”, dizem eles, “a carta do nosso garoto. Ele está voltando para casa”. Aquele era o motivo da alegria na casa. E machado observa, de modo amável, que uma alegria particular ultrapassa em muito qualquer alegria cívica.
Bem, esta seria uma página notável em qualquer romance, mas o X da questão era o fato de Machado ser um homem de cor. Ele era sério demais, honesto demais, era um ser humano grande demais, sem levar em conta que era um escritor magnífico, para imaginarmos que sua indiferença pela questão do negro fosse uma maneira de fazer as pessoas esquecerem que ele não era branco. Machado lidava com a essência das coisas, não com tons de cor. Mas, a exemplo do caso de Ruy Barbosa [Callado aqui fala da suposta queima de documentos referentes a escravidão chefiada pelo jurista], quase que se sente aqui um mecanismo psicológico em ação, uma certa aversão à realidade” (2006, p. 40-41)

Apesar da admiração clara que Callado sente por Machado, ainda mais perceptível dada a influência de Memorial de Aires em Reflexos do Baile apontada por Arrigucci em seu estudo “O Baile das trevas e das águas”, fica explícita aqui certa decepção do autor engajado diante do mestre que não usa sua obra como instrumento de mudança social. Mostra-se também certa incapacidade ou indisposição a uma leitura que enxergasse a capacidade de expressividade indireta da obra de Machado, um uso mais sutil da verossimilhança que tece suas críticas ao mostrar o comportamento das pessoas e sua relação ambígua com o social e o político, deixando a cargo da capacidade interpretativa do leitor a percepção dos preconceitos e pressupostos ideológicos.
Não ocorre a Callado naquele momento a possibilidade de ler a voz narrativa do livro de forma crítica, pensar que a superposição da alegria pessoal em relação à cívica seria uma constatação de certa incapacidade egoísta de muitos homens livres do Brasil daquele momento (só daquele momento?) de sentir alegria por algo que não lhe beneficiasse diretamente, ou até mesmo de certa ineficácia de medidas políticas supostamente drásticas e dramáticas diante de uma realidade que simplesmente transformaria escravos em indigentes, transitando de uma injustiça explícita e injustificável a outra injustiça implícita e mais facilmente ignorada. A impressão que se tem é de que, na concepção de Callado, a crítica social na literatura haveria de ser direta e clara para ser suficiente ou até mesmo percebida, e que a descrição da sociedade em sua ambiguidade é insatisfatória diante da importância do social e da nação.
Difícil não ver a conexão aqui de Callado com o passado de críticas típicas à obra de Machado, brevemente recuperada na primeira parte deste estudo. Sua descrição de “aversão à realidade”, por exemplo, parece ecoar a análise de Mário de Andrade de que Machado “traiu bastante a sua e a nossa realidade”(ANDRADE, 1993, p. 66), assim como a evocação da cor de sua pele como algo que deveria ter impelido o grande escritor ao ativismo: “Foi o anti-mulato” (1993, p. 66), nas palavras de Andrade. Igualmente, parece possível transcrever as constatações de Irene de Torres Oliveira a respeito das opiniões negativas de Lima Barreto sobre Machado riscando o nome do autor de Policarpo e colocando o de Callado: “devido à sutileza do ponto de vista internalizado [entende-se] por que Lima Barreto não viu ou não entendeu a obra de seu antecessor como crítica”(2008, p. 169).
A sutileza da crítica machadiana por muito tempo foi “aceita na forma de uma grande auto-complacência”(2008, p. 168) por seus leitores da elite que enxergavam na narrativas de profunda canalhice espelhos da alma humana transcendental, por vontade inconsciente ou incapacidade interpretativa de enxergar a si mesmos e seus próprios defeitos, possivelmente não tão inevitáveis e universais assim: “a falta de simpatia que Lima viu em Machado como defeito era parte de um instrumento crítico radical, o sinal de insubordinação que Lima tanto cobrou do antecessor, sem reconhecê-lo.” (2008, p. 175).
Outro texto dos anos 70 que podemos suscitar a respeito desta velha questão do engajamento machadiano é o que Flávio Aguiar escreveu em 1976, o “Alencar x Machado: uma falsa polêmica”. Nele, o crítico aborda brevemente o assunto da escolha do patrono da literatura brasileira, isto é, aborda uma questão daquele momento, não se tratando (e nem se propondo a ser) de um ensaio de grande profundidade. Ainda que o crítico sabiamente não enverede pela crítica ao romancista pelo seu não-ativismo, ainda assim sua defesa de Machado soa mais como a expressão de algo que o crítico queria fosse verdade do que a constatação de um fato: “Foi moda – hoje já um tanto superada – acusar Machado de “escritor omisso” em relação aos problemas de seu tempo, que fugia aos temas e problemas “nacionais”.” (1993, p. 128). A constatação de Callado tendo sido feita apenas dois anos antes, é difícil estar com o crítico em sua constatação de que se trata de uma postura superada, ainda mais quando o crítico cita um historiador marxista, e não um crítico literário, para a defesa de Machado, e queo trecho de Nelson Werneck Sodré destacado por Aguiar tece com certa dificuldade um argumento meio trabalhoso a favor do envolvimento de Machado nos problemas de seu tempo, sem citar exemplos dentro de sua obra. É interessante contrapor o tom deste texto com o de Irene Oliveira escrito sobre Barreto, onde realmente se percebe a certeza de hoje de que não se discute mais a existência ou não do engajamento na literatura de Machado.
Para citar mais brevemente outro exemplo, Glauber Rocha, no mesmo bizarro depoimento de 1974 a Zuenir Ventura em que declara que o general Golbery (criador do SNI e figura intelectual importanteentre os militares) um gênio e o iguala a Darcy Ribeiro, afirma secamente: “detesto a finura sutil dos machadianos”(GASPARI, 2000, p. 112). Tempos de ditadura, na visão de muitos daquela época, não eram tempos de sutileza. O mestre Machado, sutil, não teria seu espaço.
Mantém-se nestas novas iniciativas interpretativas de artistas de destaque de nosso sistema, certa continuidade de incompreensão e até mesmo de certa rejeição da obra de Machado de Assis, ou pelo menos da postura do homem por trás das obras. Vindo da literatura progressista da virada do século, passando pelas reformas estéticas e temáticas do modernismo e desembocando no anti-autoritarismo de nossa literatura sob a ditadura militar, percebe-se um empenho contínuo, ainda que propenso a mudanças, que parece incapaz de absorver o escritor que continuamente mantém sua posição de primazia em nosso sistema literário.
Retornando a ideia de uma constante de procedimento simplificador nas interpretações culturais do período, é possível aproveitar ainda um pouco mais da obra de Callado, retomando a já aqui citada interpretação da categoria do Homem Cordial, de Sérgio Buarque de Hollanda. Impelido pelas circunstâncias do sistema intelectual e da conjuntura política a dividir todo pensamento em duas categorias estanques e perfeitamente separadas, a do enfrentamento ao autoritarismo e a da ideologia conformista da ditadura, não é de surpreender que a simplificação tenha feito o pensamento complexo de Sergio Buarque de Hollanda parecer conformismo, diante da acepção de “bondoso” e “agradável” que a palavra carrega em seu uso corrente. O sociólogo chega a esclarecer este ponto em nota aedição já disponível na época da publicação do conto de Antonio Callado:

“a palavra “cordial” há de ser tomada, neste caso, em seu sentido exato e estritamente etimológico (...) essa cordialidade, estranha, por um lado, a todo formalismo e convencionalismo social, não abrange, por outro, apenas e obrigatoriamente, sentimentos positivos e de concórdia. A inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade, nisto que uma e outra nascem do coração, procedem, assim, da esfera do íntimo, do familiar, do privado (1995, p. 204-5)

            Uma vez que a informalidade generalizada do “jeito de ser” do brasileiro e seu personalismo não haveriam de se encaixar facilmente em colunas de negativo e positivo no país ditatorial, e a ideia de certa docilidade contínua naquele contexto autoritário certamente se encaixa, parece automático a preferência pelo entendimento equivocado da categoria sociológica por parte do romancista. Não obstante uma eventual recorrência contemporânea deste entendimento equivocado da palavra cordial nesse contexto específico, parece excessivamente fácil ao leitor de hoje apontar como grosseiro este erro cometido por Callado (lembrando que Ênio Silveira, figura fundamental da história editorial brasileira, se dispôs a publicá-lo), mas estando fora do sistema do autoritarismo político e clima de urgência da camada cultural seria um erro igualar a capacidade de entendimento a posteriori com a que se dá no momento, ainda mais levando em consideração que o uso corrente da palavra cordial aparecia até mesmo em discursos dos dirigentes militares:

“Geisel soubera da morte de Herzog no domingo. Na segunda-feira manteve-se num silêncio atemorizante. Foi ao Rio e abriu a reunião dos agentes de viagens com um discurso redigido dias antes. Falou numa “civilização da cordialidade” e mais no seguinte “Quando a violência e o ódio marcam sua presença na história dos nossos dias, o Brasil contrapõe a esse quadro, o espetáculo de sua compreensão humanística da vida”(GASPARI, 2004, p. 185)

Diante de todos esses aspectos e impasses, o período de readaptação da literatura e da camada intelectual como um todo diante da nova realidade não-ditatorial não teria como não ter sido problemática. O marasmo, portanto, foi consequência da pujança, que se alimentava diretamente da questão conjuntural que propiciava uma atuação enérgica e de critérios facilmente identificáveis por parte da intelectualidade, literária ou não.
Um dos indícios mais facilmente apontáveis da falência intelectual inerente a este tipo de pensamento que busca se definir inteiramente por aquilo que se é contra, como o fez grande parte da literatura brasileira ao se identificar quase que exclusivamente pelo rótulo de “anti-ditadura” e às vezes se satisfazendo só com isto, é a forma como esta estrutura de pensamento serviu de apoio ao próprio regime militar desde o golpe até o ruidoso estrebuchar de morte da linha dura ao final do regime. Ao falar daquilo que se é contra, posiciona-se claramente, enumerando defeitos e absurdos; já na hora de apresentar qualquer postura positiva, prefere-se proposições vagas baseadas em slogans. Quanto à “Revolução Democrática” de 1964, Ernesto Geisel depõe em 1981:

“O que houve em 1964 não foi uma revolução. As revoluções fazem-se por uma ideia, em favor de uma doutrina. Nós simplesmente fizemos um movimento para derrubar João Goulart. Foi um movimento contra, e não por alguma coisa. Era contra a subversão, contra a corrupção [e] nem a subversão e nem a corrupção acabam. Era algo destinado a corrigir, não a construir algo novo, e isso não é revolução” (GASPARI, 2002, p. 138)

É possível verificar raciocínio semelhante espalhado pelo pensamento vigente durante toda a ditadura militar: o que está sendo feito pode ser “supostamente” ruim ou errado, mas é melhor que a alternativa. Claro, para que se firmasse tal pensamento ficava implícito que só havia uma alternativa possível àquela injustiça, sendo assim necessário pintar aquela alternativa com as piores cores possíveis. Neste sentido, as iniciativas armadas da guerrilha foram discursivamente muito úteis para o regime militar, que sempre apontava o risco de “terroristas” tomarem o país diante de qualquer esboço de crítica ao recrudescimento do regime. Em poucos momentos isto é mais claro que durante a crise do espetacular sequestro do embaixador estadunidense Charles Elbrick, em que o regime passava por um momento difícil diante da doença e morte súbitas de Costa e Silva e a indisposição da camada radical em deixar assumir o poder o vice-presidente Pedro Aleixo, que, além de ser um civil, tinha votado contra a promulgação do AI-5. Em seu lugar, impôs-se (um literal golpe dentro do golpe) uma junta militar um tanto problemática, do ponto de vista político, tanto internamente quanto na sua relação com a sociedade que duramente engolia aquela iniciativa como algo mais que mais uma canetada arbitrária do regime. Gaspari analisa a repercussão do sequestro desta forma:

“Para a Junta, porém, o episódio foi um bálsamo. Pusera em plano secundário a discussão de sua origem mambembe. Olhada de fora, ela parecia tão forte que só uma ação audaciosa e atrevida como o sequestro a abalaria. Olhada por dentro, ela estava tão fraca que o sequestro lhe deu forças e até mesmo o mandato para presidir a troca. Mais: ofereceu-lhe o papel maternal de mediadora entre a ameaça terrorista e a intransigência teatral dos pára-quedistas[da linha-dura]. Transformou-se na única fonte legítima de poder num país perplexo, sem presidente nem congresso”(2002, p. 97-8)

Ronaldo Costa Couto partilha desta interpretação de Gaspari de que a guerrilha, em seu radicalismo, acabava por ser útil à ditadura, uma vez que os lugares institucionais em que poderiam soar as vozes discordantes estavam fechados, a única alternativa que aparecia ao regime se mostrava pela violência aberta: “a guerrilha, mesmo limitada e pontual, gerou o pretexto para o endurecimento do regime nos governos Costa e Silva e Médici”(1998,29). [21].
O livro final do levantamento histórico de Gaspari, A ditadura encurralada, é praticamente uma descrição longa da relutância da linha-dura em abrir mão do poder e buscando a qualquer custo justificar sua permanência tentando sempre aumentar a possibilidade ou a certeza da “dominação comunista” que estaria logo na esquina. Qualquer autodefinição militar a respeito do próprio regime autoritário decerto teria como centro inquebrantável a “luta contra a subversão”, isto é, uma definição negativa, algo que se identifica principalmente como sendo algo que se posiciona contra outra coisa, fica o vínculo indissociável com aquilo que se odeia, relação de verdadeira e inescapável dependência. Qualquer outro elemento definidor da ditadura pode ser objeto de discussão[22], menos este: o anticomunismo.
Findas as perseguições contra os que se armaram e (facilmente) desmontados os esquemas de enfrentamento direto, a linha-dura precisou criar e reforçar fantasmas o tempo todo para conseguir sustentar seu posicionamento. Como bem coloca Paulo Arantes:

“(...) toda declaração de guerra, tanto literal como metafórica, qualquer que seja seu alvo oficial, tende a perpetuar o inimigo – droga, crime, pandemias, chuva radiativa, derretimento financeiro, desemprego, hiperinflação – suscitando a necessidade de plenos poderes renovados (...)” (2010, p. 227)

Assim sendo, o inimigo tem enorme importância, e, quanto mais enorme o inimigo, mais importante é o ímpeto de quem o enfrenta. Não deixa de ser uma reação automática e compreensível a simplificação de todos que se posicionassem contra o regime, qualquer que fosse sua atitude, decerto seria um “nazista vermelho”(GASPARI, 2004, p. 210), para recuperar a adorável expressão do general Ednardo D’Avila Mello, comandante do II Exército, utilizada para descrever quem ousava afirmar que Herzog não tivera a capacidade de se enforcar sem vão livre. Para os militares, tudo se resumia no comunismo e na necessidade de enfrentá-lo a qualquer custo, e qualquer mínima dissidência seria passível de ser descrita como “vermelha”: “Não havia saída. Se a esquerda se movia, era acusada de mover-se. Se recuava, era acusada de fingir-se de morta. A tigrada precisava da desordem. Como ela não existia, tinha de providenciá-la”(2004, p. 273). Na análise de Gaspari, “[em 1976] Só havia um tipo de terrorismo no Brasil, o dos militares indisciplinados. A subversão da ordem migrara da plataforma da esquerda para a agenda da direita”(2004, p. 282-3), e, assim sendo, “o radicalismo da ditadura prendera-se na obsessão do contrário”(2004, p. 282).
Esta negatividade fulcral mostrou-se o ponto fraco da ditadura dada a ausência daquilo que taxou de “terrorismo”, e mesmo que certamente seja bastante desagradável estabelecer este tipo de comparação entre apoiadores da tortura e romancistas , difícil não enxergar desenvolvimento estruturalmente semelhante ocorrendo com a literatura brasileira finda aquele assunto central de seus trabalhos intelectuais. Aquilo que se posiciona exclusivamente como sendo “contra algo” acaba por necessitar deste algo odiado para se sustentar.
Ainda que se trate de um contexto político muitíssimo diferente, creio que é produtivo aproveitar a colocação do poeta Czeslaw Milosz a respeito da problemática de se adotar a negatividade como centro discutida em seu brilhante livro Uma mente cativa(1953). Nele, o poeta faz uma análise fascinante e equilibrada[23] da vida do intelectual na Polônia recém-devastada pelos nazistas e dominada pelos russos soviéticos. Em certo capítulo, ele aproveita de histórias islâmicas a figura do “Ketman”, que é, em essência, o homem fingido, aquele que joga de acordo com as regras discursivas impostas e guarda para si mesmo suas opiniões verdadeiras, sem qualquer sofrimento de subjetividade oprimida. O poeta resume a situação do intelectual de forma contundente “se ele faz um discurso passional contra o Ocidente, ele demonstra que ele tem pelo menos dez por cento do ódio que ele tão ruidosamente proclama. Se ele condena o Oeste levemente, então na realidade ele deve sentir alguma ligação com o inimigo” (1990, p. 55). Era necessário, portanto, jogar de acordo com as regras do jogo.
Milosz descreve parte dos motivos que faria um intelectual a princípio não-desonesto se render as regras do jogo, a falar aquilo que, pessoalmente, não acredita. Não digo aqui que os escritores brasileiros foram uma forma de Ketman, uma vez que não vejo falsidade em seus protestos: apenas aproveito a figura para mostrar uma semelhança estrutural (negativa) espantosa com esta figura surgida em outro tipo de autoritarismo:

“Em resumo, Ketman quer dizer a realização própria contra alguma coisa. Aquele que pratica Ketman sofre por causa dos obstáculos que ele encontra; mas se esses obstáculos de repente são removidos, ele se encontraria em um vazio que pode talvez se mostrar muito mais doloroso. Revolta interna é às vezes essencial para a saúde espiritual, e pode criar uma forma particular de felicidade. O que pode ser dito abertamente é frequentemente menos interessante que a mágica emocional de defender seu próprio santuário privado. Para a maioria das pessoas a necessidade de viver em tensão e vigia constantes é uma tortura, mas muitos intelectuais aceitam essa necessidade com prazer masoquista. (...) Um poeta pondera sobre o que ele escreveria se ele não fosse preso por suas responsabilidades políticas, mas ele conseguiria realizar suas visões se ele tivesse liberdade para fazê-lo? Ketman traz conforto, cultivando sonhos daquilo que poderia ser, e até o muro circundante permite o consolo daquilo que poderia ter sido.
Quem sabe se não está na ausência de um núcleo interno do homem esse misterioso sucesso da Nova Fé [o comunismo dogmático e institucionalizado da União Soviética] e seu charme para a mentira intelectual? Por subjugar o homem à pressão, a Nova Fé cria este núcleo, ou em qualquer caso o sentimento de que ele existe. Medo da liberdade não é nada mais que o medo do vazio. “Não há nada no homem” disse um amigo meu, um dialético. “Ele nunca vai extrair nada de si mesmo, porque não há nada ali. Você não pode deixar o povo e escrever no mato. Lembre-se que o homem é uma função de forças sociais. Aquele que quiser ficar sozinho vai perecer”. Isto é provavelmente verdade, mas eu duvido que isto seja qualquer coisa mais que a lei de nossos tempos. Acreditando que não havia nada nele, Dante não teria escrito sua Divina Comédia ou Montaigne seus Ensaios, ou Chardin teria pintado uma natureza morta sequer. Hoje o homem acredita que não há nada nele, então ele aceita qualquer coisa, ainda que ele saiba que é má, a fim de que ele se encontre junto a outros, a fim de que não fique sozinho. (...)
Suponha que um homem pense em tentar viver sem Ketman, a desafiar o destino, a dizer “Se eu perder, eu não terei pena de mim mesmo”. Suponha que pode-seviver sem pressão externa, suponha que um pode criar sua própria tensão interna – então não é verdade que não existe nada no homem. Tomar este risco é um ato de fé”(1990,  p. 80-1)





Capítulo 7 - Dois romances, dois caminhos: A Festa e Confissões de Ralfo

7.1 – Os romances

Na tentativa de melhor ilustrar este dilema da intelectualidade cultural brasileira subjugada pelo autoritarismo estatal e pelos seus próprios impulsos internos e históricos, elaborarei uma interpretação de dois romances importantes publicados no auge do “boom” literário brasileiro:Confissões de Ralfo, de Sérgio Sant’Anna, e A Festa, de Ivan Angelo, lançados em 1975 e 1976, respectivamente.
Sérgio Sant’Anna teve seu convívio intelectual em Belo Horizonte e Rio de Janeiro, com ambas cidades figurando em graus variáveis em sua obra, enquanto Ivan Angelo é oriundo de Belo Horizonte, que é a ambientação reiteradamente nomeada (a ponto de tratar em nomes de ruas, numerando endereços) de A Festa. Sérgio Sant’Anna é bacharel em Direito, tendo sido advogado trabalhista, e chegou a dar aulas universitárias de comunicação; Ivan Angelo é jornalista.
Os dois livros são o primeiro romance de ambos autores, que naquela data estavam entre seus trinta a quarenta anos (mais novos, por exemplo, que Carlos Heitor Cony ou Antonio Callado). Sérgio Sant’Anna havia publicado anteriormente dois livros de contos no intervalo de seis anos, com o segundo recebendo mais destaque (assim como se encaixando melhor no estilo de escrita que posteriormente desenvolveria), enquanto Ivan Angelo havia publicado anteriormente apenas meio livro de contos (dividindo um volume com contos de Silviano Santiago) quinze anos antes. Os livros de Sérgio Sant’Anna eram naquela época publicados pela Civilização Brasileira, provavelmente a casa editorial mais importante e prestigiada da época, enquanto a primeira edição de A Festa veio à luz na obscura editora Vertente.
Toda esta atividade anterior haveria de apontar para certa vantagem para o livro de Sant’Anna: a editora mais prestigiada, o intervalo menor entre publicações, um contato maior com uma cidade de maior presença na cultura nacional. No entanto, não foi este o caso. Para nos mantermos no campo do estritamente material como fizemos até agora, a superioridade de “A Festa” fica estampada na capa dos livros, e na própria disponibilidade dos títulos: o romance de Ivan Angelo se encontra atualmente na décima segunda edição, e é facilmente encontrável em livrarias, enquanto o de Sérgio Sant’Anna foi reeditado apenas uma vez, vinte anos depois do seu lançamento, e está atualmente esgotado, encontrável apenas em sebos. Ainda que o escritor carioca seja um dos “autores da casa” da Companhia das Letras, a mais prestigiada editora brasileira da atualidade, seu primeiro romance é um de seus poucos títulos que estão indisponíveis: Ivan Angelo, por sua vez, tem a maioria dos seus livros fora de circulação direta, mas seu romance mais famoso é continuamente republicado.
Esta posição superior de A Festa se expressa também pela maior frequência com que consta nos estudos acadêmicos a respeito do período. O livro de Renato Franco, talvez o mais tradicionalista de toda a fortuna crítica sobre o período (cheio de recuperações meio artificiais de expressões utilizadas por Antonio Candido, soando mais como homenagens do que aproveitamentos, assim como pelo seu apoio na teoria literária marxista bastante enraizada em nossos departamentos de literatura) chega a estampar o nome do romance de Ivan Angelo em seu subtítulo, não obstando o fato de vários outros livros serem analisados pelo estudo. A Festa é assim descrito:

“aquele romance que, quer por seus êxitos, pelos procedimentos técnicos utilizados ou mesmo por suas lacunas, contradições ou fracassos, pode ser considerado o romance paradigmático da década. O mesmo reconhecimento do valor dessa obra é compartilhado tanto por Fábio Lucas quanto por Janete Gaspar Machado”(FRANCO, 1997, p. 25).

