quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Iniciante / Consagrado

Talvez foi maldade, mas li no mesmo dia os ótimos quadrinhos de André Valente ( http://oandrevalente.com/ ) "Não Fui Eu" e "Batima" e a nova obra do Chris Ware, o Building stories.

Do que li de André Valente, não tem nenhum outro quadrinista no Brasil que trabalhe o elemento visual como ele. Um jovem pai tenta fazer dormir seu bebê e a sequência cronológica é desenhada em forma de espiral que progride para o centro, e não nas horizontais empilhadas consagradas na forma do quadrinho, dando a entender uma passagem de tempo que se torna mais forte com cada minuto insone... Batman mente para a mãe em uma carta falando que está tudo bem, enquanto os tétricos desenhos mostram sua rotina de funcionário de McDonalds, em dissonância intensa.

Mas Chris Ware é covardia. Até arrisco dizer que Chris Ware acaba tornando o meio dos quadrinhos menos interessante, com ele vivo e produzindo não dá pra ter aquelas inúteis e intermináveis conversas sobre "quem é melhor", todas adoravelmente veementes como se fosse possível determinar isto de maneira definitiva e objetiva.... quando se fala de quadrinhos, a meu ver não tem discussão, Chris Ware é mestre. Tem que esperar ele morrer para podermos debater neste tão importante campo.

Conversei brevemente com André e tinha falado que o único defeito que tinha visto em sua coletânea "Não Fui eu" é uma mistura de histórias de humor escrachado com outras de melancolia mais fina, mais sutil. São todas histórias bem curtas, e o registro da leitura acaba oscilando feito sismógrafo em tragédia tectônica. Imaginei que a coletânea não tivesse sido muito planejada como uma unidade de leitura, e sim a reunião do trabalho que ele achava mais interessante de publicar, já que é a primeira publicação de um cara bem jovem, e tudo mais. Na conversa, ele acabou dizendo que tinha sido mais ou menos isso, vontade de publicar logo as coisas que ele achava de melhor qualidade. E de fato são muito boas, em sua maioria, só que não tem aquela coesão que acaba beneficiando o todo.

Depois, fui ler Building Stories. Para quem não conhece:
É uma caixa com 14 folhetos/livros/posteres/jornais/cadernos separados em que Ware conta a história de uma mulher que perdeu uma perna em um acidente ainda criança e que (em alguns dos folhetos) mora no terceiro andar de um prédio sem elevador. Narra sua solidão, seu casamento, maternidade, infância, etc. Não existe ordem definida de leitura dos fascículos. 

É uma obra que chega a ser desagradável tentar descrever, já que precisamos usar adjetivos já gastos (sensacional, fascinante, maravilhoso, etc etc) com coisas que não são tão... É como falar que o acervo do Louvre é "grande", ou que a Nona de Beethoven é "muito boa".

Dentre os folhetos/etc estão dois falando a história de uma abelha, e em um deles em especial me fez lembrar do comentário que fiz ao André, essa coisa de um registro narrativo que destoa: é justamente neste livrinho vermelhinho com um círculo preto no centro que aparece na imagem acima (como não colocá-lo em cima de tudo?). Dentre a melancolia da solidão e incertezas da protagonista, temos a narrativa neurótica/obsessiva/ridícula (ou ridicularizada) de uma abelha, que me causou bastante incômodo (e não o incômodo-chique que tornou a palavra super-utilizada em discursos de  interpretação de obras artísticas). Mais adiante, em um momento de outro fascículo, consegui enxergar melhor o lugar deste livrinho vermelho e meio histérico entre os outros de qualidade tão imediatamente perceptível.

Estou há um tempo adiando escrever um texto rápido sobre a questão do clássico versus o contemporâneo, que o clássico já conta com certa pré-aprovação e que o contemporâneo o leitor tende a ter mais poder de decisão sobre aquilo que lê (não gostar de Machado de Assis é de certa forma uma ousadia. Não gostar de Ian McEwan é ok) e de como me agrada este aspecto do contemporâneo. Mas lendo agora o André Valente e o Chris Ware juntos, vejo que mesmo entre contemporâneos (para a desgraça de Valente, que disse "como eu posso querer ser cubista se Picasso ainda é vivo?") há também esta desigualdade na recepção, já que o desnível visto (depois corrigido) em Ware causou um impacto muito maior do que o em Não Fui Eu, puramente causado pela expectativa de ler uma obra de um autor consagrado (e por mim idolatrado) e um estreante...

***

Só uma nota final, para minha interpretação de Jimmy Corrigan apresentada no evento sobre quadrinhos na UnB algumas semanas atrás eu acabei focando no final e no início do quadrinho, lembrando aquela máxima de que o início e o fim de uma obra narrativa são elementos particularmente marcados na obra, que se há alguma dúvida sobre algum sentido mais ou menos uno de tudo que se leu, basta olhar a forma como o autor começou e encerrou sua obra. Para Jimmy Corrigan, foi muito útil (os textos do evento em breve serão disponibilizados online, postarei aqui) para tentar ver que o livro tinha mais em seu fundo do que sua superfície (linda) de ladainha depressiva. Agora chega o Chris Ware, embaralhando as folhas, misturando tudo. Gênio cretino.

Um comentário:

  1. Grande texto, Breno. E sim, o Ware é um cretino. Acho que qualquer um perderia na comparação.

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