sábado, 29 de setembro de 2012

Outro conto

B7
Ele viu o cavalo comendo a torre. Percebeu então que algo não devia estar dando certo. Ficou chocado com aquilo acontecendo bem na sua frente. Presenciar um desastre tão de perto. Não é todo dia. Ali. Na sua frente.
            Não era tão perto assim. Não conseguiria alcançá-los se tentasse. Mas sua posição permitiu que testemunhasse tudo. Tudinho.
            Talvez assim ficasse acordado. Era o fim daquela enrolação infinita. Melhor assim. Mesmo custando um companheiro seu. Não aguentava mais aquele vai-e-volta sem propósito. Uma enrolação sem fim. Indo de um lado pro outro à toa. Só ocupando espaço. Encheção de saco. Imaginava que era errado pensar assim. Que não deveria pensar assim. Mas pensava.

            Em seguida o cavalo foi pego pela rainha. Sumariamente. Sem chances. E ele viu tudo. Dois notáveis eventos consecutivos. Agora que a coisa anda de vez. Pelo menos foi o que pensou.

            E não há ninguém para pegar a rainha depois. Seria coisa demais. Três assim? Não acontece. Talvez seja errado desejar mais. Mas não aguentava mais o marasmo. Mexeção sem fim. Indo pra lugar nenhum. Podia ser que havia algo por trás disso tudo. Algum plano aí. Podia ser. Mas ele não via nada. Não sabia de nada. Sua posição era desprivilegiada. Nada passava por ele. Só ficava parado. Olhando.
            Que pelo menos tivesse algo pra olhar.
           
            Um de seus colegas mais imediatos avançou para proteger a rainha. Bem ali do lado. Agora qualquer coisa que acontecesse algo com ela o troco viria na hora. E ele poderia ver tudo. Mas o mais provável era que nada acontecesse. O que não impedia que ele ficasse torcendo.
            Ele ficou pensando na rainha. Que poder impressionante. Tudo que ela faz deve ser muito bem pensado. Seu peso é enorme. Como consegue alcançar quase qualquer coisa. Como deve estar sempre sob cuidados. Protegida por outros menos importantes. Claro. Depois dela só há menos importantes. Não só ele e seu colega imediato. Não. Eles estão abaixo de tudo. Até um cavalo e uma torre estão abaixo da rainha. Tudo está abaixo dela.
            Isso não contando o rei. Claro. Mas ele não conta. Não faz nada. Só fica lá fugindo. A rainha é quem faz tudo. Ou ao menos quem pode tudo. É um orgulho simplesmente estar perto dela. Seria pra ele. Se tivesse sido ele o protetor.

            A próxima ação ele só percebe por uns vultos. Algo no cenário se modificou. Algo sutil. Longe demais dele. Fora do alcance de sua visão. Certamente alguma coisa mudou. Não saberia dizer o quê. E não lhe informam o quê. Pra ele ficou na mesma. Como se não tivessem feito nada.
            Ele sabe que fizeram alguma coisa. Só julgam que para ele não faz diferença. Talvez não faça. Mas talvez faça. Pode ser por causa disso que ele se dê mal no fim. Mas não sabe. Não vê e não lhe contam.
            Não sente medo. Sente frustração.

            Um bispo se mexe. Atravessa larga distância. Passa por vários inimigos. Não causa dano algum. Nada de novo.
            Sentia medo. Relutância. Mas era como uma camada por cima de uma grande empolgação interior. Uma forte vontade de participar. Uma possível brutalidade era uma sugestão menos forte que a glória certa prometida. Era isto o principal. Qualquer coisa que depois viesse viria por cima. Sem afetar essa fundação. Vinha, empilhava e, sim, ficava, mas sem parecer que fosse comprometer o principal.
            Não que tivesse escolha. Estar ali ou não. Não nessa questão. Era o que era e ponto final. Mas ainda sim no início ele via algum ideal ali. Ou pelo menos algum motivo. Alguma motivação.
            O comprometimento da base veio depois. O tremor do medo se transformou em um tremor de inquietação. Já não aguentava mais a mesma pasmaceira. A repetição. Parecia esperar por algo desconhecido. A demora era pior por essa indefinição. Na sua imaginação ela se estendia até além do horizonte. Até lá, tudo parado. E a inquietação se transformando em um tédio que atravessava ossos.
           
