terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Ulisses (sim)

Semana passada terminei de ler Ulisses. Parece que quando se trata de clássicos o tom dominante é falar que tudo já foi falado sobre tal livro, ou muito já foi falado e não se pode querer acrescentar algo sem um ponto de partida radicalmente diferente na leitura... Ainda que todo tom dominante vá naturalmente adquirindo seu quê de cansaço, em Ulisses dificilmente se encontraria alguma postura mais apropriada. Ainda mais considerando que eu só li o livro, e não o estudei (e Ulisses parece mesmo ser um livro a ser estudado em vez de simplesmente lido), vou falar mesmo é da minha experiência com este über-romance.

Hesitei bastante em tomar a decisão de ler o livro. Parecia para mim um livro-código, que para mim é uma estética  bastante chata. A estética do código é aquela que a coisa que está na superfície não faz sentido nenhum, ou quase nenhum sentido, e é preciso decifrar qual o sentido oculto (quase sempre exato, definido, unívoco) da coisa para que se consiga discernir um mínimo do negócio. É aquele livro que tem que ser lido com a interpretação correta do lado. Como se num romance brasileiro um personagem tivesse o nome de 01041964: uma referência ao golpe de 64 que só faz sentido sendo esta referência, não fazendo sentido no mundo da verossimilhança nem na sequencia dos acontecimentos do enredo. Significados escondidos me fascinam, como quase a qualquer leitor de literatura, mas me fascinam mais se estão bem escondidos atrás de uma superfície que em si faz sentido. Me parece algo mais próximo da experiência de vida que temos, quando vemos uma coisa em nossas vidas que parece se dar por um motivo aparentemente fechado e na verdade vai se abrindo para outros sentidos quando paramos para pensar um pouco mais.

Ulisses certamente é talvez o mais livro-código de todos, com as referências à Odisseia e tudo mais, um parágrafo mudando radicalmente o estilo em relação ao anterior, etc etc. E sim, de forma geral ainda acho isto meio cansativo, ainda que aqui tenha um significado maior presente no livro todo (a pequeneza da vida dos personagens em Dublin, em si também uma cidade tida como insignificante no mundo cosmopolita da Europa, e ligações profundas com o Ocidente Maior, o Universal, etc). Digamos assim que não é um livro cuja a dificuldade de leitura tem sido  superestimada, na maioria dos casos. Não é ilegível, certamente, mas que exige paciência e disposição, exige.

O que me sustentou na leitura do negócio foi mesmo a linguagem. Como tive o privilégio de aprender inglês ainda jovem, pude pular a etapa da escolha da tradução (pelo pouco que folheei das três a do Galindo me pareceu superior, pegando realmente a natureza desbocada do texto, ainda que tenha um y inexplicável no título) e fui ao original, e pude ver direto como James Joyce cria beleza de absolutamente tudo. Penso que sua escolha pela banalidade do cotidiano de um dia qualquer tenha origem em parte do seu talento de fazer o cara sentado tomando chá uma coisa lindíssima:

 "On the boil sure enough: a plume of steam from the spout. He scalded and rinsed out the teapot and put in four full spoons of tea, tilting the kettle then to let the water flow in. Having set it to draw he took off the kettle, crushed the pan flat on the live coals and watched the lump of butter slide and melt. While he unwrapped the kidney the cat mewed hungrily against him. Give her too much meat she won't mouse. Say they won't eat pork. Kosher. Here. He let the bloodsmeared paper fall to her and dropped the kidney amid the sizzling butter sauce. Pepper. He sprinkled it through his fingers ringwise from the chipped eggcup."

(esse negócio de juntar palavras (que o Cormac McCarthy também faz direto) que no inglês soa super-natural tipo ringwise, eggcup, bloodsmeared, eu acho massa demais)

Os contrastes formais dentro do texto, um verdadeiro zoológico estilístico, acaba servindo muito para estes momentos que brotam de repente e fazem com que o leitor mais ligado na beleza da escolha das palavras consiga ânimo para continuar a leitura.