Renato Franco chega a mencionar o romance de estreia de Sant’Anna algumas vezes durante o livro, fazendo enfim uma leitura de pouco mais de duas páginas. Seu intuito na leitura é o de exemplificar literariamente certas situações da subjetividade moderna que busca constatar no decorrer de seu estudo, e é em tom de crítica que estabelece algumas de suas considerações, sem encostar naquilo que enxergo como cerne do romance, certa indisponibilidade a qualquer certeza que seja. Franco estabelece uma conexão excessivamente forte com outras obras da época com este romance que, por todos seus defeitos, é bastante único em nossa literatura.
Outro crítico que podemos citar que faz leituras desses dois romances (ainda que com menos afinco, já que os textos foram reunidos em livro apenas postumamente) é João Luiz Lafetá, que em jornal resenhou Confissões de Ralfo, fazendo uma crítica bastante ambígua, e elogiou desabridamente o romance de Ângelo em uma apresentação em 1983 de título “O romance atual”. Nessa palestra, o crítico analisa com algum detalhe obras de Rui Mourão e Oswaldo França Júnior, para no fim concluir com uma leitura de três páginas (em um texto de vinte e quatro) de A Festa. O crítico introduz o romance de Ângelo falando que “tendo saído neste período fecundo [da literatura brasileira], A festa conseguiu destacar-se e conquistar boa parcela do gosto geral”(2004, p. 262), deixando claro depois que “não se trata, bem entendido, de um romance médio como são alguns do Érico Veríssimo da primeira fase ou certos bestsellers que fazem sucesso em todo o mundo”(2004, p. 262). O crítico depois elabora sua leitura a respeito da estrutura “espiralada” do livro, que, a seu ver, demonstra “construção original e hábil” (2004, p. 263) e “grande achado original”(2004, p. 263).
Ao resenhar em jornal o romance de Sant’Anna, Lafetá por sua vez faz elogios bem mais comedidos, mencionando que “o entrecho saturado de acontecimentos e desenvolvido com leveza, em estilo e ritmos envolventes, prende o interesse e a curiosidade do leitor” (2004, p. 445), mas que sua premissa da crise das formas artísticas passa a impressão de “coisa já vista, de processos envelhecidos pelo menos em cinquenta anos”(2004, p. 446). Embora não seja uma colocação por assim dizer equivocada, creio que ela não leva em consideração suficientemente o contexto da produção e publicação da obra, e o próprio crítico reconhece o que talvez poderia ser chamado de inovação brasileira do livro “numa literatura em que Jorge Amado e outros menos dotados continuam dando o tom e a medida”(2004, p. 446). No entanto, o resto da resenha é cheio de constatações como “o livro vai parecer bastante tocado de epigonismo (...) imitação mais ou menos talentosa, porém sempre imitação” (2004, p. 447) e que “o romance não é “retrato fiel da vida” mas não parece ser igualmente mera brincadeira fantasiosa”(2004, p. 447). A insatisfação do crítico com o livro fica bastante clara, mas seu argumento de que o assunto do livro é coisa repisada se enfraquece diante do fato que a única referência citada por ele daquilo que pode ser chamado antepassado literário de Ralfo é a de Oswald de Andrade, que é um autor de consagração mais recente, uma vez que seus livros só foram reeditados trinta anos depois de seu primeiro lançamento por iniciativa de Haroldo de Campos.
De qualquer forma, fica delineada claramente entre esses dois romances a diferença na estima desses dois críticos, sendo possível estender essa maior consagração de A Festa pelo simples fato do romance de Ângelo constar com muito mais frequência em estudos sobre a literatura do período ditatorial do que as aventuras de Ralfo.
De semelhanças entre os dois romances, é obrigatório mencionar primeiro aquilo que foi a constante estética durante praticamente toda a produção literária do período ditatorial: o uso da fragmentação. Não se trata, obviamente, de uma invenção formal por parte da produção literária da época (muitas dessas técnicas remontam aos vanguardismos do início do século), mas foi neste período que ela se consagrou fortemente como forma de narrar preferida dos autores brasileiros. Renato Franco descreve com precisão, ao falar da natureza mais fragmentada de Quarup em comparação a Pessach: A travessia:

“Aparentemente caótico e fragmentário, ele talvez resulte da dificuldade, partilhada afinal por todos os produtores culturais do período, de se constituir uma visão de mundo coerente (...) tal dificuldade atestaria o início de uma verdadeira crise que abalaria, consideravelmente, o vigor das grandes visões de mundo que parecem mesmo não se adequar mais, de modo confortável, à complexidade e à dinâmica vigorosa da atual realidade social. Contudo, o uso da fragmentação indicaria, também, que a literatura foi forçada a forjar (ou buscar na tradição literária, nacional ou não) novos artifícios para poder expressar adequadamente a natureza, bem mais contraditória e plural, dessa mesma realidade (...) a figura narrativa que emerge do cenário literário posterior ao golpe de 64 é, em geral, incapaz de atar os nexos entre os vários acontecimentos de sua vida, a qual se despedaça e se faz, para ela mesma, em cacos: obscuros pedaços de realidade, peças de um quebra-cabeças que já não consegue recompor”(1996, p. 54-55)

Tão forte era esta constante formal que “Fragmentação” foi subtítulo do livro de Janete Gaspar Machado, um dos primeiros estudos publicados a respeito daquela produção sob ditadura. Até mesmo Luis Fernando Veríssimo, autor de monumental apelo e acessibilidade popular, fez uso desta técnica que, em graus variáveis, dificulta o acesso do leitor ao texto ao abordar o assunto em seu conto “O Condomínio”, publicado em 1984. Como destaca Jaime Guinzburg em sua interpretação do conto, “certos fragmentos são destacados da margem e redigidos em itálico (...) sugerem esforços de compreensão do passado e de interpretação do presente à luz do passado por parte de João”(2010, p. 140).
A fragmentação de Confissões de Ralfo e de A Festa está bastante clara, até mesmo numa leitura que se restrinja ao índice dos romances: são ambos livros relativamente curtos (que não passam das duzentas páginas) e que apresentam um número relativamente elevado de partes (curiosamente, o mesmo número em ambos livros : nove) mais ou menos desconectadas entre si, relacionando-se de forma mais ou menos indireta no decorrer do texto. A Festa chega a incluir um subtítulo, “Romance: contos”, que tenta dar a ver mais claramente esta condição, enquanto Confissões de Ralfo apresenta um “Roteiro” que antecede até mesmo o índice do livro e que destaca simultaneamente certa independência e unidade entre as partes. Confissões chega a nomear os capítulos de “Livros”, enfatizando sua inter-separação, enquanto A Festa não dá nome à “natureza” das divisões, colocando apenas o número da página seguido do nome daquilo que seria o capítulo: “Página 13: Documentário (sertão e cidade, 1970) / Página 29: Bodas de Pérola(amor dos anos 30)”, em uma divisão propositadamente burocratizada e literal do romance.
Retirando esta natureza fragmentada que era uma forma generalizada na literatura da época, os dois romances têm bem pouco em comum, tanto no estilo da escrita quanto nas ideias veiculadas explícita e implicitamente pelos romances. Esta separação dos dois livros é visível até mesmo no mais conciso resumo dos livros: o romance de Ivan Angelo é um verdadeiro panorama social (de embasamento até mesmo histórico) da realidade brasileira da época de sua escrita e publicação, enquanto o romance de Sant’Anna é como um exercício literário de delírio imaginativo, sarcástico e, acima de tudo, metalinguístico, um elaborado jogo de formas com o intuito último de desmascará-las.
A Festa narra uma brevíssima revolta popular (popular no sentido de que se restringiu à camada mais pobre da sociedade), o envolvimento de um jornalista no registro evento e a equivocadamente motivada e violenta invasão de uma festa de aniversário de um artista plástico por conta da crença do autoritarismo vigente de que os presentes se relacionavam com a subversão e com aquela revolta. Esta história é narrada de forma despedaçada e dispersa, com cada capítulo sendo o relato de casos aparentemente desconexos, mas que a última parte do livro junta em uma espécie de retrospectiva explanatória.
Confissões de Ralfo narra as impossíveis e absurdas peripécias de Ralfo que, no decorrer dos capítulos do livro, é amante de gêmeas obesas, desconhecido misterioso em um transatlântico de luxo, guerrilheiro latino-americano, delirante, turista, burocrata, mendigo, torturado, interno de hospício, sadomasoquista, dramaturgo e romancista. Tudo isto, motivado pelo ímpeto de se escrever um livro que narre uma vida extraordinária: para criar um livro extraordinário, seria preciso viver de forma extraordinária.
[epígrafes] A mera leitura das epígrafes dos livros dá a ver muito bem estas naturezas distintas das obras, aparecendo desde o ponto de partida: Ângelo põe ninguém menos que Maquiavel[24], uma fala do personagem “Herodes” de W.H. Auden em que o regente questiona a efetividade de seus decretos, versos de Drummond que discutem o falar sobre o tempo presente, e uma estrofe de Chico Buarque, cancionista anti-ditadura por excelência, canonizado ainda em juventude. Abraça-se assim a questão política em sua teoria e prática (dos primórdios teóricos de Maquiavel à frustração da ineficiência por parte de um governante) e a arte em dois possíveis registros, o modernismo consagrado e “inquestionavelmente literário” (ainda que de dicção popular) de Drummond, que ressalta no abstrato a importância de se falar de seu contexto, ao lirismo mais corriqueiro e acessível de Chico Buarque, que de forma mais concreta fala de seu contexto, contexto que é o mesmo de Ivan Angelo. Há, assim, nas epígrafes, uma espécie de linha descendente[25] que parte do abstrato ao concreto, tanto no campo da política quanto no campo do literário politizado, e a última palavra da estrofe de rima ABBA de Chico Buarque torna sólida a conexão entre epígrafe e livro, chegando até mesmo a possivelmente revelar a fonte de inspiração para o título do romance: “Olha a voz que me resta / olha a veia que salta / olha a gota que falta / pro desfecho da festa”.
Confissões de Ralfo, por sua vez, trás três epígrafes, ou duas, ou até nenhuma, dependendo da definição que se tem de epígrafe. São três as frases, mas se pensarmos em epígrafes como citações de origem exterior à obra (como, por exemplo, os contos de Murilo Rubião apresentam consistentemente epígrafes bíblicas), então o livro de Sant’Anna apresenta apenas duas, pois a terceira frase é do próprio protagonista do romance que está prestes a ser lido. Se uma das funções das epígrafes é mostrar onde se pretende situar a obra dentro da vasta gama de possibilidades dentro do discurso literário (um romancista que pretende expressar existencialismo pela sua obra há de colocar existencialistas consagrados como epígrafe de suas obras, se optar por usar epígrafes), o ato de citar a si mesmo, ou um personagem de sua própria criação, certamente desfaz esta forma de fixar conexões e estabelecer uma continuidade com algo anteriormente escrito. Ivan Angelo, neste caso, procura se afiliar tanto à Alta Literatura com os versos modernistas de Drummond e sua citação a Auden quanto a uma produção artística de maior inserção popular com a canção de Buarque, não deixando de lado uma busca de profundidade histórica por meio de Maquiavel.
A própria natureza das citações mostra uma diferença significativa: as de Sant’Anna são eminentemente metalinguísticas e não-literárias, com Warhol expressando sua vontade de fazer “o pior filme do mundo” e a de Eliot que constatava em um ensaio (ou, pelo menos, em uma colocação em tom de ensaio) um desinteresse pela forma romanesca tradicional. Duas máximas, nenhuma em forma propriamente (ou por excelência) literária: no livro de Ângelo, Drummond fala sobre o falar do presente, mas o faz por versos, isto é, em pleno exercício literário. A frase de Ralfo, ao fim, é como uma “soma negativa” das duas frases anteriores: mistura-se o ímpeto artístico de Warhol com o diagnóstico alto-modernista de Eliot, para negá-los meio que sarcasticamente, com seu intuito de fazer um “super-romance (...) repleto de acontecimentos inverossímeis e pueris(...)”, o prefixo “super” ao mesmo tempo negando e confirmando as duas colocações anteriores. Não se encontra a progressão linear e límpida de A Festa, e sim um confuso jogo de negação que não serve para refutar propriamente as colocações anteriores.
É possível ainda pensar na possibilidade de “zero” epígrafes se tomarmos uma definição estrita do que constitui uma epígrafe:aquilo que antecede a obra, que apresenta seus pontos centrais ou de essência antes mesmo do início da narrativa. No caso do livro de Sant’Anna, as epígrafes aparecem antes do primeiro capítulo, intitulado “Livro I – A Partida”, mas depois de curtos trechos de nome “Prólogo” e “Roteiro”. Poucos parágrafos acima já se falou do roteiro, que ressalta certa independência entre os capítulos (“livros”) que talvez seriam melhor lidos separadamente, como “unidades distintas”.
 Já o prólogo explicita a “vontade do artista” (narrador ou autor, já que o romance apresenta certa permeabilidade entre os dois) na composição do livro, e, mesmo que o leitor não a tome pelo valor de face, ainda assim é um trecho que certamente deve ser levado em consideração na interpretação do livro. Para complicar mais a questão das epígrafes, este prólogo traz mais uma frase de outro autor (e o livro passaria assim à possibilidade de ter quatro epígrafes, ou uma, já que só esta se situa nesta primeiríssima parte do livro), Jack Kerouac, em que com desdém se reduz a infantil qualquer história de invenção ou imaginação (seriam para “adultos cretinos”) que assim escrevendo buscariam uma fuga da realidade e de si mesmos. Já explicitando sua verve indefectível de ambiguidade, o narrador admite verdadeira ou falsa, a frase o perturbou e que serviu de fundamento para a composição de sua obra, a obrigatoriedade de se adotar o modo autobiográfico. Agora, passaria a viver sua vida de forma a que produza uma história que mereça ser escrita.
Ainda que seja possível desconsiderar a importância do breve “roteiro” que enumera as partes do livro e é quase como uma descrição neutra de seu conteúdo, é impossível pular este prólogo, que, no lugar do primeiro capítulo, é a verdadeira abertura do romance. Na edição original do romance, pela civilização Brasileira, o prólogo chega até mesmo a anteceder a folha de rosto e as informações bibliográficas, estampando-se na primeiríssima folha do livro (esta organização não foi mantida na re-edição, a editora possivelmente tendo encarado o livro como apenas mais um título para seu catálogo, colocando o prólogo no lugar tradicional, depois das páginas burocráticas de informações editoriais).Assim sendo, as epígrafes posteriores, organizadas na diagramação do livro como epígrafes tradicionais (em sua página separada) de Warhol, Eliot, e de si próprio, aparecem depois do início do livro, sendo assim talvez possível a subtração do prefixo “epi-” e pensa-las como juntas do resto do que vem escrito em suas páginas.
Outro elemento a ser destacado das epígrafes é as suas origens: enquanto A Festa traz a tradição europeia e a tradição brasileira (ainda que esteja em fase de consagração histórica, como Chico Buarque) em suas recuperações de outras obras, Confissões de Ralfo apresenta seu chão literário prévio como inteiramente americanizado, ainda que em escalas diferentes de “alta intelectualidade” (é possível colocá-los em uma escala de mais literário/erudito para o menos, partindo de Eliot, indo para Kerouac e terminando em Warhol). É interessante frisar de que esta opção estética de Sant’Anna se fez em um contexto cultural bastante hostil a influências estadunidenses, em que se generalizavam o valor das práticas políticas do governo americano para qualquer manifestação de sua cultura. Se pensarmos no já mencionado protesto contra o uso de guitarras elétricas em canções, que seria excessiva influência estadunidense na nossa pobre e pura cultura brasileira, podemos dizer assim que Confissões de Ralfoé um romance composto ou tocado com uma guitarra elétrica. Trazendo ainda a pop art por meio de Warhol, fica visível uma postura de aproveitamento estético diante de uma percepção de realidade tomada pela indústria cultural, quando o consenso intelectual da época era o de enfrentamento direto e rejeição total. Assim sendo, logo nesta primeiríssima parte do livro (ainda que em Confissões não seja a primeira) a primeira página o romance de Angelo se mostra bem mais tradicional que o de Sant’Anna, seja qual for a conotação de elogio ou condenação que se coloque no termo.
Encontram-se diferenças gritantes também na maneira como as duas narrativas iniciam com seus respectivos primeiros capítulos: a de Ângelo se desenvolve por uma técnica bastante moderna de colagem de citações (especialmente moderna considerando o quanto experimentações narrativas não são muito frequentes em nossa história literária), em que ao mesmo tempo vai narrando aos poucos os eventos da breve revolta popular na praça da Estação e a prisão e custódia de Marcionílio de Mattos, tido pela polícia como líder da revolta, por meio de recortes fictícios de reportagens e de depoimentos policiais. Ao mesmo tempo em que aos poucos compõe o painel deste evento, o romance estabelece uma conexão mais profunda com a realidade brasileira mais geral e histórica com citações de reportagens reais (como Médici visitando a seca do Nordeste) e relatos históricos e culturais clássicos (como Os Sertões ou Cangaceiros e Fanáticos de Rui Facó).
Confissões de Ralfo começa, por sua vez, de forma bastante tradicional: ao encarar sua missão de viver uma vida que seja digna de se escrever a respeito, inicia-se a jornada com a tradicional “partida” (nome do capítulo/livro I e da primeira subseção deste primeiro capítulo). Curiosamente, dentre os primeiros parágrafos deste primeiro capítulo consta uma espécie de não-narrativa, em que o protagonista narra coisas que não lhe aconteceram:

“Se esta fosse uma cidade marítima, me dirigiria imediatamente para o porto. Andando pelo cais, me abordariam com propostas de trabalho e aventuras. Tripulante de um navio de contrabandistas. Ou escrivão de bordo de um navio de exploradores, descobridores. Mas nada mais resta por descobrir sobre a Terra. Todos os caminhos já cruzados por milhões de navegantes.
Mas esta não é uma cidade marítima (...)” (1975,p. 13)

O livro já explicita em seus primeiros parágrafos certa disposição para conjecturas irrealizadas, em que o leitor de romances que se interessa simplesmente por aquilo que “acontece” nas histórias provavelmente taxaria o escritor está “enchendo linguiça”. O próprio protagonista as qualifica de “divagações espontâneas e sem importância”. No entanto, com estas conjecturas (às vezes sutilmente conectadas entre si) estabelece-se um elemento que aos poucos vai se tornando mais e mais claro, com o progredir do romance: o livro inteiro acaba por aparentar pouco mais que um construto de conjecturas: os eventos que “acontecem” no livro são tão inverossímeis (na mera improbabilidade de sucessão de um para o outro, ou até mesmo em si próprios) que o teatro mental que o leitor monta em sua mente durante a leitura da narrativa (onde se encenam os eventos e a ação do enredo) não é a de um homem na guerrilha, um homem torturado, um homem no hospício e assim adiante, e sim de um homem (o autor, ou o narrador) sentado diante de sua escrivaninha escrevendo e inventando tudo isto para divertir a si mesmo e ao leitor, ao mesmo tempo em que expõe seu pensamento estético. Aquilo que de fato supostamente acontece no livro toma ares de irrealizado, desfazendo a ilusão mimética, criando um romance que não é exatamente um romance.
O deboche, assim, exerce um papel central no aproveitamento e desmonte de todos os clichês sarcasticamente narrados no romance. Ao se incumbir de viver uma vida digna de ser narrada, a narrativa começa com a tradicional partida do lugar onde se habita, típico início de jornada grandiosa. No entanto, este início de jornada, em que o narrador se propõe na primeira frase a “abandonar a cidade e qualquer vínculo com a existência anterior. Mais do que isso: apagar todos os traços deste passado. Compenetrar-me de que sou Ralfo, concebido do nada (...)”(1975, p.13) é imediatamente interrompido de forma cômica, fazendo com que o protagonista vire amante sustentado de duas gêmeas gordas. Mais ou menos prisioneiro do conforto e da comodidade de não ter de fazer nada para seu sustento, o próprio narrador admite imediatamente seu fracasso em embarcar em sua jornada.
Temos, portanto, em Confissões de Ralfo, o reaproveitamento de um clichê (a jornada e a partida) que imediatamente em seguida é desmontado de forma cômica e satírica. Trata-se de um procedimento repetido diversas vezes pelo romance, praticamente em todos os capítulos, na medida em que o narrador vai adotando e desfazendo narrativas-clichê no decorrer do livro.
Trata-se, portanto, de um procedimento mais ou menos inverso do que é realizado pelo capítulo inicial de A Festa, em que temos uma técnica moderníssima a serviço de uma constatação básica e, na história da intelligentsia brasileira, reiterada nas mais diversas formas a respeito da realidade social. Temos em Confissões uma técnica ou uma forma-narrativa tradicional (ou um clichê, a jornada e sua partida) a serviço da expressão de uma ideia inusitada e até mesmo contrária ao tradicionalismo aparentemente adotado. 
            Retomando o ponto inicialmente exposto da fragmentação presente nos dois romances, nesses capítulos de abertura das duas obras já fica delineada uma mesma característica formal (que, como já foi dito antes, à época estava alçada a categoria de moeda corrente) sendo aplicada de maneiras diferentes e com efeitos e intuitos diferentes. Arriscando um usonovo de uma terminologia da física já aproveitada por Bakhtin para falar de tipos de discursos, é possível tentar descrever a fragmentação de A Festa como atuando de maneira centrípeta, tentando encontrar e até mesmo reunir sentidos em uma paisagem difícil e desorganizada, e a fragmentação de Ralfo agindo de forma centrífuga, buscando desorganizar os pensamentos a princípio sedimentados.  Angelo compõe um painel em que os personagens são vítima da fragmentação, enquanto o texto de Sant’Anna é um agente ativo da fragmentação.
O capítulo múltiplo de abertura do romance de Ângelo é, no fundo, uno, e Ralfo, em seu protagonismo contínuo com direito a apresentação de propósitos bem definida, é na verdade uma abertura para os sucessivos desmontes dos capítulos seguintes. Desta maneira, o progresso que se faz nos livros ocorrepor operações opostas: o livro de Ângelo vai somando pela junção de diferentes fragmentos, como um quebra-cabeça que vai sendo montado, enquanto o de Sant’Anna subtrai (ou divide) a partir das diferentes identidades adotadas pelo protagonista seguindo desígnios que não são os do progresso de um enredo romanesco tradicional.
O próprio uso de personagens nas duas obras também demonstra esta diferença de forma e propósito.São várias as figuras vivamente compostas por Ângelo em seus diversos dramas e sofrimentos empaticamente narrados, enquanto o livro de Sant’Anna são todos apenas joguetes discursivos/narrativos(plenamente resumidos pela estereotipia) para a elaboração de mais um desmonte. Isto certamente teve seu peso no que diz respeito o sucesso editorial e crítico de um livro em relação ao outro: um leitor interessado em acompanhar uma história e enxergar desenvolvimentos psicológicos certamente tem seu desejo mais satisfeito pela narrativa de Angelo que a de Sant’Anna, e os estereótipos que povoam as peripécias de Ralfo, ainda que claramente de simplicidade proposital, acabam tornando a leitura do livro um pouco cansativa no decorrer da suas nove partes. Por conta também da impressão de acúmuloque se tem na leitura do livro de Angelo, do painel que aos poucos se monta, trata-se de uma leitura mais “tradicionalmente satisfatória” do que a do livro de Sant’Anna, que por sua vez é possível imaginar um leitor desinteressado nos questionamentos formais de Ralfo perguntando “e daí?” ao fechar o livro.
Essas diferenças nas características formais dos dois romances ressoarão de maneira marcada em como eles se posicionam dentro da constante de expressar em relação à situação política de seu momento, que é o interesse principal deste estudo. Esses diferentes posicionamentos e o futuro desenvolvimento literário dos dois autores revela bastante a respeito dos mecanismos normalmente despercebidos da realidade cultural e intelectual dos anos sob autoritarismo.