            Uma torre inimiga se aproximou. Ou uma rainha. Ou alguém como ele. Só deu pra ver o tipo de movimentação. Quem realizou, não. Nem quis saber.
            Talvez pudesse acompanhar melhor os acontecimentos. Isso se não fosse aquele tédio e desinteresse para com ele. Aquela imobilidade imposta. Aquele isolamento irritante. Ficar parado ali só olhando o chão. O pequeno espaço ao qual ele foi designado. Permanentemente, parece. Se o solo fosse da mesma cor que seu corpo talvez já tivesse começado a se fundir. E quando fosse convocado não teria mais como atender às ordens. Excesso de espera. Grudado no chão, não dá, desculpe.

            Riu um pouco de si próprio. Uma imaginação à solta tem seus perigos. Já estava viajando. Mas também. Ia fazer o quê? Perto dele só havia um cavalo. E nem bloqueado por ele o maldito estava. Pra piorar ele era o único que não atrapalhava o de trás, dizia para si mesmo. Qualquer coisa é só passar por cima. Um total inútil. Não vale nada. Que morresse também, o maldito. Mesmo sendo o último que sobrava ali. Que morresse também.

            Não era o último cavalo. O inimigo acabou de mostrar isso. Era um recuo, mas de tal forma que agora ele conseguia enxergar melhor. Antes, não via. Inimigos covardes. Ou não, talvez houvesse alguma ideia por trás.
            Era uma merda. Não sabia de nada. Ficava lá sem saber de nada. Se bobear, ainda tinha um terceiro cavalo sobrando sem ele saber. Que todos fossem pro inferno. Ele não se importava mais. De que adianta?
            Aliás, qual é o propósito disso tudo? Para que estavam todos ali? Para que que ele estava ali? Para que toda essa disputa? Seria realmente necessária? Talvez nem precisasse estar ali...

            Era melhor não pensar nessas coisas. Não servia de nada. Mesmo se concluísse que aquilo era errado. Que não deveriam estar fazendo aquilo. Teria que continuar de qualquer jeito. Não havia escolha.
            Pois que fosse um bom espetáculo. Muita ação, muitas mortes ali na sua frente. Tudo rápido. Se não há sentido, que haja sangue.
            Sua crueldade provinha da frustração daquele marasmo alienado. Não é preciso que ele perceba ou conclua isso e nem que seja com essas palavras para que seja verdade. Sente o tédio e sofre a alienação. Nesse fracasso ele busca alguma saída. O desinteresse com o qual agem com ele é contagioso e revertido. Ele passa a se importar pouco com o todo. É claro que sentiria medo de expressar abertamente essas suas vontades. Provavelmente negaria tudo com veemência caso fosse confrontado.
            Não que fossem perguntar.

            Um conhecimento superior não lhe era impossível. Ele até pressentia de forma vaga aspectos da realidade que lhe eram desconhecidos. Complexidades ocultas. As milhares de possibilidades. Mais do que o número de átomos do universo. Mas mesmo assim... As possibilidades não eram dele. Ele não importava. A vista de cima talvez fosse interessante. De onde estava é que não era. Ele era dispensável. Não tinha voz. Nunca teria.
            Sentia que sua pequenez era tamanha que nem se por algum motivo buscassem seu ponto de vista realmente lhe seria dada a voz.

            Seu colega imediato mais próximo avançou dois espaços. Um salto. Como se tivesse se atirado adiante. Para o nada. Para nada.
            Ele se irritou com aquilo. Mesmo de longe. Não via motivo. Não havia nada lá na frente pra ele fazer. Nada para ele proteger. Nada para ele atacar. Nada. Não havia propósito. Era uma coisa sem razão. Era só para se mostrar. Mostrar que pode. Olha, olha só o que eu faço! Uma imbecilidade. Poder, qualquer um pode. Ele mesmo pode. Os outros todos podem. Não é por isso que precisa fazer. É por merdas assim que se bota tudo a perder.
            Talvez essa afobação fosse para chegar logo no fim do outro lado. A última linha. Ele mesmo já tinha ouvido essa conversa várias vezes. Chegando ele ou um de seus semelhantes no ponto mais longe haveria uma promoção. Poderia virar cavalo, bispo, torre. Rainha, até. Diziam que quase sempre dava rainha. Mais uma rainha no time. Outra força avassaladora. Não sabia como seria a transformação (e no caso da rainha, quase não queria saber). Nem sabia se era verdade. Todos falavam nisso e ninguém confirmava se era verdade.
            Mas talvez fosse. E talvez fosse isso que aquele seu colega afobado queria. Mas era muito longe e o caminho nem estava livre de inimigos. Impossível. Impossível que fosse verdade e impossível que ele chegasse lá. Era só um babaca, mesmo. Um grande babaca.