(existem comparações do Ulisses com Grande Sertão Veredas, mas me parecem totalmente descabidas para além do complexo de inferioridade brasileiro de querer ver sua produção validada pelo exterior, ainda que por meras comparações. GSV é uno, coeso, enquanto Ulisses é múltiplo, enlouquecido. Já foi mencionado aqui no blog a ideia do Rosa de que lá pela página 50 se acostuma com a fala de Riobaldo, em Ulisses não existe um "estar acostumado" com o livro, ele vive te dando rasteira)

O fato do livro estar firmemente calcado em uma forma de escrita que eu geralmente não aprecio (livro-código, teses ocultas que sustentam um livro que no nível da superfície, de enredo, não se sustenta, etc) e mesmo assim ter sido uma leitura prazerosa só serve de prova de que realmente se trata de um livro foda, não só no sentido da dificuldade. Mas dizer que se trata do suprassumo da literatura é a meu ver um contrassenso, é como dizer que Stockhausen ou John Cage é o máximo da música: tomar o máximo da vanguarda como padrão universal pode até fazer algum sentido dentro de um pensamento estritamente formalista, mas acaba sendo potencialmente danoso para o lugar da arte séria na sociedade. Imagino eu mesmo adolescente começando a ler literatura sendo entregue o Ulisses com a ordem de que "literatura é isto". Eu certamente teria voltado para os romances de escapismo. A vanguarda tem enorme valor, , mas acho que é mais produtivo (e fiel) manter um pouco o lugar de extremo no qual foi concebida.

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Realmente não tenho muito a dizer sobre o livro além de ficar elogiando alguns trechos bonitos, heaventree, whatness of allhorse, snotgreen, disappointed bridge, etc etc.

Mas uma coisa que eu achei marcante além deste plano do estilo é de como se trata de um livro alegre, de-bem-com-a-vida-apesar-de-tudo, coisa realmente rara na literatura, que em geral tende a ser depressiva, decepcionada, etc. A divisão clássica de gêneros narrativos em Tragédia e Comédia frequentemente dá a entender que tratariam do lado pesado e do lado leve da vida em equilíbrio, mas a comédia frequentemente não é leve, tanto que acho que seria bem possível rebatizar esta divisão como "Desgraça e Escárnio". Ulisses certamente é debochado, frequentemente bem engraçado mas não se vê desprezo em suas páginas (como se escuta em George Carlin, ou Louis CK, etc etc). O que se percebe é realmente uma felicidade quase bizarra com a humanidade.

5 comentários:

  1. Para quem não conhece Stockhausen, um exemplinho:

    http://www.youtube.com/watch?v=7rGbHiJnk4I

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  2. Ver um entusiasta genuíno de Joyce falando de Ulisses é bem legal, na introdução que consta na minha cópia (que comprei nova por uns 10 reais na livraria cultura e é num papel nada desagradável) dá quase para ouvir o cara sorrindo falando "véi, é mó legal".

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  3. Gostei muito do texto e das comparações musicais, que me deram vontade de comentar uma pequena divergência (que será esclarecida em um enorme texto, sinta-se livre para ignorá-lo). Acho perfeitamente plausível considerar Stockhausen e John Cage como "máximos" da música, da mesma forma que consideraria Ulisses em termos literários. Só vale ressaltar que, pelo menos para mim, um máximo não excluiria outro. Beethoven, por exemplo, continuaria sendo um máximo musical, com a mesma intensidade.

    Acho que toda vanguarda tem um certo papel de revelar um mar ao norte a ser explorado, o que pode fazer com que uma obra de vanguarda pareça incompleta (afinal, por que esses elementos novos não foram plenamente explorados?). Por outro lado, um "verdadeiro artista de vanguarda", por ser um indivíduo que dedicou muitos anos ao desenvolvimento de novas formas e técnicas, possui uma coesão interna tão vasta que muitas vezes acaba se tornando o próprio mar ao norte.

    Fiquei muito impressionado quando escutei pela primeira vez as sonatas para piano preparado do John Cage. Havia tanto a ser explorado ali. Aqueles elementos percussivos, aqueles novos timbres, a forma como os harmônicos se chocavam e criavam texturas riquíssimas ao fundo...

    Um pouco mais tarde, escutei as peças para piano preparado do Richard D. James (o Aphex Twin). Na época o impacto foi ainda maior em mim, afinal todos aqueles elementos novos estavam ali, mas também haviam as harmonias e melodias mais tradicionais e apreciáveis dentro de uma estética mais padronizada. E é bom ressaltar que é uma estética mais padronizada. Todas as peças eram compostas a partir de escalas pentatônicas, tão usadas no jazz e no rock, era algo muito mais familiar e apelativo para mim.

    Passaram-se mais alguns anos e continuo gostando das peças para piano preparado dos dois, mas agora vejo que todos os elementos que me faziam falta nas peças do John Cage sempre estiveram ali e foram plenamente explorados, estavam apenas camuflados em meio a tantas novidades. Hoje gosto bem mais das peças dele, até por serem mais distintas entre si. Essa questão da percepção tardia, porém, me faz pensar em um paralelo com a codificação do Ulisses.