 7.2 – A política nos romances

Falar do lugar da crítica à ditadura militar em A Festa de Ivan Angelo é algo meio equivalente a falar do lugar da ironia na obra de Machado de Assis: é um elemento tão presente e fundamental que descrevê-lo como mera “parte da obra” parece não expressar adequadamente sua importância e sua centralidade, e sua opção como objeto de análise parece ser passível de atrair críticas de que se trata de uma escolha óbvia. Quando se escreve que o estudo opta por falar do elemento político no romance de Ângelo, a impressão que se passa é a de uma espécie de detalhismo acadêmico pois, se alguém opta por falar de A Festa, presume-se imediatamente que vai se falar do lugar da política no romance, seja pela influência do sistema que continuamente reafirma o (verdadeiramente central, mas sempre reafirmado) lugar da política na prática literária da época, seja pelo próprio conteúdo do romance que parece impelir que seja lido especificamente por este ângulo.
Como se presume pela menção à influência politizadora do sistema e de se tratar de uma influência não muito desajustada para tratar a literatura da época, esta operação interpretativa de automaticamente se falar do político não se restringe a este romance em questão. Assim sendo, causa algum espanto a análise de Alcmeno Bastos da obra de Antonio Callado quando o crítico abre a discussão falando que o elemento político é apenas uma das possíveis formas de se ler a obra de Callado, espanto que seguido de a mais breve reflexão se mostra revelador: elementos relevantes como a religiosidade, a sexualidade e o desencanto certamente passam por secundários nas leituras de Quarup ou Bar Don Juan e até mesmo Reflexos do Baile. Os romances têm suas leituras resumidas a um só aspecto, que sempre parece se sobressair.
Em A Festa, a relação entre o elemento político e o não político não ocorre da maneira que se espera da maioria dos romances, em que um enredo político fosse entremeado de pequenas caracterizações de subtemas, como a conversão de Padre Nando ao ativismo político aparece sendo narrada junto com suas descobertas sexuais e a exposição de opiniões a respeito da história do Brasil. A natureza extremamente fragmentada do romance de Ângelo (ainda que sua narrativa seja muito fácil de acompanhar) opera frequentemente uma espécie de separação entre o elemento político/nacional o elemento individualizado, como que sendo possível ao leitor estritamente historicista sublinhar as partes de seu interesse. São várias histórias diferentes, a princípio separadas, mas que ao fim se unem para formar o painel romanesco. Desta forma, o subtítulo ou definição de Romance: contos não soa como uma vacuidade pretensiosa ou invencionice pseudo-experimental (diferente da cor azul das páginas do último trecho do livro, tanto que as edições mais recentes não trazem mais esta experimentação e, pelo que consta, esta remoção foi aprovada pelo autor).
Este ponto de junção das histórias é fundamental para o livro, equivalendo em importância interna dentro da narrativa ao pacto demoníaco de Riobaldo, ou o suicídio de Madalena em São Bernardo. Como o argumento principal de minha interpretação é a centralidade deste ponto de junção, por mais cansativo que possa ser, se faz necessário elaborar um breve resumo das histórias ressaltando seu elemento político para ver como que cada parte se relaciona com o painel montado, e como o romance acaba por expressar seu caráter político de forma central e o caráter do drama pessoal dos personagens de forma secundária ou hierarquicamente inferior à importância da denúncia.
Para além do já analisado primeiro capítulo intitulado Documentário, constituído de citações soltas que vão compondo o acontecimento da revolta dos migrantes nordestinos na praça da estação ao mesmo tempo em que aos poucos constrói o contexto social e histórico do país, o livro narra depois disso sete outras histórias, encerrando o livro com um último capítulo com o nome de “Depois da Festa” e o subtítulo de “índice dos destinos”. Em todas essas histórias, o fator político (autoritário) varia de praticamente inexistente a fundamental causador dos conflitos e angústias narradas nestas histórias.
O segundo capítulo, “Bodas de Pérola (amor dos anos 30)”, narra o desgaste de um relacionamento, do idealismo perfeito da juventude ao cansaço da rotina da meia-idade, e a obsessão por parte do homem de um pacto que os dois teriam feito na juventude de se suicidarem antes de deixar aquela perfeição romântica se desfazer[26]. O capítulo se divide em dois subcapítulos, no primeiro o homem é o narrador no estilo em fluxo de consciência, e no segundo a narração é em 3ª pessoa, mas enfocada na mulher, que desconfia continuamente de que seu marido pretende fazê-los cumprir o pacto da juventude. Não se enxerga em momento algum da história qualquer referência direta aos militares ou ao autoritarismo, o espaço narrado é de natureza eminentemente pessoal e subjetiva. A interpretação de Renato Franco que faz conexão direta do relacionamento dos dois “derivado da própria situação histórica do país, que conheceria então, ele próprio, sua “idade da inocência” (1998, p. 175) me parece pouco razoável e mecânica diante do fato de que foi na década de 30 que o Brasil começou a passar pela ditadura de Getúlio Vargas, ainda mais se levarmos em consideração o desfecho da história, em que se apaga o conflito com a desistência do homem em envenenar a esposa, narrado na última parte do romance.
O terceiro capítulo do livro se chama “Andrea (garota dos anos 50)”, e tem na folha com o título do capítulo, antes do parágrafo inicial, uma breve descrição dizendo “biografia encontrada pelo autor entre os papéis de uma personagem do livro, que não sabe ainda se identificará mais adiante” (1976, p, 49). Este capítulo conta a história de uma mulher que se muda do interior para Belo Horizonte e, ao seguir a carreira de jornalista, se depara continuamente com o conservadorismo machista da sociedade urbana mineira, relatando suas dificuldades em equilibrar o desenvolvimento de sua carreira e seus relacionamentos amorosos diante das expectativas que os outros lhe impõem. O tom da narrativa é a de uma terceira pessoa distanciada, contado por um narrador que, não obstante é ausente das ações narradas da história, não deixa de usar uma ou outra expressão na primeira pessoa, denunciando-se.  Tudo é relatado de uma voz que se enxerga perfeita, constantemente analítica e de tom às vezes irritantemente condescendente com a protagonista:

“Começa aqui a fase de Andrea em Minas (...) ela trazia o quê?: dois namorados quase esquecidos, egocentrismo, beleza, uma fotografia 3x4, alguns beijos, uma carta mal escrita, uma família em dificuldades. Era pouca coisa para opor a um grupo acostumado, e deixar-se fascinar foi seu primeiro erro (...)a acusação de burrice era a que a deixava em maior insegurança. Então comparecia a concertos, vernissagens, estreias teatrais, informava-se nos jornais, lia os livros na moda (ah, que perturbação o grande orgasmo de Lady Chatterley) decorou versos do poeta da moda, frases inteiras do cronista da moda. Os resultados tornaram esse ponto pelo menos polêmico: Andrea é muito inteligente, não acho, pois eu acho.”. (1976, p.52-54)

            O capítulo acompanha pelos anos (a ponto de numerá-los, falando em 1957, 1962, etc.), o desenvolvimento pessoal de Andrea, suas frustrações sexuais e profissionais, em dez curtos subcapítulos, também numerados. Ao fim da história, seu noivo, homossexual, destrói sua reputação em uma festa e ela acaba por se mudar da cidade. O aspecto abertamente político só aparece em um breve trecho em que a repórter flerta com um grupo de jovens intelectuais, o relacionamento sempre expressado pela insegurança pessoal da mulher. Um ano antes do golpe, some o garoto com quem se relacionava mais diretamente, e a vida de Andrea volta ao seu rumo de convívio entre as picuinhas das colunas sociais.
            O capítulo seguinte, de nome “Corrupção (triângulo nos anos 40)”, a narração alterna entre três focos bem separados e delineados, o pai, a mãe e o filho, e os anos aparecem mais uma vez numerados, progredindo de um em um na regularidade de um calendário. Mantém-se o tom analítico e frio: logo no primeiro trecho, já aparece a sentença que analisa o personagem, pouco após sua primeira apresentação: “um homem inseguro, afirmando-se na paternidade” (1976, p. 65). A história vai narrando o progresso social do pai e seu envolvimento com a política (começando da entrada do Brasil na 2ª guerra mundial), sempre pela classe conservadora, a frustração da mulher com o desinteresse do marido e a distância emocional de seu filho, e o desenvolvimento mental do menino (em um dos trechos mais formalmente ousados e impressionantes do livro), sempre mais apegado ao pai que à mãe.
            O quinto capítulo, “Refúgio (insegurança, 1970)”, narra o egocentrismo machista de um advogado, ex-escritor, que se prepara e aguarda o horário para a festa. Entre descrições de retiradas de muco do nariz, coceiras de genitália e auto-contemplação diante do espelho, ficam os pensamentos do personagem, todos transcritos com o intuito de expressar sua mesquinhez. É dos trechos menos interessantes do livro, pois o personagem se mostra inteiramente desprezível e, assim sendo, bastante desinteressante, e a conexão com a situação política do país é feita de forma imediata: o homem lê o editorial na primeira página do jornal e vibra “É isso mesmo: ferro nesses comunistas” (1976,78), e logo depois algumas fugidias menções à situação política: “porra, seis anos já. Parece que foi ontem” (1976, p. 79).
            O sexto capítulo, “Luta de Classes (vidinha, 1970)” tem em seu título aquilo que em nosso meio intelectual certamente é lido como uma contradição gritante, quase oxímoro, e é dos momentos de síntese do romance, sendo possível operar uma ampliação de sua capacidade descritiva ampliação para o romance inteiro. Se por um lado nomeia-se a categoria-base do marxismo, principal contra-ideologia daquela época e vertente crítica de grande difusão no meio intelectual que busca uma interpretação da totalidade do sistema capitalista com o objetivo de alterá-lo, justapõe-se a ela o diminutivo de vida, frequentemente utilizado para expressar uma existência banal, desprovida de emoções, sentido ou relevância. Temos, assim, grandeza e pequeneza colocadas lado a lado e, se levarmos em consideração a ordem de leitura e na natureza explicativa que a parte entre parênteses possui nos outros títulos, o movimento realizado pelo título (e pelo capítulo, curtíssimo, de duas páginas) é a de uma diminuição ou movimento descendente. A categoria explicativa de grande parte do anti-autoritarismo é resumida, ironicamente, a um confronto acidental entre dois homens bêbados, um de classe média e um do proletariado. O título que talvez faria o leitor esperar o mais politizado e talvez até mesmo expositivo (lembrando da frequentemente exercitada queda pelo didatismo de parte de nossa intelligentsia) momento do livro dá vazão a descrições secas, alternadas, da vida banal (da vidinha) de cada um dos personagens, até o conflito entre os dois, resumido com um palavrão e um soco. A banalidade se sobrepõe ao exame das diferenças sociais, e é como se, nesse momento, o livro esboçasse sobrepor o individual e específico ao geral e coletivo. Nesse sentido, não surpreende a leitura negativa que Renato Franco, em sua leitura marxista do livro, faz do capítulo, dizendo que “este conto parece algo desequilibrado, como se lhe faltasse um apoio mais sólido”(1998, p. 193-194), mas é fato que se trata de um episódio mais “solto” dentro do romance, ou menos integrado ao resto do painel que aos poucos é composto. Esta percepção se reforça pela ausência de reaproveitamento dos eventos aqui narrados na parte conclusiva do livro, servindo apenas de apresentação de personagem, e de um só, que já que Fernando, o de classe média, não aparece posteriormente: trata-se de um estereótipo tão claro do pequeno-burguês insatisfeito que não havia margens para desenvolvimentos[27].  Ainda assim, vê-se neste capítulo um entrelaçamento forte do pessoal/individual com o político/coletivo, ainda que sob a chave interpretativa da ironia.
O sétimo e último capítulo antes da parte conclusiva do livro (o “antes” e “depois” da Festa), de título “Preocupações (Angústias, 1968)”, divide-se em duas partes separadas, sem alternância, de conteúdo abertamente político: a da mãe preocupada de um estudante envolvido com os protestos anti-ditadura e novos comportamentos sociais, e, para a surpresa de muitos leitores, uma exposição opinativa de um delegado de polícia social, em um raro momento de nossa literatura em que se dá voz ao lado dos que estão pelo autoritarismo. O romance justapõe os dois diferentes conservadorismos, o que vê as mudanças sociais e comportamentais partindo de dentro de casa e da família, e a do funcionário estatal que vê como sua função a repressão destas atitudes e iniciativas.Um que choraminga impotentemente a distância geracional:

“Aonde vai levar toda essa confusão? Aonde é que isso vai parar? O que eles querem? É preciso compreender a aflição das mães e parar com isso, parar de uma vez. Fazer nossos filhos voltarem para as namoradas, para as mães, e aí a gente volta a ter certeza das coisas, certeza de que eles estão quentinhos, alimentados, e livrai-os senhor Deus de todo mal amém”(1976, p. 98)

Outro já destila sua positivista superioridade, seu suposto racionalismo absoluto e inquestionável que magnanimamente visa a reger os comportamentos (e quem sabe um dia os pensamentos) da sociedade fazendo aparecer (sem muita sutileza) o autor da primeira epígrafe do livro: “os homens hesitam menos em ofender os que se fazem amar do que aos que se fazem temer, ensina o mestre dos príncipes (1976, p. 102). Trata-se de um dos pontos fortes do livro no que diz respeito a ideologia e o retrato social que busca fazer de sua época, uma vez que mostra a grande afinidade de certa parte da sociedade brasileira com os procedimentos e os pensamentos autoritários: é possível até ver na segunda parte uma espécie de resposta à primeira, que em certa altura roga “temos os presidentes é para isso, para tomar conta de nós” (1976, p. 97) dizendo “do próprio seio do meu povo sinto elevar-se o apelo: protege-nos, faz algo por nós para que termine essa nova angústia, esse novo fanatismo, a loucura mística dos jovens” (1976, p. 102). O uso de uma mãe, figura supostamente intocável e perfeita na ideologia corrente, serve de contraste estético mas também de precisão histórica, uma vez que àquela época havia todo um movimento das “mulheres pela democracia”, todo constituído de donas de casa conservadoras, de apoio à ditadura militar.
Neste capítulo consta também uma refutação a meu ver importante da ideia de cultura e refinamento intelectual como necessariamente levando a concepções anti-autoritárias, em especial na metade em que fala o delegado esta crítica esteja mais bem integrada ao texto, tanto pelo tom de voz quanto pelo conteúdo exposto como um todo. À mãe preocupada, resta apenas um breve parágrafo meio deslocado e artificial em seu depoimento afirmando que “poesia é bom para ler, mas escrever – já tem tanta. Quem quer, quem gosta, lê as que já estão escritas – eu gosto” (1976, p. 98) e uma evocação ao comportamento ideal de Penélope (ainda que especificamente equivocado, uma vez que a espera por Ulisses foi de vinte anos, e não de dez) à esposa abandonada de seu filho. Já o depoimento do delegado, parte mais ‘intelectualizada’ até aquele momento no romance, é um dos trechos mais interessantes do livro, que expressa bem a noção de missão transcendental, inescapável e pessoalmente custosa que os militares e os opressores gostavam de pavonear quando ascendiam ao poder: “por que eu? Eu sou um intelectual. Leio Cícero no original.” (1976, p. 104). Ao leitor da história da ditadura, é difícil não fazer a conexão com Castelo Branco, primeiro presidente da ditadura e “homem de hábitos simples, porém refinados, lia Anatole France e ouvia Mendelssohn” (GASPARI, 2002, 139), que, não obstante seu refinamento, aceitou o movimento de usurpação da democracia brasileira.
Ao fim de todos esses capítulos meio soltos, abertamente críticos do provincianismo dos costumes brasileiros, surge a festa, elemento até então meio distante no livro: é possível pensar até em um leitor que até este momento se perguntava do porquê do título do livro, uma vez que festa só era mencionada de relance em poucos trechos dos capítulos. É nesta parte final que se amarram praticamente todos os pontos até então soltos do romance, dando a eles coesão e totalidade. Esta junção se expressa, dentre outras formas, pelo aumento na precisão de demarcação de tempo e espaço na ação narrada: o que antes aparecia no máximo como um ano numerado e especificações meio vagas de lugar agora tem o endereço especificado (com nome e número de rua) junto com o horário, chegando até à numeração na rua e aos minutos, em sua maioria “quebrados”(como 20h07, para citar o primeiro), descartando a possibilidade de serem horários aproximados e passando a imagem de uma precisão total.
Alguns dos episódios/capítulos anteriormente narrados possuem arco narrativo próprio, com fechamento que, para aproveitar a fórmula de Cortázar, tem efeito de nocaute: “Juliana fez que sim com a cabeça, comeu tudo e ficou esperando a dor do veneno começar” (1976, p. 47). O que há de certa independência entre os textos, não obstante certa regularidade temática e de ambientação, no entanto, é de certa forma desfeita com os capítulos finais, que unem tudo.
Para aproveitar o exemplo já suscitado, na leitura desta frase final não sabemos com certeza se há veneno de fato no que ela comeu ou não: por um lado temos a certeza subjetiva dela (julgada apenas pela hesitação do marido em morder o primeiro pedaço) e por outro temos as palavras dele de desculpas, possivelmente insinceras. Esta ambiguidade da inconclusão é parte significativa do efeito estético produzido pelo “conto”.
Com a leitura dos capítulos de junção das histórias, o leitor descobre que de fato havia veneno no bolo e que os dois foram salvos pelo fato da empregada ter descoberto os dois envenenados. O mistério final se dissolve, e este mistério sendo parte significativa do conto, o conto perde sua independência e vira capítulo do romance.  Até mesmo o leitor que adere à impressão de Juliana (que se mostra correta) e acredita que o bolo está de fato envenenado há de ter a sensação de que o fim do conto corresponderia ao fim da vida dos personagens, experiência de leitura que se desfaz, é corrigida pelos capítulos de junção do romance. Aambiguidade do final do capítulo dá a entender que existem duas possibilidades, a do bolo estar envenenado e de se cumprir a promessa de juventude da morte por amor, ou a da “reparação” de Candinho, que teria entendido seus erros; não consta nesse espectro de possibilidades o que de fato ocorreu.
Para que fique claro que não se está apontando para um “defeito” do livro, vale ressaltar que não se trata aqui de dizer que Ângelo tinha um bom conto e que acabou estragando-o com a necessidade de inseri-lo em uma narrativa maior: a brutal banalidade do desfecho da história é uma interessante desconstrução do romantismo que possibilitou o conflito, e ainda acrescenta uma verossímil e cruel carga de injustiça social com a acusação da empregada, verdadeira “heroína” da história. Das duas supostas possibilidades, havia a resistência do romantismo (grandioso, ainda que doentio) com a morte pelo envenenamento ou o aprendizado da maturidade, de maior realismo: o fracasso da tentativa destrói o dilema, uma vez que ele não mudou de ideia, apenas desistiu. Entre uma grande tragédia e um final feliz e pacato, passou-se para uma tchekhoviana melancolia de ruínas, um narrar daquilo que quase ou que não aconteceu, sem o estouro de um nocaute, e sim o lento fading out de uma música que já soou todas suas melodias. “Naquela época eu acho que ele me amava porque queria morrer junto comigo, não queria que eu fosse uma velha fútil pegando rapazinhos nas lojas de tecidos. Eu estava incluída no plano dele. Agora não. Agora é cada um na sua, como vocês dizem. Envelhecer é isso, eu acho” (1976, p. 142).
Desta maneira, seria de um artificialismo injustificável a tentativa de uma interpretação desta história (qualquer que fosse seu viés) que desconsiderasse aquilo que é narrado na conclusão do livro, como quem quisesse interpretar o relacionamento de Riobaldo com Diadorim desconsiderando a revelação ao fim de Grande Sertão: Veredas.
Outros capítulos, como o das “preocupações”, têm sua maior parte de utilidade estética derivada de sua contextualização junto com o resto do livro: não havendo ação narrada neles, não há de se falar de que é impossível “entendê-los”, mas sua razão de ser só se dá com o resto da obra: o depoimento do delegado ganha em valor já que não é uma figura qualquer, e sim a daquela situação da revolta popular narrada no primeiro capítulo do livro.
Assim sendo, discordo inteiramente aqui com a colocação de Renato Franco que, ao buscar engrandecer o romance, acaba por cometer alguns exageros:

“[a ligação das narrativas] com a totalidade (da obra) é tênue e quase volátil (...) sua estrutura propicia, de fato, possibilidades bastante interessantes: a mais notável delas é, sem dúvida, o esfacelamento de um sentido único para a obra, que se abre para vários prováveis significados, visto que a totalidade já não mais exerce aqui seu tradicional papel ditatorial” (1998, p. 161)

Primeiro é importante ressaltar que a narrativa mais tradicional é tão propícia a produção de múltiplos sentidos quanto a mais moderna técnica, dependendo da habilidade e do intuito estético do autor. Mais especificamente no caso de A Festa, por mais que seja verdade que o livro não se restringe ao período que lhe é contemporâneo, sendo um dos pontos fortes ideológicos do livro mostrar que a ditadura tem raízes fundas em nossa cultura e história, me parece necessário constatar que os anos 70 são inquestionavelmente o período central do livro e que os outros são apresentados como espécie de prólogos ou precedentes deste. Não só podemos perceber isto diante da mera presença majoritária dos anos ditatoriais no índice do livro (seis das nove partes do livro são dos anos 60/70), mas o próprio título do romance mostra seu ímpeto estético centralizador (um único substantivo concreto, no singular), assim como em os trechos de “anotações do escritor” que permeiam a penúltima parte do livro:

“Hipótese um: medo de crítica e eu disfarço com escrúpulos de escrever um livro inútil. Hipótese dois: o ambiente rarefeito de liberdade me inibe, inibe todo mundo, e escrever virou uma bobagem sem importância. Hipótese três: estou entre deus e o diabo na terra do sol, entre escrever para exercer minha liberdade individual e escrever para exprimir minha parte da angústia coletiva; imagino histórias que tenho vergonha de escrever porque são alienadas e tenho medo de escrever histórias participantes porque são circunstanciais (...)”(1976, p. 123-132)

Tomando estes trechos como constitutivos do romance, fundamentais, e não um leviano e exibicionista jogo metalinguístico, é difícil interpretar como Franco faz afirmando que o romance representa “um período relativamente longo da história recente” (1998, p. 161), pois os outros períodos aparecem inteiramente subordinados ao contemporâneo.
Algumas das conexões feitas entre o evento da festa e os capítulos “pessoais” (do segundo ao sétimo) são tênues, e por vezes esta conexão causa uma impressão menos forte no leitor do que o drama narrado capítulos atrás; mesmo assim, o que prevalece na leitura é o elemento político, não só pelo seu poder de conseguir reunir todas as histórias, transformando aqueles contos meio dispersos em um romance (gênero de difusão bem maior entre leitores do Brasil, assim sendo, um que acaba tendo seu efeito de leitura prevalecendo), como também pelo mero fato de se tratar do fecho do livro, parte que acaba por ficar mais fresca na memória do leitor após o fim da leitura. Ainda que autores frequentemente mencionem a importância de um bom início e frequentemente se faça antologias de “melhores inícios” de romances, o final de um livro certamente pesa mais na impressão de leitura do que seu início.Basta comparar dois livros hipotéticos, um com um início excelente e um final fraco e um segundo com um início fraco mas um final excelente: ainda que estejamos falando no abstrato, creio que é possível dizer que das duas opções, a segunda me parece constituir um livro melhor. O final excelente compensa mais o início fraco do que vice-versa, ainda mais se considerarmos que o final fraco é lido como decepção e o final forte como surpresa positiva.
Esta solidez se ressalta ainda mais dado o estilo do último capítulo: verdadeira salada estilística até aquele momento, o romance parece abandonar sua verve experimental (e talvez a cor azul das páginas nas primeiras edições buscassem servir de compensação) e toma para si uma espécie de “estilo explicativo”, que busca esclarecer os pontos que a fragmentação do romance pode ter deixado obscuro a muitos leitores: “se alguma dúvida persistir quanto ao entendimento da estória (ou das estórias), talvez prejudicada pela estrutura fragmentada da narrativa, o bloco final, o Depois da Festa (Índice de Destinos), a dissipa por completo” (BASTOS, 2000, p. 211). Quanto a esta parte do livro, Dalcastagnè é bastante crítica: “Ângelo derrapa nas páginas finais, ao fazê-lo [o livro] explicar coisas que já são evidentes para o leitor” (1996, p.75), e dada a recuperação do aspecto burocratizado do índice inicial, com sua numeração que escreve por extenso “página X”, indicando a origem de trecho por trecho reapresentado do romance, não é uma crítica descabida. O recurso serve um pouco para reforçar a ideia de uma espécie de “relatório” governamental (Renato Franco recupera depoimento do romancista que diz que esta parte se inspirou “por aquelas insidiosas fichas com que a polícia política da ditadura (o DOPS) aterrorizava os indefesos moradores dos edifícios das grandes cidades: todos deveriam entrega-las à autoridade competente (1998, p. 221)), relatório que teria um controle absoluto e final sobre os destinos dos envolvidos na festa, mas também pode ser lido como um autor inseguro quanto a capacidade de leitura de seu público, temendo talvez que o livro teria seu sucesso restrito se deixasse mais conexões a cargo do leitor. Quase se percebe o autor tentado a escrever em um dos trechos confessionais algo como “caso você leitor ainda não tenha percebido, o filho do capítulo triângulo é o noivo de Andrea, aniversariante da festa”.
Não se trata aqui de apontar esta centralidade do aspecto político como defeito da obra, uma vez que se trata de um romance muito bem elaborado, cheio de momentos memoráveis (como o segundo capítulo inteiro, o interrogatório de Andréia, o não-conto do judeu refratário[28], etc.), que mescla com eficiência a temática da hipocrisia e infelicidade da classe média, a miséria da maioria populacional e a dominação truculenta do estado autoritário. O que se busca aqui dizer é que não obstante o talento estilístico e narrativo do autor, capaz de criar múltiplas vozes de personagens e desenvolver vários estilos diferentes, o fato da ditadura estar no centro do livro torna o talento de Ângelo suscetível a passar pelo processo narrado no capítulo anterior, em que a literatura perde seu ponto de referência principal (ainda que negativo) com o fim da ditadura. Ainda que o livro até passe um número igual ou até maior de páginas falando do baile de máscaras em que indivíduos de classe média, aproveitando a expressão de Dalcastagnè, fazem “algozes de si próprios” (1996, p. 65) do que da violência ilegal do Estado, é difícil pensar em alguém que descreva A Festa como sendo um romance de costumes antes de descrevê-lo como um “romance anti-ditadura”: a contundente crítica aos costumes está lá, mas subjacente à descrição crítica do autoritarismo. Finda a ditadura, não haveria mais esta referência principal para estruturar esta sólida totalidade.
 Confissões de Ralfo, por sua vez, faz suas críticas de forma bem mais sorrateira e sutil. No já analisado capítulo de abertura do livro, durante o do panorama urbano que é o estabelecimento do cenário do livro (ainda que o livro por vezes faça incursões em outros cenários, nenhum é descrito de forma convincente como o urbano do início do livro, e este aspecto parece constitutivo da obra: é um livro urbano ainda quando narra guerrilhas na selva) consta a seguinte descrição de ironia praticamente explícita:

“À Vossa frente, senhoras e senhores, se fixardes os olhos no alto daquela avenida, temos o Palácio do Governo, que serve de moradia e local de trabalho àquele que tão sabiamente governa este Estado. Quanto às grades de ferro pontudo e também os soldados armados e os cães, não se impressionem os distintos visitantes, pois trata-se apenas de uma pequena precaução. Porque há sempre aqueles que respondem com ódio ao amor de seus superiores Uma ínfima minoria, mas perigosa de qualquer modo e que não convém subestimar” (1975, p. 14)

O livro é também permeado por uma ideologia inconformista diante da realidade econômica urbana, seja no próprio capítulo de abertura, em que se lê:

“os banqueiros ficam cada vez mais ricos e os bancários cada vez mais putos da vida. Mas quem permanece bancário merece, de certo modo, tal destino. Porque há sempre a possibilidade de lançar-se do vigésimo andar (...) ou então, para os mais corajosos, assaltar o banco ou mijar em cima da mesa do chefe ou, ainda, o mais óbvio: simplesmente nunca voltar ali.” (1975, p. 14)

Este elemento é posteriormente desdobrado no capítulo em que Ralfo se transforma em um burocrata, e sua rotina tediosa é detalhadamente descrita pelo próprio narrador, em que se acorda, se escova os dentes, se enfrenta o trânsito, se atravessa o tédio do expediente burocrático e se chega em casa só a tempo de conseguir descansar o corpo a ponto de sobreviver a outro dia idêntico. Ainda que este tipo de contestação possa soar pouco original para leitores de hoje (e talvez até para os daquela época), ainda assim se constitui em uma dissidência bastante aberta à ideologia de trabalhador obediente e satisfeito pregada e reiterada pelo conservadorismo que constituía e apoiava a ditadura militar, uma crítica que ataca o regime em seu dispositivo ideológico especificamente econômico, verdadeiro cerne de legitimação do governo. Ainda que possa soar meio como uma repetição de ideias antigas, é interessante ressaltar que, diferente das críticas que tinham como alvo o autoritarismo estatal e a opressão de “subversões políticas”, esta crítica permanece ainda com a mesma validade (ainda que, pela sua repetição em várias outras formas, tenha perdido algo de sua contundência) que sempre teve, uma vez que o modelo de trabalho pregado pelos defensores da ditadura é o hoje ainda vigente no plano econômico, verdadeiro legado duradouro (aparentemente eterno) da ditadura: o trabalho alienado, economicamente eficiente e pacato.
Para além destas críticas relativamente genéricas ao alienante e automatizante mundo moderno, o romance de Sant’Anna não se abstém do debate ostensivamente político do seu momento, a questão do autoritarismo estatal e da disputa de esquerdas e direitas, e seu posicionamento se expressa em especial em dois capítulos do livro, o de “Eldorado” e em duas subpartes intituladas Interrogatório (1) e (2). No entanto, para além do atendimento das expectativas de ser obrigatório se posicionar diante da realidade autoritária vivida naquele momento, suas colocações se mostram bastante surpreendentes.
Eldorado é o segundo capítulo do livro, colocado logo após a partida inicial de Ralfo. Logo após ganhar uma fortuna em um cassino de transatlântico e dar todo o dinheiro a uma prostituta de luxo com o qual se relacionava (que, depois de ter lutado a vida inteira por dinheiro e lidar com o acaso aleatório lhe dando aquilo por qual se lutou, haveria de ser obrigada a “defrontar-se consigo mesmo. Perceber que aquilo nada significa verdadeiramente” (1975, p.35)), Ralfo insolitamente desembarca de seu transatlântico no meio de uma guerrilha de selva que busca derrubar um ditador hispano-americano, posteriormente revelado como caribenho.
O primeiro subcapítulo é um hino guerrilheiro que, ao desconsiderarmos a forma de verso livre e sem rima, apresenta uma idealização da terra e do povo certamente não muito longe do romantismo. Logo depois começa a narrativa da luta, com o artificializante subtítulo de “como num filme de guerra” (já dando a ver a contradição de se narrar uma revolução popular com uma estética comparável à cinematografia de guerra, gênero Hollywoodiano por excelência). O livro a todo tempo explicita uma condição do mundo midiático que é a da impossibilidade da experiência que não é cotejada por representações midiáticas de experiências visivelmente semelhantes: o homem está na guerra e pensa primeiramente em filmes de guerra, talvez até mais do que na realidade fisicamente circundante.
A luta em si é narrada por um subcapítulo de pouco mais de uma página de duração em que a idealização é sarcasticamente presente em todos os adjetivos, e no próprio subtítulo, que a descreve o relato como “pequena narrativa épica para os livros histórico-didáticos de Eldorado” (1975, p. 45). Logo em seguida, o próximo capítulo se chama “proclamação de Ralfo, primeiro e único, Guia provisório de Eldorado (1975, p. 47)”.
Tudo isto acontece em pouco mais que dez páginas: desembarca de um transatlântico de luxo para dentro de uma revolução anti-ditatorial, toma o poder, vira ditador e é deposto, e o capítulo seguinte, com o apropriado nome de “delírios”, é uma viagem de subjetividade (assemelhando-se a uma paródia de Clarice Lispector, que no prólogo Ralfo revela ser o primeiro capítulo do livro que escrevia antes de se deparar com a frase de Kerouac) em que nada desses eventos é relembrado.
Para além da óbvia constatação de que o capítulo revela, entre risos e deboches, que autoritarismos podem ser suplantadospor outros autoritarismos (e na época da escritura do romance a revolução cubana já estava a tempo o suficiente no poder para mostrar isto), toda a experiência da luta armada aparece consideravelmente diminuída, ainda quando bem sucedida (que certamente não era o caso brasileiro). A comparação deste breve capítulo com praticamente qualquer trecho de Em Câmara Lenta, de Renato Tapajós, romance muito mais bem sucedido em vendas e impacto cultural de curto alcance, é talvez um dos mais fortes contrastes possíveis dentro da literatura brasileira, ainda que ambos autores estejam do mesmo lado ideológico no que diz respeito ao seu posicionamento contra a ditadura. Em Tapajós, a luta gloriosa e suicida; em Ralfo, a luta ridícula e estereotipada. Nunca se leria de Ralfo palavras desta retórica engrandecedora e francamente mórbida:

"Uma disposição de se entregar inteiramente para fazer a única coisa certa que se pode fazer. A única: lutar. Qualquer outra alternativa é fuga, é demissão, é colaboração com o inimigo. E isso continua valendo: qualquer escolha que a pessoa faça será uma traição se ela não escolher a luta" (1977, p. 49-50)

Ou ainda:

"Marta também está morta, levou uma rajada na barriga que quase a cortou no meio e caiu com um revólver em cada mão, em cada uma de suas mãos delicadas, os cabelos louros ficaram empapados de sangue e os revólveres estavam vazios, porque ela atirou até acabar a munição" (1977, p. 24).

Com toda essa dissonância já estabelecida nesta narrativa debochada de guerrilha, é no capítulo em que Ralfo é torturado que o livro mostra sua qualidade crítica em sua expressão máxima. Trata-se de um dos momentos mais impressionantes de toda a literatura brasileira, se levarmos em consideração o contexto de sua escrita e publicação. Ainda que sua prisão não se dê por atividades subversivas e não exista identificação específica dos torturadores como militares, a conexão com a situação autoritária do país naquele momento se impõe automaticamente: ainda que fosse um homem da caverna torturando outro homem da caverna, ou um marciano torturando outro marciano, qualquer cena em que se busca extrair informações pela imposição de dor física insuportável, em que se impõe de forma absoluta a impotência do sujeito e se aliena o indivíduo de seu próprio corpo, a conexão com a ditadura seria feita. Até mesmo uma cena como a de Confissões de Ralfo.
A cena é chocante, com o perdão do adjetivo de mau-gosto neste assunto. Não se trata de uma descrição gráfica ou detalhista/brutalista da situação; neste caso, de novo Em Câmara Lenta se mostra como expressão máxima desta novíssima vertente em nossa literatura. O choque é causado pela ousadia de se criar uma cena de tortura satirizada, que tem como um dos seus objetivos mais claros o de provocar riso no leitor.
O capítulo se chama Interrogatório (1) e (2), e sua apresentação inicial, seca e descritiva, possivelmente engana o leitor que àquela altura ainda não se acostumou com o propósito do romance. No entanto, é com as perguntas que se estabelece o tom meio burlesco da cena: não se busca informações a respeito de subversões políticas ou até mesmo atividades ilegais de forma geral, e sim informações praticamente aleatórias, como quem descobriu o Brasil, ou quem foi Touro Sentado, ou até mesmo “cite outras datas e respectivos acontecimentos” e “o que aconteceu em 1584”:

Uma chibatada por não lembrar-se do que aconteceu em 1584.
- Ah, em 1584 morreu Ivan, o Terrível.
- E como era Ivan?
- Terrível.
- E quem era Ivan?
-Primeiro imperador russo a adotar o título de Czar.
- E o que foi o Domingo Sangrento?
-Demonstração operária dizimada pelas tropas do Czar.
- Qual Czar?
- Ivan, o Terrível.
Duas chibatadas.
- Perdão, foi Nicolau II, o último dos czares.
- E como morreu Nicolau II?
- Pela mão dos bolchevistas.
-E o que é um bolchevista?
- Uma espécie de socialista radical.
- Assim como vós?
- Assim como eu, senhores.
Duas chibatadas por ser um bolchevista.
- E o que é um maniqueísta?
-Alguém que segue uma doutrina fundada nos princípios do bem e do mal.
-Assim como vós?
- Não, meus senhores
Duas chibatadas por não ser um maniqueísta.”(1975 118-9)

Depois de passar por acontecimentos históricos e por definições filosóficas, o interrogatório progride para a categoria de conhecimentos gerais:

“E nos diga, agora, mas em inglês, o que é uma farsa?
- A foolish show, mockery, a ridiculous sham.
- Assim como fazemos nós?
- Assim como nós todos.
-Continuemos então com a nossa farsa... Perdão, com o nosso interrogatório.
-A vossa disposição, meus senhores.
-CULINÁRIA. Nos dê a receita de uma rosca doce.
-Rosca doce. Misturam-se duzentas gramas de açúcar com cento e cinquenta gramas de manteiga (...)” (1975, p. 125)

A cena foi interpretada, quando foi interpretada, essencialmente pelo seu viés da crítica ao regime militar, como todo romance da época tinha o dever de expressar. As perguntas absurdas realçariam o absurdo que é aquele exercício de poder: a desinstrumentalização do ato (uma tortura que não serve para nada) dariam a ver de forma explícita a ilegitimidade da violência abjeta. Janete Gaspar Machado, em seu livro de 1982, após equivocamente apontar como “denúncia” a constatação feita pelo livro da importação de valores de outras culturas, diz que o capítulo da tortura “Coloca-se em debate, ridicularizando-se, a arbitrariedade, que ocorre no país, com relação ao assunto” (1982, p. 138).
Não é uma colocação incorreta, pois o absurdo da cena certamente se situa no cerne do interrogatório e dos interrogadores, mas esta interpretação não toca no elemento que é, a meu ver, fundamental no capítulo: o quão incômoda é a primeira vista uma leitura de uma cena de tortura satirizada, como se aquilo constituísse uma espécie de desrespeito à dor sofrida daqueles que lutaram. No entanto, ao levarmos o resto do livro em consideração, percebe-se que o autor opera uma espécie de desmonte constante de mitologias, quaisquer que elas sejam, e o fato desse desmonte causar desconforto agudo quando o assunto é tortura serve apenas de constatação de que esta mitologia em específico é mais sólida, como se ele questionasse aquilo que é, ou deveria ser, inquestionável. Como rapidamente analisa Süssekind: “Sant’Anna utiliza-se, pois, do “sem sentido” desses diálogos tanto para afirmar a irracionalidade mesma da situação carcerária, quanto para desdramatizar sua representação da tortura” (2004, p.87).
De todo o sofrimento e dor de se viver sob autoritarismo e sob o constante medo de ser alvo da arbitrariedade violenta, dificilmente seria possível de se pensar em um exemplo mais vívido que o da tortura. O romancista sul-africano J.M. Coetzee, em seu brilhante ensaio “Na Câmara Escura”, publicado em 1986 em meio às lutas contra o Apartheid e os esforços dos escritores para representar a realidade vivida do país, define que:

“o porão de tortura providencia uma metáfora, crua e extrema, para as relações entre o autoritarismo e suas vítimas. No porão de tortura, força ilimitada é exercida sobre a existência física de um indivíduo em um crepúsculo de ilegalidade legal, com o propósito, se não de destruí-lo, então ao menos de destruir um cerne de resistência dentro dele.” (1986, n.p.)[29]

Sob nossa formação inicial de cristianismo, a dor tem significados extra-sensoriais de grandeza, e o sacrifício é a prova máxima: não há como se pensar em Jesus sem se lembrar da crucificação, desta morte redentora e grandiosa. Regina Dalcastagnè toca brevemente no assunto nas páginas finais de seu livro, indicando que a questão provavelmente não se restringe ao cristianismo:

“No senso comum, o sofrimento é valorizado como momento de aprendizagem e possível redenção. A frase de Gandhi leva ao exagero essa perspectiva: “Uma vida de sacrifício é o cume supremo da arte; é cheia de alegria verdadeira”. Mas essa ideia trafega pelas mais diferentes culturas. Na cultura ocidental, sua difusão está ligada sobretudo ao cristianismo. Jesus Cristo sacrificou-se pela salvação dos homens; assim, todo sofrer teria algo de divino” (1996, p.137)

Ainda que seu foco seja a fotografia e as artes plásticas (sendo interessante lembrar que o desenvolvimento ocidental das artes plásticas teve por séculos uma conexão fortíssima com o cristianismo), Susan Sontag, em seu livro Contemplando a dor dos outros, fala em aspectos interessantes de serem recuperados aqui ao discutir a problemática questão do sofrimento e a forma como o encaramos e o representamos artisticamente:

“A iconografia do sofrimento tem um longo pedigree. Os sofrimentos mais frequentemente tidos como merecedores de representação são aqueles entendidos como produtos da ira, divina ou humana. (Sofrimento de causas naturais, como doenças ou parto, são esparsamente representados na história da arte; aquele causado por acidente, virtualmente inexiste – como se não existisse o sofrimento por inadvertência ou desventura”. (2003, p. 40).

Trata-se, claramente, de uma questão cujas profundidades estão bastante além deste estudo, mas que se mostra fundamental na abordagem da ideologia anti-ditatorial daquele momento no Brasil. Diante do aspecto inabalável do regime, o orgulho anti-ditadura frequentemente tomava ares meio patológicos e masoquistas, que frequentemente se deparavam com a dura realidade de que há certas experiências de que são bem mais fáceis de idealizar quando não fazem parte de nossa própria vivência. Bar Don Juan, de Antonio Callado, tem em sua abertura um casal guerrilheiro que busca se recuperar da experiência brutal da tortura. Em certo momento, o personagem relembra o que se pensava enquanto era capturado:

“fora preso antes duas vezes, o que não lhe impedira de sentir de novo, preso com ela, a mesma áspera alegria das ocasiões anteriores, a alegria de ser posto à prova. Não ia falar, não ia dizer nada, continuariam sem confirmação seus contatos com os cubanos (...) Laurinha se sentia exaltada. Com uma pontinha de medo talvez, mas feliz (...) agora chegava a sua vez de experimentar, de enfrentar os interrogatórios, de contar depois como enganara os inquisidores, e que estúpidos eles eram (...) sem dúvida lhe contaria depois como se sentira em cada estágio dessa aventura esperada há algum tempo. Eram suas bodas com a revolução” (1971, p. 5)

O romancista pessoalmente relata sensação muito parecida em sua palestra a estrangeiros:

 “Pode-se até desfrutar da discutível satisfação de ser preso, de ir para a cadeia e ser julgado por um tribunal militar sob a Lei de Segurança Nacional. Eu passei por tudo isso. Temporariamente, você se sente um pouco melhor, como se tivesse pago um imposto de renda moral a algum futuro governo de sua escolha, que finalmente tornará o país respeitador das leis, decente e livre” (2006, p. 73)

A grandeza do sofrimento tem explicitada sua conexão com o cristianismo, motif contínuo na obra de Callado, quando Laurinha, guerrilheira torturada e estuprada em interrogatório, fala de seu tempo no porão:

“(...) Laurinha com o anular direito no gesso. Torcera o dedo quando se apoiava no chão, ao ser arriada do pau-de-arara.
- Minha descida da cruz
Laurinha tinha dito isto com um sorriso de lábios brancos, na esperança de ver João no seu normal (...)” (1971, p. 4)

Se a sua luta (de fato altruísta, ao ponto da cegueira) fazia do guerrilheiro uma espécie de herói (e, em sua própria concepção, sem dúvida o era), e se o herói para se firmar como tal precisa passar por provações, nenhuma provação haveria de ser mais eloquente do que o momento de máximo sofrimento. A tortura, assim, se mostra como etapa importante da luta do guerrilheiro. Útil, até.
Em bom aproveitamento à máxima adorniana da “impossibilidade” de se escrever poesia após Auschwitz, Renato Franco fala do fracasso dos romances de denúncia explícita, como o de Tapajós: “Nos momentos de crueldade extrema, toda pretensão literária de dizer algo acerca do sofrimento é uma mistificação (...) a experiência do sofrimento radical não é comunicável” (1998, p. 217). Acaba por restar, nesses romances que buscam se vestir de denúncia, apenas o aviso do grau de punição a que se submetem os que ousam questionar o regime (nas palavras de Coetzee: “oferecidos como a cabeça de uma górgone para aterrorizar a população e paralisar a resistência”(1986, n.p.)), e um prazer de alguns (seriam poucos?) de figurar como voyeurs literários do grotesco e brutal.
O ensaio de Coetzee aborda de forma direta e sucinta a questão da tortura e de sua dificultosa representação literária:

“para o escritor o problema mais profundo é não se permitir ser empalado no dilema proposto pelo estado, especificamente, ou ignorar suas obscenidades ou produzir representações delas. O desafio verdadeiro está em não jogar o jogo pelas regras do Estado, em como estabelecer sua própria autoridade, em imaginar tortura e morte em seus próprios termos” (1986, n.p.)

É de novo em Tapajós que podemos encontrar a “expressão pura” de uma ideologia estética que o romance de Sant’Anna se contrapõe, em especial nesta cena de tortura. As cenas intermináveis e repetitivas de tortura no romance de Tapajós(literalmente repetitivas, pois a mesma cena tem seus parágrafos identicamente reproduzidos com o lento acréscimo de novos detalhes ao fim da repetição, no decorrer do livro, em um procedimento que Süssekind corretamente criticou como um esvaziamento de tensão), que nos termos de Süssekind servem para as “delícias de um leitor-vampiro”(2004, 76) e nos de Coetzee expressam como o porão pode se tornar “o quarto da fantasia pornográfica onde, insulados de restrições morais ou físicas, um humano é livre para exercer sua imaginação ao seus limites ao exercer vilania ao corpo de outro” (1986, n.p.).O entusiasta do gênero de filmes de terror certamente há de identificar os crânios lentamente se esmagando com olhos saltando das órbitas etc.etc. narrados por Tapajós com o gênero de “pornografias de tortura” como Saw ou Hostel, em que a violência detalhista se aproxima desregradamente ao fetichismo sado-masoquista.
É possível tomar o romance de Tapajós como exemplo máximo da ideologia representacional dominante a respeito da tortura, que se disseminaria com maior rapidez com a anistia e os relatos não-romanescos que invadiriam o mercado. Seu equívoco, no entanto, não se restringe ao campo da representação ficcional. O entendimento do que consistia a tortura na mente do guerrilheiro aparece transcrito com grande clareza no romance de Tapajós: “Eles nos pegaram nas ruas, encontraram o rastro de cada um e a tortura fez muitos falarem. Traidores. Esses não merecem nome” (1977, p. 55). Abjeto passa a ser quem sucumbe ao pau-de-arara e ao choque elétrico, ignorando o fato de que a pessoa que age naquele momento é o torturador, que ele é a figura a ser responsabilizada pelo que ocorre no porão; deixa-se de lado a arbitrariedade e a inadmissibilidade deste tipo de prática a favor de mais um idealismo que supostamente fortificaria a luta.
O elemento perverso e inútil deste idealismo se torna ainda mais claro quando se percebe sua existência até mesmo entre os altos escalões da ditadura militar. Com a palavra, Jarbas Passarinho, um dos signatários do AI-5:

“Os militantes são treinados para resistir aos interrogatórios, para dar tempo a que seus companheiros se ponham em segurança. A delação, para eles, é o supremo opróbrio, como o é para todos os que têm caráter” (2002, p. 38)

A abrangência de tal idealismo não se restringe à tortura, estendendo-se até à própria luta armada. João Batista Figueiredo, o mais rústico dos presidentes militares, narrando a Ernesto Geisel um momento da guerrilha do Araguaia como uma cena de filme de ação:

“Houve uma menina [...]. Vêm aqueles rastreadores na frente e eles vêm cem metros atrás. [...] Desconfiaram de qualquer coisae recuaram. Recuaram e então o pessoal veio. E veio um major, na frente, pela picada no meio do mato. E encontrou uma moça escondida atrás de uma árvore com uma metralhadora na mão. Meninota, de vinte e poucos anos [...] Diz que o major que estava de revólver na mão baixou a arma e disse: “Vem cá, minha filha, como é o teu nome? Vem cá, minha filha, que é que você está fazendo aqui?”, não dando a perceber que tinha visto ela com a metralhadora. E a menina respondeu:
- Isso não é da tua conta.
-Vem cá, minha filha, vem me contar a sua história. Como é o seu nome?
A mulher responde: “Guerrilheira não tem nome. A resposta de guerrilheiro é esta”. E deu uma rajada no major. Levou um tiro na mão e outro de raspão assim no rosto. Aí o pessoal que já tinha entrado na mata começou a atirar em cima da menina. Aí ela continuouatirando. Quando ela caiu tinha quarenta e poucas perfurações de calibre 22”(2002, p. 442).