            O colega que havia avançado foi pego pelo inimigo. Um bispo veio e tomou seu lugar. Fez com que deixasse de existir. Saiu de cena sem deixar mancha nem cheiro. Nem mesmo uma mínima marca no chão de onde desaparecera.
            Sua reação inicial foi de comemoração. Parecia uma punição adequada àquela estupidez anterior. Uma vingança invisível. Como se ele mesmo fosse quem tivesse designado aquilo para acontecer. O responsável distante. Quem assinou embaixo. Isso, durante.
            Depois, outro gosto veio à tona. Uma força por detrás daquilo. Atravessando cortinas até chegar a ele. A limpeza da brutalidade. A eficiência e rapidez. A inconsequência. A leveza na irreversibilidade. Como se fosse fácil. Talvez fosse.
            Como se não custasse nada.
            E poderia ter sido com ele.

            O bispo leva a dele com a torre. O mesmo que matou seu colega agora se junta a ele. Se é que não ficam separados também quando passam pro outro lado, inimigos eternos.
            Não era em metafísicas que ele pensava agora. Sua preocupação era com as coisas mais palpáveis. Agora percebia melhor tudo. Ou talvez parte do todo. E não se parabenizava por isso. Sabia que até alguém ainda mais burro entenderia. E se ele mesmo não fosse tão burro, pensou, já teria percebido antes.
            Seu colega tinha sido isca. Eles sabiam o que aconteceria com o coitado. Lançaram-no cientes disso. Seria um sacrifício necessário. Cede-se um pedaço para abocanhar outro maior. Um bispo faz mais falta do que seu colega. Fazia mais falta do que ele. O saldo era positivo. Uma transação lucrativa.
            Foi assim que o colega foi. Com um monte de esperanças em cima dele. Torcendo para que desse certo. Para que ele morresse. Muito produtivo. Sua morte fazia funcionar o plano.

            E poderia ter sido com ele. Ele também avançaria confiante. Sem saber de nada. Certamente seu colega sequer suspeitava. Os outros que nem ele também não.
            Talvez as torres soubessem. Ou a torre que restava, pelo menos. Talvez até os cavalos soubessem. Ou o cavalo. O que sobrasse. Talvez todos soubessem. Só ele que não. Agora, não mais.
            Parte de si que agora sabia ansiava pela ignorância de antes. Se a verdade era essa talvez fosse melhor não entender. Já não sentia o tédio e o ressentimento. Só a raiva, diferente da raiva que sentia antes. Era um outro amargor.

            O frio que o trespassou não ia embora. Como é que algo ao mesmo tempo atravessa e fica? Como que eles podem fazem isso? Será que não há hesitação? Eles mandam-no à morte como se fosse nada? Certamente com ele seria a mesma coisa. É só aparecer a oportunidade. Seriam os inimigos assim também? Não lembrava disso ter acontecido do outro lado. Uma sucessão assim. Um sacrifício parecido. Talvez eles fossem os corretos da disputa. Certamente esse era um bom indício, não deixar seus próprios morrerem desse jeito. Claro que muitos acabavam mortos de qualquer jeito, mas nenhum assim. De propósito.

            Ele viu os outros decidirem mover o cavalo. Não sabia o porquê. Uma estratégia complexa, um avanço sem propósito, ou talvez outra coisa. Sem dúvida não era para alguma armadilha omo a que há pouco matou seu colega. Eles não fariam isso. Nunca fizeram. Muito menos começariam agora. Ainda mais com um cavalo.

            Ele continuou parado. Felizmente. Agora torcia para que não o escolhessem. Melhor ficar parado ali. Mesmo que mofasse. Mesmo que crescesse raízes. Que grudasse pra sempre no chão. Que não fizesse nada. Que fossem os outros os sacrificados. Nem saberia dizer quem tinha avançado dessa vez. Só se concentrou em si mesmo. Relaxou por completo ao ver que continuaria parado. Por enquanto estaria a salvo. Seria assim até o final? Nessa agonia? Que acabasse logo, então. Vitória, derrota. De qualquer jeito.