    Um paralelo mais adequado de codificação em música, apesar de mais acessível, talvez fosse o Shostakovich. https://www.youtube.com/watch?v=PjvTTfbpWjY

    Esse quarteto tem um milhão de citações a composições do próprio Shostakovich e a motivos de outros movimentos do próprio quarteto. Alguns temas são tão trabalhados (alongados, revertidos, transpostos) que é necessário um estudo aprofundado para entender bem o que é e o que não é citação, bem como o sentido oculto dessas citações (algumas meramente formais, outras consideradas até mesmo políticas -não gosto muito dessas interpretações mais elaboradas, mas elas existem). Mesmo assim, o trabalho final é perfeitamente apreciável sem essa compreensão. Dentre o que li, acho que "The Dead Father", do Donald Barthelme, seria a melhor comparação com literatura. É definitivamente um romance codificado, cheio de citações e sentidos ocultos nas entrelinhas, mas perfeitamente apreciável como um livro cômico surreal. Ao mesmo tempo que o "pai morto" (que, na verdade, é um morto-vivo) é retratado como um gigante semi-mecanizado que possui cabines de confissão em uma das pernas e é conduzido ao túmulo pelos filhos, a narativa ganha outra dimensão se é entendido que o "pai morto" representa certas formas tradicionais de literatura (em algumas interpretação a prórpia linguagem) e se as sátiras a epopéias são captadas.

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  4. Esse quarteto do Shostakovich me cativou inifinatamente quando ecsutei pela primeira vez na adolescência. O que mais me chamava atenção era a sensação "psicótica" que ele transmitia. Hoje, ele já ganhou outra dimensão e acho que as citações só contribuiram para isso. É como se eu descobrisse um elemento novo a cada audição, sendo que tenho a partitura memorizada. E a cada elemento novo, surge uma nova possibilidade de interpretação, uma nova sensação que posso associar. É um caso que exemplifica perfeitamente como a codificação pode contribuir também para a multiplicidade de interpretações, em vez de se tornar um fator limitante.

    Aplicando tudo que disse ao Ulisses: não acho que seja um livro de código fechado. Pelo menos me parece que as próprias experimentações com pontuação e linguagem já garantem a possibilidade de diferentes interpretações. Acho que foi um divisor de águas mesmo, que inspirou muitos autores a desbravarem novos caminhos. Acho também que é muito melhor que quase tudo que inspirou. Se entra ou não na lista de favoritos é uma questão gosto.

    Quanto ao John Cage e Stockhausen, digo o mesmo. É bem difícil encontrar um compositor de música eletroacústica (entendendo-se música eletroacústica não pela definição semântica, mas pelo estilo de música eletrônica de concerto) que não vá considerar o Stockhausen um grande mestre, gênio dos gênios. E não só pelas mudanças radicais na forma de utilizar efeitos, de construir música ou de organizar padrões criadas pelo mesmo, mas por sua própria obra. O que não exclui de forma alguma a genialidade de Beethoven, que foi igualmente inovador em seu tempo (basta analisar algumas de suas últimas sonatas para encontrar passagens tão dissonantes que deixariam muitos compositores do século XX morrendo de inveja). E acho que esse é um bom exemplo para fechar esse texto horrível com alguma dignidade. Por ser um compositor mais antigo, Beethoven já foi melhor absorvido. Certas passagens de suas obras mais avançadas, que costumavam ser consideradas meramente experimentais, hoje se provam extremamente coesas. Há quem se horrorize ouvindo Merzbow, mas há quem encontre ali o que sempre procurou em música. Enfim, imagino que você não seja desses, mas às vezes me dizem "não gosto de Stockhausen, acho pouco melodioso, falta algo ali" e isso me soa como alguém conhecendo algo novo e já esperando receber alguma coisa pré-determinada. Quando comecei a escutar Stockhausen ou Merzbow, gostava de imaginar que estava escutando música alienígena, conhecendo uma cultura totalmente nova, e era uma experiência bem prazerosa. Hoje já sinto como se fizesse parte dessa cultura. E acredite, depois de escutar mil vezes a peça mais maluca, ela soará como a coisa mais melodiosa do mundo.

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  5. 1) The dead father é massa mesmo.

    2) Não sei se é uma questão de tempo até o stockhausen virar "naturalmente audível", e ao mesmo tempo não sei se em certa medida específica ele já não se tornou. Basta ver qualquer filme de terror hoje em dia vai ter aqueles agudos eletrônicos alongados meio sinistros que o Stockhausen colocava nas composições dele. Mas ainda assim, oitenta anos depois, pierrot lunaire permanece alienígena. (pensando aqui talvez eu devia ter suscitado o schoenberg no lugar do stockhausen).

    3) Não é que eu não gosto de stockhausen, é eu só não escuto mesmo. A coisa mais fodida que escuto por prazer mesmo em vez de curiosidade é o Grosse Fugue do Beethoven.

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