Toda esta idealização é impossível, e até mesmo explicitamente desmontada, pela cena narrada por Sant’Anna. Certamente se critica a ditadura, sua truculência e arbitrariedade absurdas, mas se coloca de forma implícita a maneira como no entendimento corrente da tortura ocorre uma atribuição de significados que é externa ao ato em si. Na medida em que uma das constantes do romance é a eterna artificialidade da atribuição de significados, pode parecer uma constatação não muito específica, mas o choque provocado por este capítulo em especial mostra o quão sólidos eram estes significados de grandiosidade e dignidade inabalável ao que é na verdade um ato grotesco e monstruoso. Ainda que os qualificativos de elogio recaiam a quem sofre o ato e não a quem o pratica, ainda assim o processo realizado é o de se criar um valor positivo de algo que deve ser sempre ressaltado em sua crueza, estupidez e ausência de sentido dignoe valor. Diante da impossibilidade de se discutir a postura de quem pratica a tortura, uma vez que se trata de uma figura obviamente fechada ao diálogo, o foco recai sobre o torturado, esquecendo que este é a vítima e que, em última instância, tem pouquíssimo ou nenhum controle sobre aquilo que lhe acontece nos porões escuros da ditadura.
Sendo assim, Sant’Anna apresenta mais do que uma crítica a ditadura ao fazer uma crítica das categorias que se solidificavam ao redor do anti-autoritarismo. Na sua cena de tortura, não há lugar para heróis, não há lugar para qualquer provação. É impossível encontrar aí o erro fácil e recorrente nas descrições de tortura, que Coetzee descreveu como “representar o mundo do interrogador com falsa grandiosidade, um lirismo negro questionável” (1986, n.p.). É possível apenas o absurdo, generalizado.
Outro elemento deste capítulo que o leitor mais assíduo da obra de Sant’Anna fica propenso a perceber é uma conexão quase direta com o (a princípio enigmático) conto “God Save the King”, de sua coletânea de dois anos antes, Notas de Manfredo Rangel, Repórter, a respeito de Kramer(1973).
O conto narra uma aula frenética em que o professor despeja informações pontuais (complementado por desenhos que constam feito palavras nas linhas das frases) que, em seu conjunto desigual e em sucessão frenética, se mostram inteiramente aleatórias. Passa-se de formas geométricas a geografia (com um desenho do Afeganistão e dados de censo), história do Brasil, astronomia, religião, neurociência incipiente (definindo rapidamente que o “PENSAMENTO É O PRODUTO DA ATIVIDADE MENTAL”(1997,p. 140, maiúsculas sic), uma vez que uma investigação afundo exigira que tivesse que “nos reportar aos grandes filósofos, que não fazem parte do nosso currículo” (1997, p. 140), linguística, semiótica, música (que inclui a transcrição de um trecho da partitura de Adios Nonino, de Piazzola), morfologia (que inclui uma insólita e desconexa listagem de palavras), belas-letras e literatura, com uma citação bastante longa de Rui Barbosa seguido de um trecho de soneto de Olavo Bilac. O soneto é interrompido em sua segunda estrofe pelo bedel que passa diante da sala, anunciando o intervalo. O professor encerra a aula convocando dos alunos o brado de “viva o rei”, pedindo em seguida que repitam em francês e finalmente em inglês. Os alunos então correm alegremente para o recreio. Trata-se de um texto de 5 páginas.
            Não é pequena a perplexidade provocada pelo conto. Não há enredo, não há desenvolvimento de uma trama, um conflito, não há ação que não a enunciativa, pelo professor e algumas poucas interferências dos alunos, não há personagens que vão além do designativo funcional do contexto escolar: o professor, os alunos e o bedel. Não há uma ambientação definida, ou melhor, há uma mistura de ambientações: se por um lado o professor cita Ruy Barbosa e Olavo Bilac (sem que, no trecho sobre música, dê ares nacionalistas e cite um compositor brasileiro), autores de renome estritamente brasileiro, o final do conto pede uma insólita saudação a um monarca, sendo sua iteração em inglês o título do conto.
            Sem o intuito de esgotar as possibilidades interpretativas deste conto, acredito que muito dele se esclarece se compararmos com o surpreendente capítulo de Confissões de Ralfo. A conexão entre os conteúdos aleatórios expostos pelo professor aos alunos e os conteúdos aleatórios exigidos pelos torturadores se mostra bastante clara, com Ralfo demonstrando ter sido um excelente aluno e ter aprendido muito bem na escola, ainda que seja um tanto de insolente antes de dar todas as respostas que lhe são pedidas.
            Idelber Avelar, em seu impressionante livro, afirma que uma das principais heranças dos períodos ditatoriais na América Latina é o desmonte do aparato universitário no que diz respeito um de seus objetivos historicamente consagrados: o de provocar reflexões a respeito da realidade circundante e de apontar as contradições do sistema, buscando caminhos alternativos para uma realidade social insatisfatória. Seu objetivo até então havia sido o enfoque na formação de intelectuais que se dispusessem a questionar a sociedade e seus pressupostos implícitos e explícitos. A este modelo sobreveio um novo, de aparência semelhante (ainda eram universidades e universitários, era ainda a mesma classe social participante) mas de essência completamente diferente: o objetivo era a produção de técnicos hábeis e eficientes, que saberiam aplicar seus conhecimentos para a reprodução, manutenção e crescimento do sistema vigente. A tecnocracia passou a reinar. É o tempo de engenheiros e contadores, advogados sofistas e economistas que encaram seu trabalho como aplicação de dogmas inquestionáveis.
            Esta conexão se reforça com o título anglófono do conto: ainda que o sistema intelectual estadunidense seja certamente bem desenvolvido, o pragmatismo desenvolvimentista dos anglo-saxões (seja na Inglaterra ou dos Estados Unidos) sem dúvida coaduna com a tecnocracia que se consagrou no Brasil a partir da ditadura, tanto que o apoio estadunidense aos generais brasileiros foi imediato, contínuo (até a eleição de Carter em 1976) e fundamental para a ditadura brasileira.
            A crítica é tecida no conto de forma implícita, por meio do reductio ad absurdum: não há qualquer invectiva explícita no conto contra o ensino tecnocrático, na narrativa todos aceitam em uma homogênea perfeição aquilo que é imposto. O absurdo fica exposto pela própria reprodução frenética dos conteúdos, a justaposição dos assuntos distintos, sem qualquer conexão lógica. Não se pode apontar equívocos nas informações reproduzidas pelo professor, e sim no seu próprio método e a forma de encarar o conhecimento, forma consagrada pelo sistema capitalista que se instalou de vez a partir da ditadura militar.
            No romance publicado dois anos depois, o autoritarismo da tecnocracia fica explícito por meio da satírica cena de tortura, e sua conexão com o pragmatismo econômico estadunidense fica até um pouco delineado demais pelo fato dos torturadores do protagonistaserem estadunidenses. Novamente, não há invectiva de Ralfo contra o absurdo da tortura e o absurdo se faz patente pela própria natureza daquilo que se narra.
            A comparação de A Festa com Confissões de Ralfo dá a ver com clareza muito do que estava em jogo quando o assunto é a produção literária no Brasil ditatorial. Temos com o livro de Ivan Ângelo um romance primoroso, que demonstra uma sofisticada técnica composicional junto a uma pertinência histórica e política que em poucos momentos se consegue encontrar na história da literatura brasileira. No entanto, em A Festa a ditadura inquestionavelmente figura como centro do livro, verdadeira estrutura por trás de todas as histórias dispersas do romance: sem o autoritarismo militar, o romance desmonta, restando apenas os contos separados.  Isto se dá de forma tão forte que não há quem descreva sucintamente A Festa como algo diferente de “um romance contra a ditadura”. A descrição de Lafetá de que o livro tem uma estrutura em espiral poderia ser complementada pelo fato de que se trata de uma espiral que é desenhada da extremidade para o centro, concentrando e diminuindo.
            O livro de Sérgio Sant’Anna, por sua vez, não tem a mesma excelência do romance de Ângelo: as peripécias de Ralfo são um pouco repetitivas, e certos trechos em que há variação da fórmula de desmonte de clichês o leitor acaba por desejar que não houvesse, pois não são tão bem desenvolvidas. João Luiz Lafetá, em resenha jornalística ao livro, critica o livro de forma conservadora porém não inteiramente descabida afirmando que o romance por vezes provoca “certo tédio e sentimento de já ter passado por aquilo várias vezes”(2004, p. 442) . O livro, no entanto, aborda em seu cerne questões que não se restringem à ditadura e não são desenvolvidas na narrativa como subjacentes ao autoritarismo; assim sendo, suas qualidadese colocações não se restringem ao período narrado. O romance não se abstém de denunciar o absurdo, mas não se contenta em fazer apenas isto, ou principalmente isto, uma vez que parece entender (em se tratando de uma obra eminentemente metalingüística) que o lugar social de seu discurso impede que as denúncias produzam muito efeito.
            Este lugar da ditadura se mostra bem a partir dos desenvolvimentos posteriores das carreiras literárias dos dois autores: Sérgio Sant’Anna continuou produzindo obras relevantes que recebiam sempre algum destaque no meio literário, enquanto Ivan Ângelo é até hoje conhecido e descrito como “o autor de A Festa”. Uma vez que já não existia mais o assunto principal cujo tratamento estético primoroso deu grandeza ao seu romance, a Ângelo restou apenas a produção de contos de boa qualidade, mas que nunca alcançavam a excelência de seu romance. Sant’Anna, por sua vez, por ter como foco algo que não se restringia àquela conjuntura específica, conseguiu desenvolver sua obra sem que precisasse existir a referência sólida e urgente da ditadura militar como base.
            Neste sentido, estes dois autores colocados lado a lado mostram de forma clara a dinâmica cultural vigente no país durante a ditadura, dinâmica que busco analisar nesta dissertação. Dado o nosso histórico de empenho, poucos assuntos suscitariam tamanha comoção generalizada no meio intelectual como o surgimento de uma ditadura tecnocrática, violenta e opressora. A omissão era um caminho praticamente impossível, irresponsável; o apoio, impensável para a maioria esmagadora dos intelectuais (só sobreviveriam a esta pecha intelectuais de grandeza incontornável). O país estava em crise, e o motivo desta crise era patente. Cabia aos intelectuais lidar com este problema na forma que era possível: a literatura, discurso de limitadíssima circulação social (um país de noventa milhões em que editores se alegravam de alcançar vendas de algumas mil de cópias), foi uma das formas possíveis de se expressar esta situação dificultosa, facilitado pela solidez com que este discurso havia se constituído em nosso meio intelectual.
Ivan Ângelo foi um dos autores mais esteticamente bem-sucedidos que abraçaram por completo esta causa, causa de clara importância e de dificuldades bem delineadas. Dado o fim da pertinência desta causa, uma vez que a ditadura contra a qual ardentemente se lutou enfim acabou, mergulhado em uma realidade dificultosa em que a democracia se mostrava não ser a solução mágica de todos os problemas brasileiros, mostrou-se incapaz de repetir o feito literário de seu romance.
            Sérgio Sant’Anna, por sua vez, não se omitiu diante do autoritarismo vigente, mas entendeu que a ficção tinha um potencial que ia além de apontar os óbvios impasses políticos vividos pelo país de então. Enxerga como a crítica que se restringe a apontar o absurdo da ilegitimidade do governo militar é a uma forma superficial de se entender a realidade, forma que estrutura a visão de mundo por trás do autoritarismo (seja ele o militar, vigente então, ou outros, vigentes até hoje). Tendo como assunto principal algo que não se restringia à realidade social vivida então, foi capaz de dar nas décadas seguintes continuidade ao desenvolvimento de sua obra e de seus motifs artísticos. Não se trata de um abandono do social em favor do abstrato: basta ver como seu livro de contos A Senhorita Simpson, de 1989, é das poucas obras literárias que conseguem lidar com a realidade brasileira diante de um mundo que se internacionaliza cada vez mais, desestabilizando identidades nacionais duramente constituídas durante mais de um século. Trata-se, isto sim, de uma constituição intelectual mais sólida e profunda, reflexiva, mais capaz de se adaptar às mudanças sociais do meio circundante uma vez que busca lidar com mais do que aquilo que está imediatamente diante de si. Uma vez que busca novas formas de expressão a cada novo livro, influenciado por uma admiração às vanguardas estéticas e o experimentalismo, o saldo literário pode acabar sendo desigual, mas o leitor de sua obra percebe um progresso e um aprofundamento de questões que norteiam a escrita de sua literatura.
            Alcmeno Bastos, a certa altura de sua crítica ao romance de Ângelo, constata que A Festa:

“poderia ser também um romance de geração, em que peseo narrador, como já o vimos, preferir negá-lo, alegando que “as figuras principais, as que realmente agem, são de uma geração mais velha, como Marcionílio, ou pouco mais nova, como Samuel” (p.173). Ocorre que o fato de o velho Marcionílio e o jovem Samuel serem as figuras que ‘realmente agem’ não faz deles as personagens principais da narrativa.Bastaria ao narrador dispensar às diversas estórias individuais um tratamento mais largo, como em parte o faz no que diz respeito a Andrea, reunindo-as depois num bloco rememorativo, e teríamos legitimamente um ‘romance de geração’ o fato mesmo de o “escritor” negar que o seu grupo fosse o referente do suposto romance que teria deixado inacabado (dentro das regras do romance em abismo, essa obra acabada que é A Festa), demonstra a potencialidade da hipótese. E se libertarmos o termo geração da ideia redutora de contiguidade etária, aceitando que uma geração possaser composta de indivíduos de idades diferentes que vivem o mesmo momento histórico, e se envolvem, voluntária ou involuntariamente, no mesmo fato político, como é precisamente o caso das personagens de A festa não há dúvida de que se trata de um romance de geração” (2000, p. 213-214)

E Ângelo, de fato explicita seu intuito com o livro, de tentar evitar “Um desperdício passar este momento sem tentar captar o sentido dele, ao menos um esboço que mostre a alguém: era assim, naquele tempo” (1976, p.132). Mudado o tempo, tornadas mais complexas as referências, perder-se-ia esta capacidade e, de tão distante, perder-se-ia até mesmo este objetivo tão imediatamente válido. Enquanto Ângelo se consagra autor do romance paradigmático de uma época, poucos anos depois Sant’Anna publica seu sarcástico e analítico Um Romance de Geração, de título e conteúdos iconoclastas e debochados, afirmando que houve um excesso de identificação da intelectualidade com a situação opressora vivida então.
Não afeito a divisões estanques e confortáveis, a ficção de Sérgio Sant’Anna busca o que há por trás das categorias maniqueístas vigentes então, e se o caráter histriônico e discursivamente exibicionista de Carlos Santeiro pode ser pouco atraente para os críticos de pendor mais analítico, é possível ouvir um pouco da crítica anti-maniqueísta de Sant’Anna por trás da constatação de que, infelizmente, “o fascismo somos nós”.





Capítulo 8 - O ápice e fim do empenho nacionalista na literatura brasileira

8.1 – Armadilhas do nacionalismo
Como se recuperou na primeira parte deste estudo e é de aceitação generalizada entre os intérpretes do histórico da literatura brasileira, há uma constante de empenho entre os escritores brasileiros, ainda que o direcionamento empregado neste empenho divirja significativamente de um período histórico para outro. Em poucos momentos e casos escrever por escrever parecia uma alternativa válida diante da possibilidade de um escrever engajado em uma causa. Até mesmo o parnasianismo, símbolo da arte que é descrita (e se proclama) auto-suficiente e isolada das banalidades da “vida real”, tem em seu maior autor, Olavo Bilac, a autoria de hinos patrióticos para a República.
Esta causa a ser defendida, claro, pode variar bastante, indo da constituição de uma nação grandiosa (por mais vago que este objetivo possa parecer para quem não compactua com os implícitos do conceito de nação) até à denúncia de injustiças sociais que grassam a maioria esmagadora da população do país. Ainda que um discurso seja positivo, ou constitutivo de novas formas de pensamento, e o outro negativo, de apontar defeitos e focado na destruição daquilo que se vê como ruim, é possível ver o mesmo ímpeto nacional, a ideia de um coletivo em que o intelectual se insere e que ele busca construir, defender ou reparar discursivamente.
Todas essas iniciativas são vertentes de uma mesma postura intelectual que tem o país em que se vive como centro: é a independência de seu país o motivo pelo qual se luta, é a construção de cultura daquele país, é a sua modernização, são os costumes daquele país que são motivadamente descritos, são as mazelas daquele país que se denuncia. O Brasil figura como uma espécie de protagonista implícito de grande parte de nossas iniciativas literárias, às vezes mais importante do que o personagem principal das histórias para qual serve de cenário.
A conexão deste histórico que vem desde o esforço de independência de nossos Ilustrados setecentistas com a dissidência na realidade ditatorial requer pouco esforço: o empenho intelectual e artístico agora era praticamente todo negativo, apontando constantemente suas críticas ao autoritarismo vigente. Passamos de um “sem a pátria, sem a nação não há escritor”(PRADO, 2004, p. 19)a um “não existe nenhum romance latino-americano que não seja revolucionário” de Antonio Callado.
Não ocorreu, portanto, com a ditadura, qualquer guinada súbita para o político, muito menos é possível afirmar que isto tenha sido uma reviravolta no percurso que o sistema literário vinha trilhando desde seu início de formação com o Arcadismo e sua consolidação formativa com o Romantismo. Todo esse desenvolvimento de imediatismo e urgência do político decorreu naturalmente das categorias historicamente consagradas de nosso sistema literário, sendo assim um movimento de radicalização realmente inevitável: no Brasil se escreve há muito tempo mirando a questão política, a política se radicaliza, a escrita se intensifica. A derrubada do governo democraticamente eleito (ainda que de forma meio indireta) de Goulart, que prometia reformas de base no país, e a conseguinte imposição de um governo autoritário e violento, não é de se estranhar que a questão do país, presente quase sempre, tomasse ares de urgência absoluta, de obrigatoriedade.
Em meio a este ar de emergência, é interessante perceber como o nacionalismo figurava com frequência no discurso que era contrário aos que no momento detinham o poder do Estado. O governo, eterno centro de discussões de nacionalismo, agora aparecia como espécie de antagonismo do que seria o “nacionalismo verdadeiro”, que realmente se colocaria na missão de resolver os principais problemas do país, que seriam a desigualdade, e não a baixa taxa de crescimento do PIB. O país nunca tinha deixado a pauta de discussão intelectual brasileira, mas para além de certo cosmopolitismo dos anos 30 (o fascismo e o comunismo eram, afinal, movimentos internacionais), parece que a questão nacional se fortalecera nos anos recentes dado o fim do fascismo como movimento político e a decepção das esquerdas críticas com a União Soviética (a maioria dos comunistas brasileiros daquela época se espelhavam em Cuba, e não nos russos, quando imaginavam uma revolução no Brasil).
Em se tratando de um país que desde sempre entrelaça cultura e política, não surpreendem depoimentos como o de Carlos Diegues, que diz em entrevista a Zuleika Bueno, não escondendo certo messianismo ao falar de como os artistas de sua geração tinham a tendência de se enxergar:

“a minha geração foi a última safra de redescobridores do Brasil. O Brasil começa a se conhecer [...] sobretudo com o romantismo [...] aquele desejo de uma identidade [...] minha geração, do Cinema Novo, do tropicalismo [...] é a última representação desse esforço secular” (2000, p. 50)

Já Glauber Rocha, em depoimento de 1979, afirma que “toda nação fraca e pobre só pode existir, só pode gerar algum movimento cultural, a partir da descoberta de uma identidade nacional. O nacionalismo é o germe, é o fundamento do fortalecimento, do desabrochar de qualquer sociedade” (HOLLANDA, 1982, p. 34) e que “o debate aqui tinha que ser colocado em outro nível, o da busca da identidade nacional pela compreensão dos processos econômicos e culturais da colonização”(1982, p. 30).
No entanto, se recusarmos a fácil explicação do cinismo, perceberemos com certa perplexidade que o nacionalismo não era exclusividade daqueles que se posicionavam contra o autoritarismo estatal, e era figura recorrente também, ou talvez até com maior predominância, nos discursos dos ditadores e seus funcionários, durante todo o regime militar. Não se trata, portanto, de uma questão de simples identificação de qual lado naquele conflito estava o nacionalismo, e sim de perceber como que este conceito de grande fecundidade em nossas letras se tornou como que esgarçado neste período.Ambos lados se conclamavam verdadeiros nacionalistas, e ambos lados apontavam para o outro acusando de estarem trabalhando para forças estrangeiras ocultas e escusas (americanistas ou soviéticas). A nação, assim sendo, passava a palavra-mágica meio esvaziada de sentido específico, assim como a palavra “revolução”: era possível utilizá-la em qualquer lado que se esteja do conflito, falando de coisas diferentes um país “desenvolvido”, para os militares, ou um país “justo”, para quem era de esquerda.
Como quase todo o conflito da sua época entre esquerda e direita, no entanto, é preciso entendê-lo em sua assimetria, uma vez que o círculo intelectual brasileiro tinha difusão bastante restrita (não obstante certa homogeneidade básica de concepções ideológicas) e o governo militar não só tinha a seu dispor todo o aparato do Estado (e larga disposição a resolver quaisquer disputas com violência que ele mesmo ilegalmente legitimava) como também seu apoio direto ao desenvolvimento da televisão como meio de comunicação de grande inserção e fácil influência (para não dizer controle) de ideologia.
Assim sendo, pouco surpreende que mesmo entre círculos intelectuais a primeira frase de efeito ou máxima que tende a ser lembrada ao se discutir o período é o slogan “Brasil: Ame-o ou Deixe-o”, e não qualquer categoria oriunda do marxismo ou de outro tipo de estudo universitário, não obstante o grande desenvolvimento das ideias de esquerda que, de acordo com Roberto Schwarz, ocorreu nesse período. Refinamento de reflexões e disponibilidade de estudo e leitura não se rivalizavam com a recém-criada capacidade midiática da televisão e seu apoio estatal. A propaganda política parece muito mais poderosa do que qualquer capacidade de argumentação, ainda mais em um contexto de cerceamento de circulação ampla das ideias.
Um exemplo marcante desse nacionalismo estatal se mostra na sua capacidade de até mesmo usurpar expressões culturais que se originaram de pessoas que se colocaram contra o autoritarismo. É isto que relata Marcelo Ridenti, ao tratar da forma como a cançãoAquele abraço, de Gilberto Gil, composta em 1969 como uma despedida ao país por conta do exílio, foi cooptada como hino elogioso do país: “ironicamente seria usada pela ditadura na onda de ufanismo do milagre brasileiro, pois a letra de saudação ao Brasil podia ser lida com um sentido bem diferente (...): O Rio de Janeiro continua lindo (...) todo o povo Brasileiro – aquele abraço!” (RIDENTI, 2000, p. 208).
Neste contexto, a nação, para a maioria dos brasileiros, passou a ser aquilo que era defendido pelo Estado. Qualquer ufanismo, qualquer elogio, qualquer alegria parecia coadunar com o status quo daquele momento. Assim sendo, não parece despropositada a colocação de Carlos Fico em seu estudo sobre propaganda política durante a ditadura de que os objetos nacionais (bandeira, hino, etc.) precisavam ser simbolicamente resgatados da cooptação feita pelos militares: “De alguma forma era preciso estabelecer em novos moldes a relação da sociedade com o poder, algo que se expressa sinteticamente no culto aos símbolos nacionais” (1996, p. 60-1). No entanto, esse mesmo resgate, operado durante a campanha das Diretas Já, também se deu sob a nova lógica do mundo midiático, uma vez que os eventos pró-democracia eram amplamente noticiados (e até promovidos) pelos canais de televisão. Isto é, a recuperação dos símbolos, se é que de fato se efetivou, se fez de forma descompassada com qualquer recuperação do debate de ideias, a discussão e a reflexão. A nova lógica da imagem e do espetáculo já reinava, independente de seu conteúdo.
Para além da categoria específica do nacionalismo, creio que a ideia de empenho como um todo acabou por sofrer um forte baque nessa época justamente posterior àquela em que teve maior força. Depois de tantos anos de luta direta ou indireta contra a ditadura, do radicalismo do pegar em armas ao mero fato de que se corria riscos sempre que se tecia críticas ao regime, certamente não foi pequena a frustração da classe intelectual diante da lentíssima abertura política pela qual passava o país. Se tomarmos como referência o primeiro discurso do Geisel em que se menciona a necessidade de redemocratização, a ditadura passou mais tempo saindo de cena do que se firmando e regendo sem fim no horizonte. Como lembraJorge Zaverucha, nossa transição para a democracia é de longe a mais lenta de todas as ditaduras latino-americanas, seus onze anos deixando muito para trás o segundo lugar da transição da ditadura equatoriana de três anos.
Como relata Ronaldo Costa Couto, até mesmo após vários anos de suposta “certeza da necessidade de se re-estabelecer a normalidade política”, todo o movimentar político do primeiro dirigente civil, Tancredo Neves, precisou ser cuidadosamente articulado de forma a assegurar aos militares que não haveriam “revanchismos” por parte do novo governo civil (o próprio medo servindo de reconhecimento da ilegitimidade dos atos cometidos). É como se, em vez de uma retomada do poder usurpado, os civis precisaram pedir licença e “por gentileza” aos militares para que a população do país novamente pudesse eleger seus líderes. Em toda sua empolgação em relatar as manobras políticas de Tancredo (e o retrato imaculado que traça do falecido presidente), Ronaldo Costa Couto não consegue deixar de relatar que a redemocratização foi trabalhada junto com seus usurpadores, que na verdade desejavam se verem livres do fardo hiper-inflacionário que haviam criado como consequência de seu fantasioso milagre: “Na verdade, não foram propriamente convicções democráticas dos líderes militares, inclusive de Geisel, que levaram à abertura. Foi antes a evidência do crescente custo político de manter o anacrônico regime de exceção”(1998, p. 359).
Diante de uma realidade dessas, após tantos anos vivendo sob ditadura, se torna difícil acreditar que foi gratuito e imotivado este novo distanciamento de parte significativa da atividade intelectual em relação ao país, uma vez que, por todo seu empenho relativamente homogêneo e contínuo, os novos rumos da nação parecem desconsiderar por completo as opiniões e reflexões da camada intelectual. É válido ressaltar, ainda, como lembra Ronaldo Costa Couto, que a maioria dos membros eleitos do Partido dos Trabalhadores, àquela época reduto intelectual da esquerda, não votou a favor de Tancredo Neves por terem encarado todo o procedimento, aparente única forma de conseguir retomar o poder, como uma espécie de farsa indigna.
Como um tipo de desfecho pusilânime de tanto anti-autoritarismo, podemos recuperar uma colocação de Nicolau Sevcenko a respeito dos intelectuais da virada-do-século, atualizando-a para o contexto anti-autoritário fazendo algumas adaptações:

“dotados de um equipamento intelectual que era ele próprio fruto da situação de crise que viviam, dificilmente esses intelectuais poderiam aquietar as perplexidades que os enleavam. Muito menos ainda puderam ser aceitos como os líderes e condutores da nação no sentido das reformas que propalavam. Daí o destino particularmente trágico de paladinos malogrados que a história lhes reservou. Sua cruzada modernizadora, se bem que vitoriosa, largou-os à margem ao final. Situação bastante insólita: campeões do utilitarismo social, no momento mesmo do triunfo do seu ideal, vêem-se transformados em personagens socialmente inúteis. Sem dúvida, o advento concatenado da Abolição em 1888 e da república em 1889, com sua promessa de democratização, significou ironicamente a experiência traumática e desagregadora dessa geração (...) a Imensa transformação social, econômica e cultural que eles ajudaram a realizar, atuando como catalisadores de processos históricos, tomou rumo inesperado e contrário às suas expectativas. Em vez de entrarem para um universo fundado nos valores da razão e do conhecimento, que premiasse a inteligência e a competência com o prestígio e as posições de comando, viram tudo reduzido ao mais volúvel dos valores: o valor do mercado”(2003, p. 107)