            A rainha está morta. De alguma forma isso aconteceu. De algum jeito. Não estava prestando atenção, olhando pra si mesmo. E ela não estava mais lá depois que se deu conta. Mas tinha sido agora. Tinha certeza. Não tem como algo assim ter acontecido antes e ele não ter percebido.
            Eis todos os detalhes do começo da derrota. Foi o que concluiu. Derrota. Sim. Não havia recuperação de um vacilo desses. Vacilo, claro. Um deslize monstruoso. Como é que pode?
            Estava do lado errado. Não de ideais ou motivos. Errado de resultado. Iam perder. Não havia dúvida. Uma sensação terrível. Estar diante do inevitável iminente. Prestes a ser esmagado. Talvez fosse melhor assim. Melhor do que o que havia acontecido até agora. Era o fim da espera. A entediante de antes e a amedrontadora de agora. Sua experiência toda tinha sido uma de desgosto e angústia. O vazio que viria não tinha como ser pior do que tudo que acontecera até agora.

            Não adiantava fazer nada. Tudo depois da morte da rainha seria patético. Tão patético quanto essa manobra agora. Só um exercício idiota. Podia ser qualquer coisa, não tinha jeito. Não precisava nem se mover. Era só esperar parado, se pudesse. Só esperar. Quieto, calado, submisso. Desistir não era a melhor opção. Não era, pois não havia opções de verdade.

            E eles ainda avançam. Apressados. Tudo bem. Ele entende. Ele também teria. Não há por que enrolar. Que viessem. Sem demoras.

            Uma torre anda de lado. Fica na frente do rei inimigo. Uma última tentativa, parece. Uma tentativa de não fazer tão feio. Só pra manter alguma pose. Pra poder dizer depois que...
            Ela ficou alinhada com o rei inimigo. Mas... que babaquice. Apelar assim. Adianta de quê? É só ele mover um pouco e pronto. Sair da frente e só. Isso só atrasa as coisas. Que desespero ridículo. Uma péssima maneira de terminar tudo. Só pra encher o saco. O ressentimento estraga qualquer coisa. Só piora as coisas.
            É só o rei mover pra esquerda que
            Não, não dá. O cavalo comeria.
            Para a direita tem um bispo.
.           Para frente nem tem como considerar, claro, a torre continua lá.
            As diagonais estão bloqueadas.
            A não ser que... Não, não há quem possa. Ninguém tem como entrar na frente. Estão impossibilitados. Todos.
            Seria esta a vitória? É só pegar o rei. E eles não têm escapatória. Não. Não têm.
            É o fim. É a vitória. Assim que ele percebeu isto, algo cresceu dentro de si. Uma sensação esquisita. Passava por cima de todas as outras. Como que se lavasse tudo. Uma alegria esquisita. Quase azeda de tão forte. Pesada. Era como se tudo antes já tivesse sido esquecido. Enterrado pela vitória. Virando pano de fundo para essa novidade maior. A vitória. A glória.
            O esplendor completo.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Música

Não serão muitos os videos que indicarei aqui. Quase todos serão de música, mas ainda assim serão poucos.

Abre aspas 4 - Cynthia Ozick

"Quando ouvi que Isaac Kornfeld, um homem de fé e cérebro, havia se enforcado em um parque público, enfiei uma ficha na catraca do metrô e fui lá ver a árvore" Primeiro parágrafo do conto "o rabino pagão", Cynthia Ozick

(tradução de minha autoria)

Tem certos inícios que são maus inícios porque são tão bons que a gente não consegue continuar lendo imediatamente. Li este parágrafo há 3 dias e ainda não li o conto. Como que um conto consegue acompanhar um início desse?

Abre aspas 3 - Chris Ware


"Jimmy, tente manter seu casaco fechado - o trem pode não chegar aqui por um bom tempo e você não quer pegar uma gripe"
" "
"Mãe quando eu ficar velho eu vou ter um milhão de dólares e vou comprar um carro para gente, ok? Ok, mãe?"
SESSENTA ANOS DEPOIS
" "
" "
"Luvas térmicas"
"Estou pronto para o inverno"
" "

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Mais um conto


?

            Parece-me cada vez mais apropriado pensar na vida como nada mais que uma porção de perguntas reunidas com propósito nenhum além de sua auto-perpetuação. Cada vez mais vejo peças novas acrescentadas a esse quebra-cabeça infinito, todas se encaixando perfeitamente com suas vizinhas, sem a menor brecha sobrando, mas nunca formando uma imagem definida, sempre dando indício de um final próximo, um pouco além das pontas dos dedos, sempre somente aumentando o tamanho do todo, dando mais margem para junção de mais informações, uma agregação sem fim que apenas continua.
            O começo, por exemplo. A cópula dos antecessores, ou a trepada dos pais; qualquer que seja a descrição escolhida, é um ato repleto de perguntas, não importa o ponto de vista que se escolha. Nenhum é seguro. A própria criança que naquele momento está sendo gerada não entenderia patavinas (usando aqui seu hipotético vocabulário) do que acontecia naquele momento. Uma espécie de luta ou dança esquisita, um pouco violenta, sei lá. Nojento. Aquilo continuará uma incógnita na sua cabeça por anos e anos, até o ato específico em questão ser tão distante no seu tempo que quase deixou de existir realmente.
            O seu desafio então já deixou de ser o de entender aquilo, e sim tentar fazer aquilo com alguém que se interesse a tal. E logo chegam mais perguntas. Por exemplo, nesse caso: "quem”.
            Assim continua a vida do coitado. As respostas só vêm para trazer novas perguntas, muitas vezes mais inquietantes, ou em maior número; não há paz, não existe silêncio, nunca. Ao menos não em vida.
            Pouco após a solução desse problema, o do início (se é que ele é realmente resolvido), surge o outro, o único que é tão grande quanto ele, talvez até maior: o problema do fim.
            O que seria a morte, eis seu resumo mais conciso. No entanto isto resume muito mal, na verdade, pois qualquer um sabe que a morte é o fim das funções vitais, o coração para, os pulmões se esvaziam, as atividades cerebrais cessam etc, etc. A questão “verdadeira” é se a morte é mesmo o fim, como alguém desligando um interruptor, ou puxando um fio da tomada, ou qualquer outro clichê (imortal) do gênero. Inúmeros estudos, centenas de religiões e filosofias... há todo um esforço para entender a morte, vindo de todos os lados, desesperado, buscando alguma plenitude (ou talvez outra coisa). A situação aí não difere significativamente da do menino tentando entender dois adultos (esperamos que sejam adultos, ao menos) fodendo. Por mais que imaginem, especulem, considerem e reflitam, a coisa continua esquisita para todos que não fazem parte daquilo.
            Quem dera se ao menos fosse assim, simples, dividido entre os que entendiam e os que não entendiam, pois nem para os que estão lá na sua cama (esperamos que estejam numa cama, ao menos) a coisa é inteiramente esclarecida. É verdade que eles sabem o bastante, tanto é que estão lá, sob as cobertas (ou não), mas somente os movimentos são instintivos. A cabeça, ou melhor, a consciência, não faz parte desse todo. Deseja-se um pouco de privacidade, não a de outras pessoas, esta um tanto simples e comum, mas sim a mais difícil, a dessas perguntas todas, pelo menos agora, que realmente não são pertinentes; mas são raras as ocasiões de uma ausência assim. Será que ela vai engravidar, será que hoje é seguro/tomou a pílula/a camisinha é confiável/ele tirou a tempo/a reza pra santa-das-trepadas funcionou/etc... E mesmo antes elas não cessam, quando ele não sabe se é hoje que ela finalmente vai liberar, ou ela não sabe o que vestir (e despir, depois)... ou durante, quando ele se pergunta se ela está gostando tanto quanto ele, se está gostando dele, se esta vai ser a única vez, etc...
            E mesmo no tarde demais, após já fecundado o desastre, que cresce junto com o ventre da coitada, elas não dão trégua, como agora com ela, alisando a barriga e se perguntando se algum dia conseguirá recompor a figura depois daquilo. É quase como se uma bala de canhão tivesse lhe atingido as costas, prendendo-se na pele da frente, do ventre, se me permitem esse pequeno plágio.
            Isso, claro, considerando que o coitado (feto) sobreviveu à primeira de todas as perguntas: e agora, vai ou não vai ter esse bebê, vai, não vai, vai, não vai... Há quem diga que não há escolha, ao menos não dentro da Lei, mas a verdade é que isso hoje em dia (se é que é só hoje em dia) dificilmente pode ser considerado um problema significativo, diferente dos outros que estão sendo discutidos aqui. Pelo menos isto.