Para além de detalhes obviamente incabíveis (como ideais de utilitarismo e as reformas específicas defendidas), cabe ainda acrescentar o agravante de que a principal reforma defendida durante todo o período, a retomada do poder de escolha de seus dirigentes pelo povo, não parece ter passado em nenhum momento pela opinião ou até mesmo pelo debate da camada intelectual brasileira, que em sua maior parte assistiu às maquinações dessa recuperação da camada civil como quem assistiu as movimentações de bastidores das sucessões de generais no comando da ditadura. Até mesmo a principal movimentação popular do período, o movimento das Diretas Já, que, ainda que sua amplitude se devesse principalmente à disposição dos canais de mídia de propagar os eventos, teve enorme capacidade de reunir a população por uma causa política, ainda hoje passa pelo constrangimento de ser relembrado em tons que fazem pensar que foi um movimento bem sucedido, quando sua reivindicação específica, tão legítima que era capaz de reunir as mais díspares opiniões políticas, foi como que calmamente rechaçada pelo Congresso Nacional de maioria governista.
Diante de tal panorama, seria difícil imaginar que o caráter imediatamente político das iniciativas intelectuais brasileiras, artísticas ou não, não sofreria um duro golpe, e pouco surpreendem constatações de que a década de 80 foi uma década perdida: por mais terrível que seja viver em um contexto de opressão, um contexto de indiferença e de irrelevância pode parecer pior. É talvez nesse sentido que se pode ler opiniões como as de Roberto Schwarz:

 “a resposta intelectual à feição decepcionante da Abertura brasileira foi decepcionante por sua vez. Nada à altura do jogo de cena e dos acertos nos bastidores a que se dedicaram os conservadores dos campos autoritários e democrata. É como se a mudança nos termos da procuração social do pensamento houvesse lhe quebrado o ânimo crítico e abrangente” (1999, p. 175)

Maria Rita Kehl, ainda que falando mais especificamente sobre a tortura e reparações aos torturados, tece comentário semelhante sobre a atuação da crítica, ou ausência desta, diante da abertura: “foi espantosa a displicência, diria mesmo a frivolidade, que caracterizou a maior parte do ambiente crítico dos anos 1980: como se a ditadura por aqui tivesse terminado não com um estrondo, mas com um suspiro” (2010, p. 128). Em uma adaptação dos versos de Eliot para melhor descrever a situação: ditadura aqui de fato não terminou com um estrondo, e nem mesmo com um suspiro, uma vez que um suspiro não demora tanto para passar.
Ocorreu, de fato, com o fim do regime militar uma espécie de ruptura brutal de expectativas, em que por todo seu empenho, esforço e eventual sofrimento, não houve qualquer grande conquista ou até mesmo qualquer recompensa para a camada intelectual brasileira para além da recuperação do direito de expressão, e chamar isto de recompensa é não levar em consideração que se trata de algo que desde seu princípio não deveria ter sido arrancado. Diante de semelhante panorama, parece até natural certa decadência do empenho imediato nos esforços intelectuais contemporâneos, não somente nos literários: qual o valor de tanta revolta se este é o resultado demonstrável?
Há outro elemento neste novo contexto que é preciso ser levado em consideração e que m parece ser dotado de certa independência da feitura decepcionante da reaberturapolítica: trata-se do fato de que o tipo de atuação intelectual responsável haveria de sofrer uma reconfiguração durante o período da redemocratização. O espaço da negatividade, enormemente privilegiado durante a ditadura (uma vez que a definição-base do intelectual durante esse período era uma definição negativa, a de ser contra a ditadura), haveria de se tornar menos automático e imediatamente válido e consagrado durante a redemocratização, uma vez que se tratava de um período em que o Estado buscava (ainda que com enorme lentidão e cheio de incertezas) se reestruturar de forma a não perpetuar o sistema político injusto e violento que havia criado. Assim sendo, o espaço discursivo no Brasil não tinha mais como ser o mesmo: a forma de crítica agora precisava ser refeita, já que se tinha nessa movimentação política interna do Estado algo que se podia enxergar como sendo positivo, de progresso.
Se antes era possível pautar pela crítica profunda e rejeição total da situação política vigente, a realidade se tornava mais complicada com a abertura: seria naquele novo momento necessário repensar alguns critérios e, diante da atuação dos que estavam no poder e pretendiam operar a devolução do poder às mãos civis, tentar fazer uma crítica construtiva, prática realmente impensável durante os anos de chumbo. Não se faz uma crítica construtiva a uma ditadura como a dos anos Médici, uma vez que a crítica construtiva parte do princípio que o objeto criticado teria algo de bom e defensável e que apresentaria apenas algumas imperfeições. Em uma comparação livresca, faz-se uma crítica construtiva, por exemplo, a um romance de um escritor iniciante, pois o crítico enxerga naquela iniciativa artística algo intrinsecamente louvável, ainda que dotado de falhas; não se faz uma crítica construtiva ao Mein Kampf, pois o crítico não quer ver um aprimoramento de um livro como este.
A redemocratização impunha esta nova forma de atuação; a negação absoluta já não era tão pertinente já que se corria o risco constante do recrudescimento do governo e um retrocesso à ditadura que sequer se reconhecia declaradamente provisória. Tratava-se de um risco bastante real, uma vez que a dita “linha dura” parecia eternamente insatisfeita e paranoica com qualquer rumo redemocratizante dado ao país. A crítica construtiva, sendo mais matizada e detalhista e geralmente dotada de menos ênfase e entusiasmo, era ao mesmo tempo mais difícil de ser bem construída e para muitos menos cativante do que a acusação de dedo em riste e de punho golpeando tampo de mesa. Pouco surpreende, portanto, o diagnóstico de Schwarz que a mudança dos termos na procuração social do pensamento houvesse quebrado o ânimo de muitos críticos, e, a meu ver, é neste sentido que se pode ler a declaração de frustração do dramaturgo Flávio Rangel, que, ainda que falasse de um problema que a seu ver permeou toda a ditadura, tal situação certamente se tornava mais marcante diante de uma realidade de abertura:

“No governo Castelo Branco dizia-se que era preciso apoiar o Castelo porque existia um grupo à direita dele. No governo do Costa e Silva, porque havia um grupo à direita dele. No governo do Médici, que foi o que foi, ainda assim havia gente mais na linha dura, mais radical. No tempo do Geisel a mesma coisa e no tempo do Figueiredo, a mesma coisa”(HOLLANDA, 1980, p. 86)

A própria movimentação interna do regime em direção à abertura não cabia na concepção de realidade construída pelo dramaturgo durante aqueles anos de opressão, que na abertura de sua entrevista feita ao final de 1979 declara:

“Não acho que nós estejamos propriamente vivendo um momento de abertura. Tem uma “boutade” do Antônio Callado boa para essa situação: “Nós estamos na hora do recreio”. Às vezes eu chego a pensar que o governo aciona todas as aberturas, todas essas coisas, essa semi-anistia, exatamente para que as pessoas ponham a cabeça para fora para que eles possam cortá-las novamente” (1980, p. 86)

A paranoia fazia muito mais sentido no entendimento maniqueísta vigente do que aquilo que de fato se desenvolveu no cenário político do país, podendo ser acrescentada como mais uma expectativa frustrada da camada intelectual do país.
No campo específico da literatura, esta reestruturação do espaço discursivo em que a negatividade já não ocupava total primazia se faria sentir de forma mais aguda: os romances agora tinham como seu contexto contemporâneo não a opressão explícita do autoritarismo que, levando em consideração o aspecto estrutural da narrativa e não a possibilidade de represálias por parte do regime, é um assunto que se apresenta com maior clareza e até mesmo facilidade composicional do que a realidade dificultosa da abertura.Se narrativas de maneira geral frequentemente se estruturam ao redor de um conflito, criar esta narrativa se torna mais fácil uma vez que o conflito “mais importante” de ser narrado é a da situação política atual, e este conflito se torna mais fácil de se narrar uma vez que o antagonista já aparece imediatamente definido. Como exemplo claro disto, basta mencionarmos mais uma vez a inexistência do livro “A velhice do Padre Nando”, que Antonio Callado disse em entrevista de 1979 que estava escrevendo e que nunca foi publicado. Em Quarup, nos anos iniciais da ditadura, encontrava-se a narrativa facilmente, encontrava-se o conflito facilmente. No entanto, um romance que se posicionasse com muita ênfase de maneira contrária ao status quo da redemocratização correria o risco de possivelmente fragilizar o lento procedimento que estava sob constante ataque dos militares radicais que viam em Tancredo a ameaça da dominação comunista. A função do intelectual agora não era mais destruir (ainda que apenas dentro de suas obras literárias), e sim de buscar reconstruir, tarefa talvez menos corajosa mas certamente muito mais complexa. Durante a redemocratização, a missão do escritor se tornava mais difícil, e muitos dos livros publicados nos anos 80 parecem frutos de uma obrigação editorial no lugar de uma vontade de expressar alguma ideia ou contar alguma história que se julgou relevante.
Um exemplo de outro contexto, dando a ver que esta questão da liberdade e da opressão é possivelmente problema estrutural da literatura moderna e não uma questão estritamente conjuntural, é o de Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos. De expressão geralmente concisa, o romancista alagoano viu em suas experiências de prisioneiro político material suficiente para compor um livro de mais de 600 páginas, e em sua frieza chega a ser capaz de mencionar em certo momento de seu relato que “achara bom trancarem-me lá, darem-me assunto para um livro”(2008, p. 653) e que, no contexto literário brasileiro aquela situação de prisioneiro político podia até mesmo se mostrar proveitosa: “diversos escritores começavam a interessar-se por mim (...) talvez nunca me houvessem lido (...) proporcionava-me um êxito fácil, impossível na província e na liberdade” (2008, p.276). Oposfácio de Wander Melo Miranda serve de reforço a esta realidade literária brasileira: “[com a publicação póstuma de Memórias] pela primeira vez, o autor é sucesso de vendas, tendo dez mil exemplares esgotados em apenas quarenta e cinco dias” (2008, p. 681). O anseio por um relato certamente encontra maior vendagem do que a vontade de usufruir de uma obra de arte (ainda que politicamente carregada), e é possível de se imaginar que pelo menos parte da consagração hoje hegemônica de Graciliano foi auxiliada pela sua prisão injustificada e seu portentoso relato posterior.
No entanto, creio que o fato que melhor ilustra o difícil dilema que venho tentando delinear aqui é a própria incompletude do enorme livro de Graciliano, a inexistência do capítulo final em que o romancista tentaria expressar suas primeiras sensações de liberdade. A narração da opressão é mais fácil e é encarada como sendo dotada de bem maior importância do que o relato das dificuldades da vida em liberdade: para citar um breve exemplo de ordem técnica, certo detalhismo que pode fazer com que o texto fique cansativo pode ser encarado como valoroso registro e documentação de uma realidade escamoteada se o texto tem como objeto os sofrimentos do autoritarismo; na ficção, é imperícia narrativa.
Encontra-se uma síntese desse dilema em um dos bons momentos do romance Em Liberdade, de Silviano Santiago, em que o crítico e ficcionista mineiro faz seu Graciliano confessar:

“ao leitor culto interessam muito mais as experiências de um homem na cadeia do que as do mesmo homem em liberdade (...) meus melhores amigos querem que eu continue “lá dentro”, revivendo o período através das memórias.
Todos exigem – e nisso há unanimidade – que eu escreva as minhas memórias do cárcere. Ninguém me pede as anotações que estou fazendo dos meus tateios em liberdade”(1981,  p.128)

O sistema literário brasileiro haveria de lidar com essa dificultosa nova liberdade, e minha impressão é de que só nos anos mais recentes (de dez a quinze anos para cá) é que ele começaria a conseguir se reorganizar diante da realidade da ausência de um mal imediatamente discernível e de um assunto de importância automática. Esta demorada transição, no entanto, não se solidificaria sem seus detratores.

8.2 Consequências: literatura brasileira de ontem, literatura brasileira de hoje

Com todasestas questões de alteração no equilíbrio e nos parâmetros dos discursos da intelectualidade, talvez não venha mais como grande choque certo “saudosismo” que uma vez ou outra é possível detectar em algumas pessoas em relação ao período da ditadura militar que, por toda sua opressão e violência, oferecia um mundo de lugares aparentemente mais delineáveis e compreensíveis: o que pensar de um regime que tortura, faz sumir e assassina seus cidadãos de acordo com sua opinião política? O que pensar do intelectual que, conhecedor de todos esses fatos, ainda se pronuncia contra o regime (ainda que o regime geralmente persiga mais os que falam para mais do que seu próprio círculo)? Comparando-se com o cenário contemporâneo, em que já está há mais de dez anos no poder o partido que supostamente haveria de sanar todos os males do país e que acabou por continuar vários dos problemas políticos que pareciam muito abaixo de seu suposto nível de excelência, fica mais compreensível a saudade de uma realidade mais simples, ainda que mais terrível.A situação vivida era pior, mas pelo menos era possível enxergar com maiores certezas a realidade circundante.
Para além da eterna importância de se manter viva a memória das atrocidades e injustiças cometidas, me parece que é este saudosismo o fomentador oculto de parte das iniciativas intelectuais contemporâneas que buscam relembrar o período, e talvez isto explique certa manutenção de categorias simplificadoras e maniqueístas nestas recuperações que, uma vez que agora contamos com o importante distanciamento temporal, não são tão aceitáveis e produtivashoje. Ainda hoje se aplaude com certo entusiasmo descabido o posicionamento contemporâneo contra a ditadura, ea meu ver tal congratulação fazia sentido apenas quando se corria o risco da perseguição autoritária; hoje, expressões de semelhante entusiasmo a respeito desse assunto soam canhestras, uma vez que a alternativa, defender o regime, parece no mínimo fruto de um delírio ou se sustenta na frágil argumentação da luta de um comunismo que sequer havia sido defendido pelo presidente deposto.
Simplificações como esta parecemser dominantes também (ou talvez especialmente) no campo da cultura, em particular na literatura, em que se elogia qualquer posicionamento contrário à ditadura, mesmo sendo que hoje em que esta postura não só no meio intelectual é como uma unanimidade (ainda que, no caso como os da Rede Globo, soe por vezes um tanto cínica). O livro pode ser totalmente despido de desenvolvimento de personagem, estrutura de enredo, contundência de estilo e até profundidade de ideias; mas, se fala dos anos ditatoriais, vai ser elogiado por abordar “um assunto importante e dar seu depoimento” (ignorando por completo a incrível abundância destes depoimentos, e o fato não-insignificante de que a maioria deles hoje caiu no esquecimento por não trazerem nada de novo). Por conta desta importância imediatamente adquirida e reconhecida, romances de hoje que tratam deste período histórico frequentemente trazem em seu material de divulgação notas ostensivas e até meio exibicionistas afirmando que o livro fala da ditadura militar, citando datas e nomes específicos e buscando reconstituir meio diretamente a história recente por meio da literatura. Trata-se de uma das poucas unanimidades que nos resta no meio intelectual, e me parece que parte dessas iniciativas de cunho retrospectivo busca se aproveitar desta universalidade: como rápido exemplo dessa importância automática, posso citar a informação que a romancista e artista plástica Elvira Vigna me transmitiu que de todas suas obras literárias iniciais que estão em seu site disponíveis para serem baixadas, é o seu primeiro romance, o único de temática explicitamente ligada à ditadura militar, o recordista absoluto em número de acessos.
Ainda assim, a ditadura não é um assunto muito frequente na produção literária de hoje, em especial a que é escrita por autores que não viveram como jovens o período ditatorial. Por mais que o reflexo imediato seja o de reclamar da ausência deste assunto em livros dessa nova geração, mencionando mais uma vez a importância de se manter viva a memória dos absurdos autoritários, cabe questionar em que medida esta condenação geracional não cai dentro do velho clichê de gerações antigas reclamando de novas gerações pelo simples fato de seus padrões duramente estabelecidos (estabelecidos com base em uma realidade anterior, que em pelo menos alguns aspectos certamente não é a mesma da atual) não serem aceitos de imediato e de forma idêntica pelos mais novos. É também de grande importância levar em consideração o fato patente de que uma geração é, de uma forma ou de outra, produto da geração anterior: obviamente não se diz aqui que os autores novos são filhos biológicos dos antigos, e sim de que as novas obras se desenvolvem sob a sombra das obras anteriores, da mesma forma que ideologias dominantes, sejam as da camada intelectual ou do público mais geral, se transformam de acordo com os sucessos e fracassos anteriores, com a capacidade de uma geração mais antiga de se fazer ouvir e continuar propagando seus valores.
Não só é relativamente natural que uma geração fale de suas experiências de vida na sociedade brasileira em vez das experiências de vida da geração anterior (pois um autor nascido em 1970, hoje com quarenta e dois anos, teria vivido os anos autoritários apenas como criança), como o relativo desinteresse em relação a este período anterior possivelmente se deva à impossibilidade de se aderir às mesmas categorias vigentes na época. Para além da constatação feita no subcapítulo acima, a de que a obrigatoriedade de um empenho explícito sofreu forte baque com os decepcionantes desenvolvimentos da redemocratização, não são infreqüentes as expressões de perplexidade diante de uma literatura brasileira recente que parece não se conformar aos moldes historicamente consagrados.
O texto de Ricardo Lísias sobre a literatura brasileira contemporânea é, neste sentido, exemplar, com a exceção de que se trata de alguém da própria geração reclamando destes novos rumos da literatura brasileira. O tom de provocação e polemista do texto, visível de imediato a partir de seu subtítulo “de como os patetas sempre adoram o discurso do poder”, dificulta consideravelmente o debate das ideias, pois são tão numerosos e patentes os equívocos de interpretação que a desqualificação imediata e completa se torna muito tentadora. No entanto, a análise da crítica de Lísias se mostra produtiva na medida em que seu posicionamento não é o de uma minoria radicalista, e sim de uma fatia considerável e talvez até mesmo relativamente hegemônica da crítica literária brasileira, que compreensivelmente faz sua formação com base no cânone e se depara com uma atualidade que não corresponde com as categorias tão úteis no entendimento da tradição.
O texto de Lísias é uma coletânea de generalizações apressadas (em que se desqualifica um romance em duas ou três frases) e que busca impor um sistema de valores que se consagrou aos poucos na produção literária brasileira canônica e não parecem mais tão vigentes na produção mais atual. As cobranças artificiais e apriorísticas começam com a constatação de que “não existe nenhum romance de peso que analise a vida de caserna brasileira”(2010, p. 321), cobrança que se assemelha com a de jornalistas que sempre buscam o definitivo romance brasileiro sobre futebol, carnaval ou MPB, o qualquer assunto que supriria uma falta de ordem sociológica, no sentido mais limitado do termo.
A comparação contínua no texto de Lísias é, previsivelmente, com a literatura argentina, onde a constante se eleva a ponto de obsessão; é como se a tradição literária e experiência autoritária dos dois países se equivalessem simplesmente por serem países latino-americanos.Chega a ser um bordão ridicularizante no romance Duas praças, de autoria de Lísias, a fala de um acadêmico que repetidas vezes ressalta que as ditaduras latino-americanas são diferentes e devem ser analisadas caso a caso.  Embora fique claro que a repetição no romance mostra como a ponderação pode servir de desculpa para certa inércia, ainda assim não fica claro se o romancista/ crítico acredita que realidades históricas diferentes deveriam produzir visões de passado idênticas.
 E, ainda assim, dada a enorme (na verdade central) importância dada por Lísias ao elemento explicitamente político da literatura, é gritante o fato de que a comparação constante entre as duas literaturas não se estende no texto à comparação da situação de facto política dos dois países. Dado o aspecto mecânico do tipo de interpretação vigente no texto, a Argentina, tendo em sua literatura um questionamento mais constante “das instituições” (para usar o termo de abrangência genérica de Lísias, que não leva em consideração o fato da universidade em que profere a palestra, a USP, é também uma instituição) e tendo em sua sociedade um enraizamento maior da atividade literária, haveria de ter uma situação política atual em geral mais favorável que a brasileira, quando o que se constata, para além de maior ímpeto de lidar especificamente com o passado ditatorial (que foi muito mais truculento que o nosso), certamente não é o caso.
O crítico chega a afirmar, em certo momento, que “o primeiro discurso público a tratar a ditadura na Argentina de maneira enfática (...) foi o ficcional, e não, por exemplo, o jurídico”(2010, p. 327), estranhamente esquecendo, após mencionar célebres romances anti-ditatoriais, que o mesmo se deu no caso da literatura brasileira, que publicava romances contra o status quo durante a própria ditadura. O texto, em seu tom difamatório e inflamado, é capaz de justapor colocações como “esteticamente o texto militante ou engajado já foi superado”(2010, p. 323) e “o dia em que a ficção brasileira puder responder “não, os torturadores estão presos”, nossa literatura voltará a ser digna de artistas que, em sua época, desafiaram todo tipo de poder, como (...) Graciliano Ramos e Machado de Assis” (2010, p. 328) e idealismos verdadeiramente vergonhosos como:

“fica condenado o senhor Carlos Alberto Brilhante Ustra a XX anos de prisão pela morte de XXXX e XXXX”, mesmo que este discurso seja só um sonho, ou apenas ficção, a linguagem que ele instaura se fortalece. Eu, portanto, vou terminando meu texto dando voz de prisão a esse coronel Ustra”(2010, p. 327)

Para além de interpretações simplórias e esdrúxulas que, por exemplo, taxam de preconceituosa a forma fragmentária(erradamente colocado como caudatário das formas de Zero e A Festa, quando nenhum estudioso afirmaria que a fragmentação literária foi inventada por Brandão ou Angelo) do romanceEles eram muitos cavalos(2001),de Luiz Ruffato, por afirmar que (!) pobres não seriam pessoas incompletas e, implicitamente, que o foco no indivíduo é necessariamente uma adesão irrestrita ao capitalismo (como se o próprio capitalismo não oprimisse o indivíduo com suas demandas de consumismo e sua imposição de padrões homogeneizantes), há um problema fulcral no procedimento crítico de Lísias, fruto de um não entendimento da diferença da dinâmica entre a literatura canônica e a literatura contemporânea:seu foco naquilo que é ruim na produção literária contemporânea é patente a partir de que aquilo que ele considera positivo na produção fica relegado a uma brevíssima nota de pé de página no início do ensaio (curiosamente citando autores que não tem como tema explícito a ditadura militar). Todo período histórico terá na maioria de sua produção rastros de mediocridade, e tomar a média como padrão é ignorar que o procedimento de consagração literária tende a tomar a excelência como padrão. Acreditar que os anos de 1910 eram os anos de Lima Barreto na literatura brasileira é se esquecer de questões como o fato de que figuras como Coelho Netto eram muito mais célebres na época, entre outros problemas de percepção. Não havendo a referência do teste do tempo, o convívio com a literatura contemporânea sempre faz com que o leitor se depare com obras que, depois de lidas, se mostram indignas do tempo gasto com elas. É simplesmente o preço a se pagar por querer acompanhar a produção literária recente, qualquer que seja o contexto. Ainda que existam sim épocas de média melhor e outras de média menor, a pressa em se definir parâmetros específicos pode produzir erros interpretativos de difícil aproveitamento.
No entanto, os equívocos de Lísias não se restringem a este (importante) problema estrutural. Seu ímpeto crítico é radicalizador e simplificador (”todos sabemos que, com exceção dos muito cínicos, todo conservador detesta ser visto como tal”(323)), provavelmente muito influenciado pelo fato de estar realizando sua comunicação em um evento acadêmico sobre história política, em vez de ser um evento sobre literatura. Suas cobranças são de cunho explicitamente político, e só menciona questões de forma literária para fazer a crítica risível do romance de Ruffato. Não há qualquer citação de obra literária, e o leitor fica apenas com a promessa inicial do crítico de que elaborará sua análisemais detalhadamente em trabalhos futuros.
Dado o fato de que o crítico é também ficcionista publicado por grande editora, é impossível ao leitor que leva em consideração seu texto critico não procurar em sua ficção aquilo que ele constata como ausente, e de fato a questão política e histórica do autoritarismo aparecem de forma constante na ficção de Lísias, embora com resultado um tanto desigual.Seu romance Duas Praças(2006), premiado com o terceiro lugar do Prêmio Brasil Telecom, tem em sua história a procura de uma desaparecida da ditadura, e suas novelas de Anna O. e outras novelas(2007) também tematizam constantemente a questão do autoritarismo. Seu mais recente livro, O livro dos mandarins(2009), tem como protagonista um alto-executivo que sonha em uma viagem para a China e que idolatra Fernando Henrique Cardoso.
Há nos seus livros aquilo que talvez poderia ser classificado de “narrativa da idiotia”, não se tratando esta classificação de uma zombaria velada, uma vez que podemos encontrar esta forma em outras obras contemporâneas como O paraíso é bem bacana (2006), de André Sant’Anna e, de maneira diferente, Pornopopeia(2008), de Reinaldo Moraes. A narrativa da idiotia em Lísias pauta por repetições incessantes e certa ausência de desenvolvimento de consciência ou pensamento por parte dos personagens, que parecem autômatos discursivos vazios de interioridade. Em O livro dos Mandarins, este elemento parece ter atingido seu paroxismo, com quase todos os personagens nomeados de uma variante de Paulo (Paulson, Paul, Paula, etc.) e as repetições atingindo um grau que torna o romance dificilmente digerível. É explícito o ímpeto satírico do mundo dos altos negócios, tachado de idiota e simplório, e se tratando do motor principal da sociedade capitalista contemporânea, fica claro que o ficcionista atendeu os anseios do crítico: é o mundo que saiu das ditaduras militares, em que se operou a transição de um capitalismo incipiente a um capitalismo hegemônico, e o mundo idiota corresponde àquilo que pode ser chamado de uma forma propositadamente idiotizada.
As ditaduras figuram de forma mais proeminente nos textos anteriores de Lísias, reiteradamente (sendo possível entendê-la como um ponto obsessivo do autor), e creio que é possível tomar o conto “Diário de Viagem” como um exemplo da problemática inerente a esse tipo de literatura eminentemente política.
Narrado na primeira pessoa, a história começa com o protagonista no aeroporto de Amsterdã pagando dois euros para um mendigo para fotografá-lo sorrindo e se surpreende ao perceber que ele carrega um guia turístico de São Paulo em português. O conto vai desenvolvendo seu enredo de busca ao túmulo do pai (reiteradamente acompanhado do epíteto “o filho da puta”) em capítulos de um parágrafo, mais ou menos do tamanho de uma página. A idiotia do narrador é desenvolvida aos poucos, se dizendo entusiasta do xadrez e dos idiomas, mas fica clara no capítulo nove da narrativa, logo após falar de idiomas como o polonês e o holandês trabalhando por comparações macarrônicas(equivocamente traduzindo “Het begint met ambitie” por “aqui começa o encontro com a ambição”, por exemplo), acaba por resvalar em um divertido absurdo:

“Minha facilidade com as línguas fica evidente com o português. Mais que o espanhol, entendo-o bastante bem. As semelhanças, claro, continuam me ajudando muito: “polícia”, por exemplo, é “polícia”, com o acento no mesmo lugar, inclusive. Andando pelas ruas de São Paulo, certa vez, achei um interessante slogan em um cartaz de uma cadeia de fast-food: “Amo muito tudo isso”, “Amo” parece ser alguma conjugação do verbo “amar”. O “muito”, de novo, eu traduzo por semelhança: parece bem perto do inglês “much”. “Muito” deve ser, portanto, “muito”. Para o “tudo”, precisei de ajuda. Um rapaz, bastante prestativo por sinal, explicou-me que significa algo perto de “totalidade”. Uma frase forte, portanto. O “isso”, eu traduzo de novo por semelhança: parece-se bastante com o “ich” do alemão; aposto no “eu” para traduzi-lo. Não tenho dúvidas para a versão em português do slogan: “Eu amo muito tudo”.”(2007, p. 70)

O narrador posteriormente explicita que é criticado pelo seu conhecimento de idiomas, afirmando que não acredita na existência de falsos cognatos. O que se desenvolvia a princípio de forma sutil (ou talvez um pouco menos em tempos de Google Tradutor), é explicitado no capítulo absurdo de tradução português-português e é finalmente explicado ao leitor talvez incapaz de fazer a mais clara das conexões.
O narrador depois conta da sua ida a Santa Comba Dão visitar o túmulo de seu pai, o filho da puta, do qual tira uma foto, e seu retorno a Amsterdã para procurar o mendigo fotografado que tanto o intrigou no início da história. A página final do conto é uma pequena foto preto-e-branco de um túmulo de inscrição praticamente ilegível, que o leitor tende a entender como sendo o túmulo do pai do protagonista.
Felizmente, a edição do livro conta com um posfácio de Leyla Perrone-Moisés, em que entre elogios ao ficcionista acaba por revelar ao leitor que o lugar visitado pelo narrador do conto é onde está enterrado Salazar, e o túmulo fotografado, portanto, certamente é o do ditador.
O livro é uma coletânea de textos de Lísias, sendo este o único conto inédito. Portanto, esta edição é a única forma de acesso que se tem a essa foto que encerra a narrativa, não sendo possível alegar que a ilegibilidade[30] da foto se trata de um descuido de uma re-edição preguiçosa. Ao leitor que não chegou ainda ao posfácio, resta apenas continuar lendo o livro e seguir para o próximo conto.
Nesta situação, encontramo-nos diante de duas possibilidades: ou Lísias acredita que o lugar de enterro do ditador português é de conhecimento comum aos leitores de literatura brasileira contemporânea e a casa editorial achou melhor por deixar explicar num posfácio, ou o próprio autor sabia que se tratava de uma informação obscura e pediu que ela de alguma forma constasse de forma externa ao conto, para facilitar o entendimento adequado de sua narrativa. A leitura do conto é igualmente dividida: ou ela conta com esta informação obscura ao fim da história, ou o túmulo fotografado permanece desconhecido. Trata-se de uma situação binária, de sim ou não, de obscuridade ou esclarecimento.
Creio que é possível tomar este conto como uma espécie de metonímia do impasse da literatura de propósitos abertamente (ou primeiramente) políticos, que Lísias tanto reclama ser de pouca presença na literatura brasileira contemporânea: o fato de se tratar de um texto que ao mesmo tempo em que frequentemente resvala em obviedade, sentindo necessidade de se explicar em demasia (uma vez que, dado seu ímpeto político, quer transmitir sua mensagem ao maior número possível de pessoas), ou, na tentativa de soar mais rebuscado, acaba por cair em um obscurantismo que faz com que o texto só seja compreendido por especialistas no assunto discutido, sendo esta falta de abrangênciaum defeito político. Não se escreve um manifesto com linguagem difícil.
No caso do conto, tomando apenas o texto da narrativa em consideração e deixando de lado a decisão editorial de posteriormente explicar o ponto obscuro, temos sua compreensão restrita a pessoas que já são detentoras de conhecimento relativamente detalhista e até mesmo obscuro a respeito do autoritarismo recente de países latinos. O conto busca tratar com contundência de um assunto político, mas só o faz efetivamente para os leitores que muito provavelmente já partilham da posição política do autor, uma vez que o apoiador de ditaduras brasileiro dificilmente saberá o lugar do enterro de Salazar. Temos aqui o retorno da descrição de Flora Süssekind da Cassandra que faz suas denúncias somente diante do espelho.
A ambiguidade, na maioria das vezes, é riqueza literária e defeito político. O bom autor de literatura moderna é aquele que melhor apresenta a dificuldade dos impasses de seu tempo ou da “condição humana” (em toda a vagueza da expressão), e o melhor ator político é aquele que melhor convence da perfeição das soluções defendidas por ele e seus colegas. A obra literária que permite múltiplas interpretações tende a ser vista como uma boa obra literária: um discurso de um parlamentar em que o ouvinte não consegue ter certeza daquilo que é defendido é uma manobra cuidadosa de alguém que não quer se comprometer diante de uma postura ou outra.
 Não se trata aqui de defender uma noção de uma pureza da literatura diante da perfídia do político, uma vez que Lísias tem toda razão ao afirmar que toda literatura é política (ainda que implicitamente), e de fato muita literatura de altíssima qualidade foi feita tendo a política como um dos focos principais. No entanto, a mistura dos dois elementos se torna problemática se o elemento político se sobressai em relação ao composicional diante das diferentes categorias qualitativas que regem os dois discursos: a ambiguidade, como já se mencionou, ou até mesmo certa capacidade de produzir efeitos em sociedade. Um movimento político busca resultados sociais e imediatos, e com razão toma isto como um dos critérios para se definir como bem-sucedido ou não, quando uma obra literária, se é que nos dias de hoje lhe é possível afetar a sociedade, não teria como medir seu sucesso (imaginando ser possível medir o “sucesso” de um romance) por este critério, uma vez que seu grau de influência não se dá da mesma maneira. Para que fique mais claro, recupero a expressão nada sutil de Lísias e digo que não cabe à literatura dizer que os torturadores estão presos, pelo perigo de soar absurda ou ridícula.
Uma breve comparação com um caso exterior à literatura brasileira pode servir de esclarecimento. Um dos escritores mais consagrados da contemporaneidade é J.M. Coetzee, ganhador do premio Nobel de Literatura em 2003. Seu romance Desonra, que lhe rendeu seu segundo Man Booker Prize (sendo até aquele momento o único escritor a ganhar duas vezes o prêmio) foi eleito por pesquisa de 2005 feita com críticos[31] o melhor romance de língua inglesa dos últimos vinte e cinco anos. Sua leitura revela um panorama impressionante do impasse político vivido na África do Sul pós-apartheid, em que os problemas de uma sociedade que busca se re-estruturar sem o autoritarismo racista encontra expressão pessoal na vida e nos sofrimentos dos personagens. Um leitor que se entusiasma com a leitura desse romance está propenso a descobrir que o romancista também escreveu diversos ensaios a respeito de literatura e de suas diferentes conjunturas sociais (um deles, inclusive, sobre tortura, tendo sido utilizado nesta dissertação). O primeiro ímpeto é descrevê-lo como um autor empenhado, e sem dúvida é isto que tem em mente o próprio Ricardo Lísias, que elabora um resumo até competente da obra do sul-africano em uma revista sobre literatura: “Desonra sem dúvida reúne os grandes problemas de nosso tempo, condensando-os sob o manto do conflito” (Revista Entrelivros, número 27, página 57).
Lísias chega a mencionar a personagem Elizabeth Costello, alter ego recorrente de Coetzee, mas não faz menção do livro que tem o nome dela de título, possivelmente por encontrar no último texto do livro palavras que contrariam suas categorias qualitativas e suas expectativas a respeito do autor a princípio engajado. Colocada em uma alegoria bastante transparente, que em certo momento chega a explicitar sua origem kafkiana, a personagem-escritora é colocada diante dos portões e constantemente negada acesso ao outro lado. Para atravessar, é exigido dela uma declaração a respeito do que ela acredita, e a alter-ego de Coetzee responde “Eu sou uma escritora (...)não é minha profissão acreditar, apenas escrever” (2004, 194). Posteriormente, a personagem declara:

“Eu sou uma escritora, e o que escrevo é o que escuto. Eu sou uma secretária do invisível, uma de muitas secretárias pelos tempos. Este é o meu chamado: secretária de ditado. Não cabe a mim interrogar, julgar o que me é dado. Eu meramente escrevo as palavras e então as texto, testo sua sonoridade, para ter certeza que escutei corretamente. Secretária do invisível: não é minha própria frase, apresso-me a dizer. Eu a pego emprestado de um secretário de ordem maior, Czeslaw Milosz, um poeta, talvez conhecido a vocês, para quem foi ditado anos atrás” (2004, p. 199)

E, recuperando aqui a expressão enfática de Callado em suas palestras, ninguém diria que a África do Sul se equivale à Suíça, e mesmo assim não há revolução defendida por Coetzee: “Seus livros ensinam nada, pregam nada; eles meramente soletram, o mais claramente que podem, como pessoas viveram em certo momento e certo lugar”(2004, p. 207).
No entanto, para além do tom polemista e ímpeto simplificador do texto crítico de Lísias, é fato que a literatura brasileira não trabalha com grande frequência este passado recente; para além de acusações de alienação e da existência de um pacto entre o capital e a literatura contemporânea, é interessante tentar ver o que pode haver por trás desta ausência de interesse.
Este relativo silêncio a respeito da ditadura é apenas parte da ruptura maior que se constata na literatura brasileira como um todo, em que a nação, na produção literária contemporânea, aparece mais como uma fratura do que como um lar ou ainda uma meta comum. Até mesmo romances tidos como bastante conservadores, como os de Milton Hatoum, que supostamente seriam o tratamento literário que faltava à Região Norte (um pensamento literário tão simplista que faz pensar que decisões governamentais de divisões de estados haveriam de suscitar imediatamente novas vertentes da literatura brasileira), apresentam em leitura mais cuidadosa certa desconfiança diante da suposta capacidade de se dar uma voz a uma região inteira. O foco em imigrantes libaneses certamente não corresponde com a imagem comum (para não dizer estereotípica) majoritariamente indígena que se tem do Norte, e romances tradicionalmente regionalistas de uma forma ou de outra trabalham com o atendimento de expectativas, oferecendo novidades frequentemente restritas ao pontual, como em detalhes de exotismo individualista.O que dizer, então, de romances como Nove Noites(2003), de Bernardo Carvalho, em que partes do próprio país são tratadas como tão estrangeiras e diferentes quanto nações obscuras do interior da África ou do sudeste asiático? A impressão que se tem é que se alguém falar para muitos autores brasileiros contemporâneos de uma causa nacional por trás de sua escrita, o que se provocará é perplexidade, quando não algumas risadas irônicas.
O próprio Antonio Candido, em ensaio de 1953, isto é, pouco antes da publicação de seu Formação da Literatura Brasileira, constata um esboço desta força centrífuga de nossas letras. Após citar estatísticas favoráveis à disseminação de literatura, Candido não deixa de constatar que:

“este novo público, à medida que crescia, ia sendo rapidamente conquistado pelo grande desenvolvimento dos novos meios de comunicação. Viu-se então que no momento em que a literatura brasileira conseguia forjar uma certa tradição literária, criar um certo sistema expressivo que a ligava ao passado e abrir caminhos para o futuro- neste momento as tradições literárias começavam a não funcionar como estimulante. Com efeito, as formas escritas de expressão entravam em relativa crise, ante a concorrência de meios expressivos novos, ou novamente reequipados, para nós, - como o rádio, o cinema, o teatro atual, as histórias em quadrinhos. Antes que a consolidação da instrução permitisse consolidar a difusão da literatura literária (por assim dizer), estes veículos possibilitaram (...) que um número sempre maior de pessoas participasse de maneira mais fácil dessa quota de sonho e de emoção que garantia o prestígio tradicional do livro”(2010, 144-5)

Levando em consideração que, no tempo da escrita desse ensaio, ainda não havia se instalado o poderio estarrecedor do império da televisão, o pessimismo de Cândido decerto seria aumentado para um tom catastrófico e fatalista. A literatura perdeu a primazia que teve em nosso passado e que teria crescido com o aumento do número de leitores com a alfabetização maior: como exemplo, basta pensar na impossibilidade de enterros grandiosos de escritores como o país teve com a morte de Olavo Bilac ou Machado de Assis, e efeitos como esses não teriam como deixar de se refletir na consciência dos escritores, nos seus valores e na sua produção.
Arrisco afirmar que esta decadência do lugar social da literatura teve uma não-tão-breve pausa ou retrocesso diante de seu engrandecimento (já relatado nesse estudo) durante os anos da ditadura militar, por ter sido o discurso anti-autoritário por excelência(uma vez que tendia a circular com menos constrangimentos).No entanto, diante da realidade da redemocratização, do domínio de mercado e do contínuo fortalecimento da televisão (talvez relativizado um pouco nos anos mais recentes pela internet), creio que o processo de contornos esboçados por Candido se tornou algo inteiramente sólido, e diante da decepcionante irrelevância a qual foram historicamente relegados parte significativa dos esforços anti-autoritários dos anos 60 e 70 (uma vez que a ditadura se findou por dentro, e a democracia não foi reconquistada por qualquer iniciativa eminentemente intelectual), não serve de grande surpresa certa ausência do mesmo ímpeto engajado, historicamente consagrado em nossas letras, em nossa produção contemporânea.
Acompanho por algum tempo e com alguma regularidade entrevistas de autores recentes que de uma forma ou de outra ganharam destaque com seus livros de início de carreira, e das dezenas de nomes que surgem o único que não se afiliava à expressão de uma minoria social e que defendia convicto e abertamente a “relevância social” da literatura nos dias de hoje é Luiz Ruffato, sendo que muitos autores mais antigos (e mais consagrados) já parecem ter desistido desta noção. Lembro-me de uma definição clara de Cristovão Tezza, feita em bate-papo literário de feira de livros em Brasília: “a literatura era um império, e hoje é apenas um clube”.
Roberto Schwarz tenta abordar a questão do conteúdo:

“Há também o ponto de vista propriamente estético, interessante e difícil de formular. Outro dia, um amigo ficcionista e crítico me explicava que o âmbito formativo para ele já não tinha sentido. Os seus modelos literários vinham de toda parte: da França, dos Estados Unidos, da Argentina, a mesmo título que do Brasil.”(1999, p. 58)

Ainda que o crítico alivie a constatação, colocada em um texto que começa como elogio e termina soando como panegírico, “É natural que seja assim, e é bom que todos escolhamos as influências à nossa maneira individual e com liberdade, sem constrangimento coletivo” (1999, p. 58), seu pendor materialista e nacionalista acaba por se mostrar ao constatar que “esse sentimento de si e das coisas faz supor uma ordem de liberdade e de cidadania do mundo, e sobretudo uma sociedade mundial, que não existem” (1999, p. 58). Trata-se de uma constante desenvolvida com mais pertinência em seu texto “Nacional por Subtração”, de treze anos antes, onde afirma que, se o nacionalismo produz alguns limites e mitos, a alternativa do cosmopolitismo (midiático) abraçado sem restrições tampouco oferece uma solução mágica aos problemas: “os modernistasda mídia, mesmo tendo razão em suas críticas, fazem supor um mundo universalista que, este sim, não existe. Trata-se enfim de escolher entre o equívoco antigo [o nacionalismo totalizante] e o novo (...)”(2006, p. 34).Reformulada aqui mais especificamente no campo da literatura, perde um pouco de seu impacto, se considerarmos a já atestada por Candido insuficiência de nossa literatura para a satisfação e formação intelectual do “leitor médio” (ainda que esta figura pareça menos sólida hoje), insuficiência muito mais perceptível a quem se propõe se tornar escritor e contribuir a um campo em que se concorre pelo tempo de leitura com todos os clássicos mundiais.
Se olharmos para nossos grandes escritores, no entanto, não é preciso sequer recorrer a quaisquer categorias interpretativas mais originais do que a boa e velha influência: Graciliano Ramos por acaso não teria lido e absorvido Dostoievski? Não se vê Sterne em Machado de Assis, assim como todas suas referências abertas a Shakespeare? Seria possível ler Clarice Lispector sem que seja ao lado de Virginia Woolf? Não seria um exagero de um crítico por demais preocupado em rastrear acúmulos literários acreditar que uma participação individual em qualquer desenvolvimento de um sistema literário(nacionalista, pós-nacionalista ou supostamente intocado pelo nacionalismo) é percebida individualmente por um de seus agentes enquanto compõe sua própria obra?
A mera presença de autores brasileiros na listagem de leituras dos autores contemporâneos já configura uma distorção do cosmopolitismo platônico enfrentado por Schwarz e certamente promulgado por muitos, uma vez que, no cenário cultural internacional, somos nada menos que insignificantes, passíveis a sermos resumidos a zero ou a uma esporádica curiosidade de um leitor estrangeiropara seu estranhamento que encontra um Sterne ou uma Woolf em meio ao carnaval perpétuo que imagina ser o Brasil. A mera presença de Machado, Rosa, Ramos ou Lispector nas leituras dos autores brasileiros contemporâneos, na estatura que esses nomes tem em nosso cânone, já é em si uma forma de continuidade do sistema literário, unido não apenas pelo idioma como também pela sombra dessas obras consagradas que inexistem.
A continuidade não se dá mais pelo ímpeto do empenho, uma vez que contemporaneamente ele aparenta ser bem mais problemático do que aparentava em anos anteriores, mas falar em fim da literatura brasileira é desconsiderar o fato de que o autor brasileiro contemporâneo convive (à sua revelia) com outros autores brasileiros contemporâneos (que só têm existência cultural em nosso país), e que suas obras são lidas ao lado de e em vez de outras obras desses outros autores. A leitura de um livro ilumina por contraste ou afinidade a leitura de outro (como, por exemplo, a “narrativa da idiotia” que descreve Sant’Anna e Lísias). Os breves esboços feitos no já longínquo capítulo a respeito de sistema literário continuam válidos na literatura de hoje, e seu conteúdo continuamente nacionalista no passado é apenas um dado conjuntural que soaria desajustado em uma realidade em que esses conceitos parecem necessitar de serem retrabalhados. É da ausência desse repensar de categorias que a literatura brasileira foi incapaz de manter a energia que teve durante a ditadura militar, e se os anos recentes parecem mostrar uma produtividade maior que não cabe nas categorias previamente estabelecidas, possivelmente seria valoroso tomar os critérios interpretativos e valorativos do passado com uma flexibilidade que reconheça o aspecto conjuntural de suas aparições e desenvolvimentos.
CONCLUSÃO

É importante hoje examinar com mais profundidade quais são nossas heranças culturais e políticas da ditadura militar. Diante da quase-unanimidade da opinião condenatória em relação a este período, é fácil acreditar que se alcançou uma nova etapa de consciência crítica no Brasil, que superamos os erros do passado e que temos na nossa frente um futuro livre dos problemas que por mais de vinte anos assolaram o país. Esta opinião condenatória, no entanto, frequentemente não tem como base uma reflexão e uma análise histórica do que havia por trás e no fundamento desses anos autoritários, e geralmente se contenta com simplificações maniqueístas que se resumem a frases de efeito e proposições vagas. Desta maneira, a ditadura representava sempre tudo que era ruim (e negando-se ou omitindo-se até o desenvolvimento econômico do período, abstendo-se da discussão dos problemas do sistema capitalista até hoje vigente) e tudo que era contra a ditadura representava sempre tudo que era bom, independente das enormes variações de posição dentro da possibilidade contestatória.
Como já se falou, nosso período ditatorial se transformou no “centro de certeza” do pensamento brasileiro, ignorando-se completamente a complexidade do assunto, as questões subjacentes e transformando tudo em uma categoria dicotômica de fácil apreensão e utilidade.  Uma das consequências mais rapidamente identificáveis deste maniqueísmo é como no Brasil a palavra “ditadura” se transformou num qualificativo genérico para lidar com qualquer coisa que não se aprova, como cristãos radicais defendem que hoje vivemos em uma “ditadura gay” (ou, em seu termo mais abrangente, “ditadura do politicamente correto”, mostrando como o reacionarismo pode também ser uma rebeldia) ou como desenvolvimentistas ao ver seus projetos questionados por ambientalistas reclamam de uma “ditadura ecológica”. A simplificação absoluta do entendimento banalizou a palavra e falseia a realidade vivida pelo país.
Foi no intuito de rechaçar estas simplificações, correntes no período de então e correntes nos estudos contemporâneos, que se buscou desenvolver esse estudo. Abel Silva, em entrevista de 1979 já citada neste trabalho feita por Heloísa Buarque de Hollanda, expressa bem a forma dada a superlativos descabidos como muitos enxergaram e ainda enxergam o dilema político vivido na época:

“foi um momento histórico completamente original do Brasil ,porque foi um momento em que não só as classes economicamente inferiores sofreram o tacão do poder, mas também a classe média sofreu. Foi uma guerra civil, que dividiu a nossa história em antes e depois dela. Raras são as famílias burguesas que não tiveram filhos presos, malucos, exilados, paranóicos, drogados, então houve um envolvimento geral, qualquer mão de classe média brasileira hoje é de uma certa maneira politizada (...) Então os escritores como parte dessa sociedade entraram na dança. O barco afundou para todos. Foi o maior trauma coletivo brasileiro, foi a nossa guerra civil espanhola, nossa Guerra do Vietnã (...)” (2004, p. 131-2)

Para ver o absurdo da comparação da ditadura militar brasileira com as Guerras do Vietnã e a Guerra Civil espanhola, basta tomar como critério meio grosseiro uma contagem terrível, a do número de mortos:o artigo “Militares e anistia no Brasil”, de Paulo Ribeiro da Cunha, escrito para o evento da USP sobre ditadura militar, contabiliza “pelo menos 360 mortos”(2010, p.29), o que, ainda sendo 360 a mais do que devemos tomar por tolerável, não se compara às cifras de centenas de milhares de cadáveres do conflito ibérico ou o do sudeste asiático, em que certamente seria possível encontrar períodos de poucas horas de duração em que a quantia brasileira é largamente superada.
Abel Silva continua a opinar, adentrando no campo específico da cultura brasileira do período, expressando com bastante clareza seus critérios de avaliação

“Nesse período negro surgiu também uma “crítica”, um exercício masturbatório de intelectuais colonizados que teve na revista Vozes seu veículo principal. Ficava um cara falando dos quadrinhos, outro descobria que “a poesia agora está na música popular”, outro analisava Capitu pelos princípios da antipsiquiatria, aquela beleza.” (2004, p. 132).