            Enquanto isso o feto aumenta, solto, boiando no útero. Até mesmo seu corpo, aos poucos tomando forma, no início se parece com um ponto de interrogação, de carne, vivo, crescendo.
            Já perguntaram ao casal (assumindo que ele não sumiu ao receber a notícia) se é menino ou menina, sendo que ainda é cedo demais para perguntar, nem sabem se vai nascer mesmo, parece que ela sente algumas dores fortes de vez em quando, e por isso é que nem nome tem ainda, seja qual for o sexo, eles tentam não se apegar muito, não apostar alto pra depois quebrar a cara, já que o médico não parece muito otimista; nem atencioso o filho da puta é direito. Mas é verdade que ninguém sabe de coisas assim, pode ser que está tudo bem, que não há motivos para se preocupar, alarme falso, e pode aparecer um maníaco do nada e dar um tiro no umbigo estufado dela, assassinando ambos, loucamente declarando-se misericordioso.
            Assim às vezes é, chega antes do fim do primeiro problema o fim do segundo, terminando tudo, abrupto. Crianças morrem todos os dias, é verdade. As causas são todas as possíveis, acidentes, incidentes, ausências... mas mesmo assim, já na rotina, do todo-dia, já fato desgastado, a pergunta continua: por quê, por quê, e ecoa.
            Parece trapaça, alguma espécie estranha de trapaça em que não há figuras definidas, já que a suposta vítima talvez nem tenha sido privada de muita coisa, ou ao menos se julgue assim ao se ver tanto desprezo pela vida mundo afora. Também não teve chance de sentir o gosto das coisas que viriam depois, as amarguras, as malandragens e, acima de tudo, as perguntas, já que o que tivera até então não exigia justificativa, mas o que viria depois parece que sim.
            E se tudo isso aconteceu só depois do parto, ele (sim, menino), sobrevivente de todas as agruras de uma gestação complicada e uma infância de pernas meio tortas  (com todos os apelidos carinhosos criados por seus coleguinhas por conta disso) só para ser atropelado em uma faixa de pedestre no meio de uma metrópole anônima, continua rodeado de indagações, das mais variadas. Das que de tão prosaicas beiram a ofensa, como “quanto custa o enterro”, como as supostamente mais importantes, como ”quem é o culpado”.
            Os profissionais no porão do hospital escancaram o cadáver na mesa, querendo encontrar o que realmente matou o moleque, qual dos impactos, qual dos machucados, sendo que nada daquilo poderia ressuscitá-lo, aquilo sendo quase como um exercício, útil, mas, no final, fútil. Todo esse conhecimento técnico, preciso, é quase uma muleta no meio desse turbilhão de incógnitas indecifráveis, uma espécie de apoio diante do desconhecido, a pequena resistência que nos é possível, e nas pausas nos perguntamos se essa capacidade é dádiva ou maldade, essa de poder saber, mas nunca tudo.
            Mesmo nessa aparente tragédia sem tamanho, um pobre menino sendo atropelado e estatelando-se no asfalto enquanto o carro responsável foge, há pontos positivos. Nela, duas questões são resolvidas de imediato, questões que atormentam a todos individualmente. Elas podem ser facilmente resumidas, cada uma com uma palavra só: como e quando. As respostas: atropelado, pré-adolescente. E essas duas questões realmente atormentam e perseguem. Nesse caso, mais especificamente, mal tinha começado a fazê-las. A morte sempre tem uma cara de conclusão (embora talvez não seja) e às vezes vem com ares de finalmente, não menos por trazer respostas, já que são poucas as que encontramos hoje em dia.
            Mas essas duas soluções são muito simples, limitadas, tanto que podem ser brutalmente resumidas sem grande perda de significado. A pequena vantagem de possuí-las talvez seja desprezível perante outras perguntas, sangrentas, que continuam mesmo após fechadas as portas do carro funerário travestido de ambulância que parte frenético para o hospital, sem razão; talvez o motorista ache que ainda há esperança, porque teve um acidente parecido no seu passado (sofrido ou causado), ou um filho da mesma idade, um sobrinho ou vizinho simpático. Ou ele talvez apenas esteja aproveitando a ocasião para alcançar altas velocidades, aspecto que pode ter sido o motivo de ter optado por esse emprego, se é que teve escolha. Ninguém mais ali dentro saberia explicar aquele comportamento, e ninguém cutuca seu ombro a fim de questioná-lo; a força dos seus dedos agarrados ao volante e seu corpo curvado sobre o painel afastam este gesto, embora a curiosidade esteja na cabeça de cada um agachado ali dentro, se segurando entre a parafernália socorrista no trajeto sinuoso daquela cidade gigantesca em algum lugar do mundo.

sábado, 8 de setembro de 2012

Acima das leis implícitas

Cormac McCarthy escrevendo in full power é algo como um milagre. Sério mesmo. Ainda não encontrei um personagem melhor que o judge holden. Alguém sugere algum competidor?


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O DFW comentou que este livro é um dos que mais causou perplexidade em sua vida de leituras. Como assim, um livro como esse? Linguagem bíblica, hoje? Completamente esvaziada de ironia, de jogos literários,  de metalinguagem, fala do passado sem "problematizar" (palavra importante, mas cujo uso exaustivo tem  feito com que ela ficasse meio cansada) sua representação, sem enredo, sem desenvolvimento de personagens, sem nada? Linguagem bíblica? E funciona? Como que um livro assim existe? A imagem que se cria não é de um livro que foi escrito por alguém em algum lugar buscando o status de Grande Autor, e sim de algo que de alguma maneira desceu de uma montanha depois de ter caído dos céus (ou subido dos infernos), longe dos olhos de todos.

(estas comparações minhas de desavergonhada grandiloquência certamente soam ridículas para quem não leu o livro, eu sei. Leiam o livro)

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Mas realmente é esta a impressão que se tem, a de que o Cormac parece acima das leis implícitas da arte literária: assim quando li Cordilheira do Daniel Galera e vi o personagem chamado Holden, pensei "referência ao Salinger, claro". Depois o Daniel me disse que não tinha pensado nisso, mas que todo mundo menciona... eu pensei "claro, não dá pra chamar um personagem de Diadorim e achar que o pessoal não vai pensar em GS:V... Agora, só pela milésima vez que pensei em Blood Meridian me dei conta que o nome do juiz é o mesmo nome do personagem do Salinger... e ainda assim a homonímia parece coincidência como as da vida real, fulano e beltrano (ou fulano 1 e fulano 2)  têm o mesmo nome não por algum sentido implícito ou conexão motivada, e sim porque as coisas simplesmente são assim.

É preciso um livro como Blood Meridian para que Holden deixe de ser um nome com dono.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Resenha antiga e algumas considerações menos antigas (Cordilheira - Daniel Galera)


Em 2008 resenhei "Cordilheira" do Daniel Galera pro Correio Braziliense. A versão do texto que acabou impressa foi mais ou menos metade do tamanho deste, não me disseram qual tamanho o texto teria que ser e este acabou ultrapassando bastante o limite.

Achei que seria interessante colocar o texto aqui e minhas impressões ao ler a resenha de novo depois de quatro anos. Tenho encontrado com bastante frequência gente que leu o livro; parece que alcançou algum sucesso dentro do minúsculo meio literário brasileiro. O que é bom, já que é um autor de valor, mas também uma pena já que o romance anterior é bem melhor e as opiniões que encontrei nem sempre tem sido favoráveis...

O tom da resenha meio frio e profissional não é dos meus favoritos, mas me pareceu apropriado pro contexto (e pelo visto foi, já que o texto foi aceito...). O público-alvo, pessoas que não leram o livro, e o objetivo, informar se o livro vale a pena ser lido, não tornam o exercício o mais interessante possível. Algumas considerações que farei depois do texto eu já tinha pensado na época em que o escrevi, mas chutei não caberiam dentro da proposta (e, considerando que nem o pouco que está aí embaixo coube no espaço reservado pra resenha, meu chute foi acertado).