É este tipo de entendimento que busco rechaçar com este estudo, o entendimento que prefere certezas perfeitamente delineadas ao confronto direto com a complexa e contraditória realidade da disputa entre discursos e poderes da sociedade, que percebe que naquela época o autoritarismo aparece como característica intrínseca do discurso e da ideologia por trás dos atos políticos e que seu grau muito maior de terribilidade quando aparece por quem exerce o poder não exime desta pecha os críticos da ditadura que operam por critérios semelhantes.
A recusa do maniqueísmo, no entanto, não se estende a uma expressão de indiferença ou de falta de posicionamento dentro daquele contexto, de uma tentativa de apagar ou de “relativizar”, e sim de buscar uma medida mais exata daquilo que de fato ocorreu, sem que se busque o alinhamento com linhas políticas que, na verdade, hoje inexistem no país e no mundo. Não vivemos mais na bipolaridade da guerra fria, e os xingamentos de “burguês” ou “comunista” hoje não deixam de soar engraçados ou irônicos pelo seu anacronismo dentro de um mundo do triunfo inquebrantável do capitalismo.
A rejeição do binarismo absoluto não implica que se identifique com os absurdos do autoritarismo estatal, sua violência e sua estupidez; apenas indica a insuficiência da mera identificação destes aspectos, patentes para qualquer intérprete que não padeça de um caso grave de desonestidade intelectual, capaz de rejeitar que o céu sem nuvens ao meio dia é azul e que as coisas no planeta Terra caem para baixo.
O intuito principal deste trabalho foi o de tentar delinear melhor os problemas estruturais e intrínsecos (possivelmente inescapáveis) de uma produção artística em contexto de um autoritarismo de país subdesenvolvido. Para tal, acreditei ser produtivo recuperar o passado do sistema literário brasileiro, identificando o ímpeto anti-ditadura como sendo uma continuação de uma espécie de obrigatoriedade de engajamento político do intelectual brasileiro em seu histórico de atuação dentro do sistema literário. Buscando manter a devida tensão na recuperação deste frequentemente louvado elemento, procurei elaborar mais especificamente a situação de Machado de Assis dentro desse sistema que, ao mesmo tempo que o colocou como seu escritor principal, teve dificuldades de, com seus critérios de politização imediatista, apreender sua verve crítica sutil. De Lima Barreto a Mario de Andrade e depois passando pelos engajados anos 30 via Jorge Amado, Machado não se mostrava figura exemplar aos intelectuais que por meio de sua obra buscavam mudar o país.Assim sendo, pouco surpreende a opinião expressada por Callado de sua decepção da grandeza literária de Machado não ter em sua atuação social correspondência com aquilo que o romancista engajado esperava de um grande escritor. Nesta reconstituição, pautei mais por enfatizar este lado problemático, frequentemente escamoteado, do que por uma tentativa de dar a ver a grandeza da posição do autor em nosso cânone, tomando esta grandeza como ponto pacífico.
A cultura dos anos ditatoriais se estruturou toda ao redor da própria ditadura e, como não havia de ser diferente, os estudos a respeito desse período sempre destacam e enfatizam este aspecto. No entanto, o marasmo dos anos posteriores à ditadura vem a mostrar o quão frágil era aquela vitalidade literária duramente reconquistada, pois ela quase toda se definia pela negatividade, pelo “ser contra” alguma coisa. A ditadura se tornara o chão comum de quase todo o pensamento artístico da época. Pouco espanta, portanto, que o vazio cultural, lugar-comum interpretativo dos anos 70 para lidar com sua insatisfação com a situação contemporânea, tenha de fato se instalado nos anos 80, e também pouco surpreende o fato de que os estudos a respeito dos anos 80 não chegam nem perto do número de estudos a respeito da ditadura militar, uma vez que não se encontra categorias interpretativas e chãos comuns com tanta facilidade na hora de lidar com a dificultosa redemocratização brasileira.
A escolha dos romances a serem analisados com mais afinco neste estudo pautou especificamente pela capacidade da leitura deles esclarecer os pontos desenvolvidos na análise de nosso sistema literário. Ainda que Confissões de Ralfo seja um romance de qualidade apenas boa (enquanto Reflexos do Baile, por exemplo, é um romance excelente e não foi analisado), creio que sua postura de não se deixar prender exclusivamente pelo contexto circundante e abordar questões que não se restringem (e às vezes são conectadas de forma apenas ligeira) ao autoritarismo vigente é de uma riqueza surpreendente dentro de nosso sistema viciado em protesto e negatividade conjuntural. Creio que foi esta independência que permitiu que Sant’Anna continuasse a se desenvolver literariamente, e foi esta dependência que fez com que Ivan Angelo não conseguisse evoluir para algo além da descrição de “o autor de A Festa”. Ainda que o livro de Angelo seja claramente superior, sua dependência negativa em relação ao regime que criticava serve de eloquente metonímia para toda a cultura brasileira do período ditatorial. No intuito de resumir para fins de conclusão, podemos acrescentar que na mesma medida que A Festa é romance-paradigma, a decadência da carreira de Ângelo é também uma decadência-paradigma.
Ralfo pode ser errático, seus delírios podem ser de qualidade bastante desigual, algumas de suas propostas estéticas e comentários podem soar descabidos (sendo cabível pensar no personagem como algo muito mais que uma encenação deliberadamente exagerada do pensamento do autor), mas sua relativa independência em meio a contínua obsessão anti-ditadura permitiu que Sant’Anna pudesse compor livros como Um Romance de Geração, Concerto do João Gilberto No Rio de Janeiro (1982)¸ Senhorita Simpson (1989), O Monstro(1994) e Um Crime Delicado(1997). A obra-prima de Ângelo, em todo seu maior refinamento estético melhor elaborado, parece ter fechado a porta para obras futuras.
A análise aqui feita dos dois romances buscou se pautar exclusivamente pelo objetivo de elucidar nos dois objetos estéticos aquilo que se relacionava mais diretamente com o problema delineado do sistema literário brasileiro como um todo naquele momento: são diversos os outros pontos dos dois romances passíveis de serem comparados proveitosamente (a figura do autor presente no fim dos livros, por exemplo), mas na medida em que o horizonte da problemática descrita nos capítulos anteriores se afastava, achei melhor por não me alongar excessivamente em uma dissertação que já estava acima do tamanho padrão. A maioria dos trabalhos acadêmicos busca colocar em primazia o objeto estético e trabalhar o contexto de forma secundária, ou condicionada à análise, e a meu ver trata-se de uma medida boa de se ter como padrão; no entanto, diante do problema  que escolhi para analisar, creio que a inversão da ordem se mostrou mais proveitosa. A problemática delineada não é uma questão específica aos romances escolhidos, e sim algo especialmente visível neles.
Na parte final do estudo, busquei analisar brevemente a situação contemporânea do sistema literário brasileiro, aparentemente desconectado com as realidades vividas no passado. Como espero ter conseguido apontar, creio que parte desta aparente desconexão se deu justamente por conta do ímpeto anti-ditadura contínuo e aparentemente fracassado da cultura brasileira: por mais que todos os artistas tivessem sido contra o regime militar por praticamente toda sua duração, o retorno do poder aos civis parece ter se desenrolado de forma totalmente independente das demoradas e perigosas discussões a respeito de democracia que se arriscava em lugares públicos e particulares. O processoda transferência do poder permaneceu tão distante quanto o jogo sucessório entre generais.
Outro elemento de influência nesta descontinuidade foi a perda de espaço de privilégiode circulação menos restringida do discurso literário, uma vez que a censura diminuía sua vigília aos jornais e universidades e a política agora poderia ser discutida nos canais em que lhe são mais propícios e típicos. Diante dessa nova conjuntura, o escritor não poderia deixar de se dar conta da realidade literária brasileira: baixíssimas tiragens, difícil ou impossívelsobrevivência por vendagem de livros e inserção social praticamente nula.
Por isto acredito que a aplicação de categorias interpretativas historicamente consagradas na literatura brasileira pode ser muito contraproducente, uma vez que a conjuntura se mostra inteiramente outra dos autores dotados de missão descritos por Candido, Sevcenko e Bueno, nos períodos literários anteriores, e por Dalcastagnè, Pellegrini, Franco, Hollanda, Bastos e, negativamente, Süssekind, no caso da literatura sob ditadura.Se Candido aponta em seu grande estudo que o ímpeto do empenho foi frequentemente obstáculo para a feitura de grandes obras literárias em nosso passado, em outro ensaio contemporâneo à publicação do Formação que “A verdadeira poesia só se realiza, no Brasil, quando sentimos  na sua mensagem uma certa presença dos homens, das coisas, dos lugares do país”(2010, 136). Como que esta “certa presença” se configura na obra tem sido frequentemente entendida e cobrada de forma bastante imediatista por parte significativa de nossa produção e recepção literária, e estas cobranças parecem desprovidas de produtividade se suscitam apenas romances que fazem denúncias somente a leitores que já compactuam com a visão política do autor.
Tenho a expectativa que este estudo tenha servido para delinear este problema muito pouco discutido e elaborar um início de análise das razões na base desta descontinuidade de nosso sistema literário. Explicitar ao fim de trabalhos intelectuais que o trabalho não busca ser exaustivo e que se esperaque sirva para fomentar futuras discussões a respeito do assunto se tornou algo de praxe, tão de praxe que a colocação acaba soando meio obrigatória e, assim sendo, vazia. Parte significativa da extensão exagerada deste estudo (considerando os parâmetros correntes de dissertações de mestrado) é fruto do intuito de abarcar os elementos principais que vi como atuantes neste problema complexo, profundo e pouco debatido. Por consequência, dado o grande número de elementos levados em consideração, parece inevitável certa desigualdade no desenvolvimento dos diferentes pontos suscitados, e se alguma parte acabou por parecer insatisfatoriamente discutida, tenho a esperança de que a retomada aqui feita deste problema da identificação direta do discurso literário com seus antagonistas, já percebido em sua época e esquecido desde então, possa suscitar elaborações futuras em outros trabalhos, de minha autoria ou de possíveis futuros interlocutores.
Uma das piores consequências de longo prazo de todos esses problemas da dependência do engajamento, a meu ver é certa reação negativa quase instintiva ao engajamento. Em depoimento, a cineasta Ana Carolina afirma “quando eu entrei para a faculdade (...)para tudo, você precisava ser engajado. Era um grande sacrifício, inclusive, escolher onde se engajar para manter o status intelectual. Hoje em dia é o contrário, quanto mais engajado, pior” (1980, p. 169-170). Passa-se de um erro por exagero para outro diametralmente oposto. O cinismo percebido em certo depoimento a Marcelo Ridenti, que “Um dos integrantes [de um grupo carioca de leitura de Marx] costumava dizer “quem não tem Cadillac pega mulher com o Manifesto Comunista”” (2000, p. 48) parece estar amplamente difundido nos dias de hoje, e a ideia de uma vontade de agir diante da injustiça social do mundo parece tingida de invalidade pelo simples fato de ser uma questão antiga.
Este novo desenvolvimento não se deu pela discussão e argumentação dos posicionamentos, e sim pela adesão de modismos ora vigentes ora decadentes no sistema intelectual: antes o engajamento era moda, hoje é démodé.  Esvazia-se o conteúdo, adota-se aparências e troca-se os rótulos de acordo com a conveniência do momento, reduzindo o trabalho intelectual a uma espécie de pose.
Tenho a esperança que o dificultoso reconhecimento das armadilhas de simplificação e identificação pelo negativo delineadas por este estudo possa ser útil em outros contextos de críticaà produção artística e sua conjugação com a realidade circundante, um entendimento que deixe de confundir extremismos e exageros com coerência.O problema do dualismo, em seu abstrato, é muito mais abrangente do que tudo que foi delineado nessas páginas, e, no fundo, coloca em questão o próprio lugar do discurso literário em tempos modernos, sua capacidade grande expressividade de resistência contra autoritarismos e sua aparente insuficiência ou irrelevância em outros contextos de problemas menos óbvios. Não foi sem surpresa que, entre as leituras diversas do curso de Mestrado, encontrei em Mímesis, de Erich Auerbach, em um capítulo sobre o teatro do romantismo alemão do século XVIII umaanálise de uma peça de Schiller em que “o tema maior da tragédia de classe média – a sedução de uma vítima inocente – está ligado ao fenômeno do absolutismo em um Estado mesquinho” (2003, p. 438) e que Auerbach faz uma interpretação que decerto é terrivelmente cabível a parte considerável do ativismo literário artificialmente uno, ao mesmo tempo fortalecido e enfraquecido pelo contexto ditatorial, que se consagrou na camada intelectual e anti-autoritária no Brasil: “só podemos lamentar que Schiller sabia de maneira muito mais clara aquilo contra o qual lutava do que aquilo pelo qual ele lutava” (2003, p. 440).
Tratando-se de um problema que afeta autores do porte de Schiller, o que dizer do escritor médio de um sistema literário insuficiente como o nosso? Não cabe aqui condenar os autores por terem se submetido a este processo de identificação negativa e dependência implícita, uma vez que parece ter sido inevitável dado o nosso histórico e aquele momento crítico, mas partir desta constatação de inevitabilidade para um não-reconhecimento do problema é uma postura improdutiva, que este estudo certamente rechaça.
Os caminhos a serem seguidos pela literatura brasileira na contemporaneidade não são facilmente discerníveis, sendo talvez questionável a ideia de que é função da crítica ditar qual futuro deverá ser traçado. Parece incontroverso, no entanto, que cabe a ela expressar sua visão sobre o que foi feito e o que está sendo feito, e creio que um conhecimento mais equilibrado deste passado recente é fundamental para uma crítica que busca ir além do impressionismo e das opiniões que não se discutem.



[1]Um resumo e leitura excelentes deste desenvolvimento em relação à literatura é feito por Tânia Pellegrini, em seus textos “Os caminhos da cidade” e “Ainda a censura...”(2008, p. 15-36), no livro Despropósitos.
[2] O achado é de Paulo de Toledo, que menciona elementos políticos em diversos outros trechos do livro no seu texto que faz parte do apêndice à nova edição do livro de Leminski.
[3] Esta síntese em grande parte vem do texto “O ano em que a literatura brasileira transbordou”, do escritor e jornalista Sérgio Rodrigues, na página da internet:
http://veja.abril.com.br/blog/todoprosa/posts/o-ano-em-que-a-literatura-transbordou/
[4]Seu primeiro livro, em edição de circulação muito limitada, é de 1979; no entanto, o autor só conseguiu alguma atenção do público e da crítica com a publicação de Trapo, de 1988.
[5] Excetuando-se talvez apenas as pouquíssimas obras de experimentalismo polilíngue, como Finnegan’s Wake e outros poucos semelhantes. Ainda assim, se há de se escolher um idioma para se classificar Finnegan’s Wake, a resposta-padrão seria inglês, outras respostas possíveis não haveriam de ser outros idiomas existentes.
[6] Pois cada uma das exceções não encontra dificuldades em ter sistemas literários que os reivindiquem: Nabokov e Henry James foram editados pela coleção Library ofAmerica da Biblioteca do Congresso americano, talvez assim em suas consciências definindo uma vez por todas “a quem pertence” esses escritores.
[7]Para mais detalhes sobre a extensão da artificialidade dos idiomas nacionais, ver Hobsbawm, Nações e Nacionalismo desde 1780,  p. 69-78 e 134-143.
[8]Pude presenciar em uma palestra de um canadense sobre a canção de Quebec um aluno perguntando ao palestrante se tinha havido protestos ou reclamações do público ouvinte ou da crítica em relação ao uso da guitarra, se o início de seu uso foi interpretado como uma ofensa a uma pureza da canção quebequense. O palestrante disse que não entendeu qual exatamente seria esse problema.
[9] Um relato mais pormenorizado deste ideário romântico é feito com análise de grande precisão nos capítulo 5 do livro de Rouanet.
[10]http://www.ufrgs.br/cdrom/assis/massis.pdf
[11] Dicotomia é bem expressada por Maria Helena Rouanet, ao falar da recepção brasileira de obras intelectuais de estrangeiros a respeito do Brasil:”os próprios viajantes vão passar a ser julgados dentro dos parâmetros por eles mesmos fornecidos. É assim que se vêem esses indivíduos divididos em dois segmentos distintos: os amigos e os detratores. Os primeiros confirmavam as expectativas positivas estabelecidas pelos seus antecessores, ao passo que os últimos ousavam desmenti-las ou contradizê-las” (1991, p. 121-122)
[12] De fato um tanto forçadas, e que fazem lembrar o brilhante e conciso comentário de Graciliano Ramos em que o autor critica a onda de consagração irrestrita à figura de Machado de Assis perto do centenário de seu nascimento, em que a comparação com o mestre se iguala a elogio de excelência genérico que desconsidera as características específicas e profundas da obra machadiana. Ramos acusa certa instrumentalização e falseamento da grandeza do autor no intuito do coletivo de gerar ídolos: “se a mania nacionalista não houvesse aparecido, estaríamos livres da praga machadiana” (1979, p. 110).
[13] É importante constatar que o texto de Andrade é constituído também de vários elogios à obra de Machado, como, por exemplo “Branco, branco, ariano de uma alvura impenitente, Machado de Assis correu um perigo vasto. Mas com seu gênio alcançou a mais assombrosa vitória; e, em vez de soçobrar no ridículo, na macaqueação, no tradicionalismo falso, conseguiu que essa brancura não se tornasse alvar”(1993, p. 66). Percebe-se que o elogio aparece como ressalva de excelência diante da escolha feita por Machado de critérios que são, no entender do modernista, equivocados. Ainda assim, é importante ressaltar que minha utilização das leituras de Mario pauta por aproveitar que é especificamente útil na construção do meu argumento maior deste estudo, e não por um intuito de uma fidelidade ao equilíbrio de julgamentos (que vão em várias direções) feitos pelo modernista.
[14] A recuperação foi feita por Antonio Prata, em introdução a uma coletânea de crônicas (também meio surrealistas) de Campos de Carvalho, publicada em 2006. Em sequência, Prata também recupera crítica de Glauber Rocha, publicada no Pasquim, que tacha o autor de “alienado”. Não creio que deva ser tomado como coincidência que Campos de Carvalho publicou seu último romance em 1964, uma vez que seus jogos de loucura (que certamente não eram ingênuos ou alienados) não se encaixavam nas expectativas engajadas de então.
[15]Não tão transparente quanto acredita Flora Süssekind, que diz que “tal incidente serve de representação literária para o golpe de 1964. Seus responsáveis, mortos redivivos como os de Antares, comandariam o destino do país. Como Antígona, Érico Veríssimo sugere que sejam enterrados. Do contrário não se teria descanso. Esta é a moral do romance. Para o leitor, poucas dificuldades” (2002, p. 102-103).” Não se trata de uma interpretação válida, uma vez que equiparar os mortos ressurretos aos dirigentes deixa de levar em consideração que os mortos, no romance, são os heróis, uma vez que são eles que expõem a hipocrisia e a corrupção da sociedade que acabaram de abandonar, das mais diversas classes sociais de onde se originam. Os poderosos, em Antares, são os que gostariam que eles fossem enterrados novamente.
[16] Osman Lins depois elabora, destoando do senso comum da época, afirmando que a censura está longe de ser o principal problema do intelectual brasileiro: “[no Brasil] nossa liberdade é desgastada e anulada pelo silêncio que nos cerca, pelas exaustivas dificuldades com que nos defrontamos a fim de realizar dignamente nossa obra. Mais eficaz, em alguns casos, que a Censura, mais anuladora que a prisão e distanciando-o de seu país com o peso de um degredo, age em torno do escritor brasileiro, impedindo o desenvolvimento de suas faculdades, a realização de seus planos e restringindo ao mínimo a ressonância do que escreve e publica, uma indiferença que é nossa morte.”(1969,238)
[17] Em crítica recuperada por Süssekind feita por Roberto Pompeu de Toledo ao romance-testemnho de Alita Sá Rego, percebe-se bem este problema: “Ao longo das 158 páginas do seu livro, não há um único personagem que adquira vida própria, além dela mesma. Nenhum de seus namorados, nenhum dos amigos, nem mesmo os filhos merecem uma descrição mais cuidadosa – parecem fantasmas a voltear e, frequentemente, apoquentar a vida da autora”(2004, p. 95)
[18] Entre roteiristas de cinema de Hollywood este erro é conhecido como “As youknow, bob”, em que, por exemplo, dois presidiários tem como começo de diálogo uma fala artificial do tipo “como você sabe, Beto, nós estamos aqui no presídio de segurança máxima por ter assaltado aquele banco”, etc: um personagem fala a um segundo um fato que o segundo já sabe (fracamente disfarçado pelo “como você sabe”) já que o verdadeiro destinatário daquela informação é quem está desfrutando a obra.
[19]SUZUKI JR, Matinas; STYCER, Maurício. Antônio Callado chega aos 80 e revê obra.Folha de S. Paulo, 26 jan. 1997. Acessado pelo link http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/1/26/brasil/14.html
[20] A secretária, em outra conversa, o espezinha: “Qualé, pô. Choradeira. Sabe o quê? Vocês se acham uns heróis. (...) vocês olham assim pro passado, pra barra que passaram e falam: porra! E acham que pra gente é tudo moleza. Eu acho vocês todos é muito pretensiosos, tá sabendo? É. Vocês tão sempre cheios de razão. É a última geração que teve razão. Toda hora cagando regra: eu não falei que o mundo assim ia virar uma bosta? (...) Eu não falei que o milagre não ia dar certo? Pô, cara, vocês não cansam não?”(1986, p.154).
[21] Simetricamente, o atentado desastrado do Riocentro, no Rio de Janeiro, “divide e enfraquece o governo, decide a saída do ministro Golbery e inviabiliza o projeto presidencial da linha dura”(1998, p. 35).
[22] Como busquei apontar a algumas páginas atrás a respeito do lado econômico, ainda que seja frequentemente tido como centro da ditadura, havia discordâncias significativas dentro do regime, como entre o mais poderoso dos generais-presidente, Geisel, e figura-central econômica do início da ditadura, Roberto Campos.
[23] “[Fugindo da União Soviética] Eu ganhei minha liberdade; mas que eu não me esqueça que eu permaneço no risco diário de perdê-la mais uma vez. Pois no Oeste também se tem a experiência da pressão à conformidade – a se conformar, isto é, com um sistema que é o oposto daquele que eu escapei. A diferença  é que no Oeste um pode resistir a tal pressão sem ser considerado culpado de um pecado mortal” (1990, p. xiii)
[24] Que demonstra um entendimento bastante corrente, mas que não leva em consideração o contexto histórico da obra do italiano, abraçando de forma total a interpretação que cunhou o termo “maquiavélico” para descrever algo maléfico e manipulador. Entretanto, sendo o romance um gênero textual de circulação supostamente abrangente (não sendo a princípio necessário ser um especialista ou um intelectual para se ler um romance), cabe perguntar se uma citação de Maquiavel que não caísse no sensacionalismo que se cercou de seu nome no entendimento comum não daria margens a desleituras de um romance.
[25] Esta leitura das epígrafes parte da 2ª edição do livro, de 1976. A 12ª edição, revisada, de 2007, muda a ordem das epígrafes, passando os versos de Drummond de 3ª para 1ª citação. Como interessa mais a este estudo pensar na obra em seu contexto e não em seu status de monumento cultural e intocável na posteridade, optei pela utilização das edições que de fato circularam no contexto cultural anti-autoritário.
[26] A história se assemelha muito ao 13º mini-conto da série “Romeu e Julieta” de Sérgio Sant’Anna publicado em 1973 em Notas de Manfredo Rangel, Reporter, tendo, em vez da concisão expressiva, o desenvolvimento psicológico dos personagens como cerne estético.
[27] Já os clichês narrados da parte “popular” da disputa seriam amparadas por aquilo que Renato Franco apontou de forma correta como certo “populismo” do livro, que na visão de muitos leitores brasileiros do romance seria o suficiente para merecer posterior desenvolvimento.
[28]  A descrição da ideia do conto equivale a sua inexistência efetiva, dando a entender uma vontade de expressar “aquilo que nenhuma opressão consegue destruir no homem” e sua incapacidade de expressar, talvez por não existir realmente algo que a opressão não pode destruir no homem.
[29] Disponível em http://www.nytimes.com/books/97/11/02/home/coetzee-chamber.html. Este trecho, como todos os outros citados de fonte bibliográfica anglófona nesta dissertação, tem tradução de minha autoria.
[30] Com muita dificuldade é possível ler o seguinte texto inscrito no túmulo: “Viverá eternamente no coração de milhões de portugueses. Ele tinha razão. Todo aquele que queria trocar Portugal pelo sistema da Rússia é traidor de nossa querida pátria”. Há uma minúscula foto na lápide, e nenhuma indicação do nome do ditador.
[31] Fonte: http://www.guardian.co.uk/books/2006/oct/08/fiction.features1

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