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Daniel Galera arrisca um estilo diferente ao continuar tratando do indivíduo e da solidão.
            Uma ex-escritora aproveita um convite para uma feira do livro em Buenos Aires para se afastar de todos seus problemas: do suicídio de sua amiga, do fim de um relacionamento amoroso e das incessantes críticas a respeito de sua obsessão de ser mãe. Seu único romance, publicado alguns anos antes, foi bem recebido pela crítica e ganhou prêmios literários, mas a autora se sente totalmente distante dele e da escrita como um todo. Sua viagem é muito mais uma fuga do que realmente participar do debate literário para o qual foi convidada ou até mesmo conhecer a tal “Paris da América Latina”. Depois de alguns dias vagando sem rumo pela cidade, ela se envolve com as atividades de uma bizarra seita literária cujo objetivo é “viver o imaginado”, encenar a vida de seus protagonistas.
            Cordilheira se diferencia dos outros romances de Galera logo na escolha de quem irá protagonizá-lo: Anita é a primeira artista e a primeira mulher. Esta diferença se faz sentir no livro inteiro, como seria de se esperar que acontecesse num conjunto de obra que trata(ou pelo menos que vem tratando) principalmente do indivíduo e da dificuldade de se relacionar com os outros. É o primeiro livro de Galera se abre tanto para as sensações muitas vezes confusas da personagem principal e o primeiro a apresentar uma discussão explícita sobre o papel da arte literária.
            Os que reclamaram de uma certa frieza na escrita em Mãos de Cavalo (que logo na epígrafe admite sua natureza cinematográfica, de ser uma visão de fora) ou em Até o Dia em que o Cão Morreu (pela própria personalidade do protagonista) provavelmente encontrarão em Cordilheira algo mais ao seu agrado. No que poderia ser chamado de uma “coragem literária”, Galera não se intimida nem um pouco ao escrever, na primeira pessoa do sexo oposto, todos os medos e neuroses, sem eufemismos para falar de sexo e da ânsia pela maternidade. A busca por um parceiro freqüentemente se torna desesperada e até mesmo vulgar, mostrando que o autor fica bem longe dos clichês cavalheiros dos que escrevem sobre mulheres com medo de algum julgamento negativo posterior.
            O livro é especialmente eloqüente ao tratar do amor que a protagonista sente pela mãe, que faleceu ao lhe dar a luz e que ela conhece só pelo que o pai lhe conta e pelas anotações dos livros da biblioteca que ela deixou, e também pelo pai, que se dedicou integralmente a criar a filha sozinho e morreu num acidente de carro pouco antes do romance dela ser publicado. No decorrer do livro, fica implícito que a sua obsessão por ser mãe é para preencher o vazio deixado pela morte do pai e a incapacidade de estabelecer relações significativas com o mundo, seja com suas amigas, com seus amantes ou até mesmo com sua carreira de escritora.
            Esta incapacidade é tão forte que até mesmo sua obsessão quase sempre é descrita como uma vontade de “ser mãe”, e não de se “ter um filho”. Sua vontade é de um egocentrismo profundo, assim como quase tudo que ela faz e diz na história. Para ela, não se trata de dar a vida a um indivíduo, e sim de dar um propósito a si mesma, nunca imagina como será assistir à criança crescer, acompanhar a infância e adolescência de uma outra pessoa,  e sim dela mesmo como Mãe, entidade intocável e universal. Até mesmo quando vê pais com seus filhos nas ruas, o foco é sempre  nos adultos, sua dedicação e aparente preenchimento existencial. Sua grande esperança não é obter um amor filial, e sim uma “sincronia”, como ela mesmo coloca como sendo inexistente em seu relacionamento com seu ex-namorado e na verdade lhe é inexistente com tudo.
            Neste plano de sentimentos, o ponto fraco do romance fica na descrição da amizade entre a Anita e Amanda, Alexandra e Julie. O enredo se apressa para levar a ex-escritora embora do país, o leitor não fica sabendo da situação da protagonista antes da viagem. Sua crise com o atual namorado até que fica bem descrita, mas a suposta grande amizade soa postiça, algo cuja força a narradora simplesmente diz que existe e o leitor deve tomar por verdade. Na história, só presenciamos as críticas contínuas e os momentos de crise, sendo que a caracterização de uma delas se resume em achar São Paulo e Buenos Aires cidades provincianas demais para ela. Não se vê um momento descontraído, nem mesmo em uma memória distante no meio de uma viagem de avião ou um momento de tédio no hotel.
            Como é de se esperar em um livro de um projeto como o Amores Expressos, a história é povoada de pequenos quase-nadas circunstanciais de uma viagem turística qualquer à Argentina (muitos nomes de bairros, prédios famosos, pratos típicos, o fato das aeromoças passarem um spray dentro do avião na frente dos passageiros ao entrar no país). Neste caso, Galera foi um pouco além ao colocar a própria literatura argentina, mesmo sendo apenas seus “autores de segunda linha”, como parte integrante do livro. A seita, obscura e ressentida por sua exclusão do mercado e do público leitor, não deixa de ser uma representante relativamente fiel da literatura argentina, que carrega sua complexidade (jogos literários, referências eruditas e estruturas bizantinas) de forma mais ostensiva do que a nossa, mais interessada em indiretas e entrelinhas quase invisíveis.
            Esta outra parte do livro, a do debate estético, acabou sendo desenvolvida de forma desigual. A seita é cheia de figuras curiosas (como o autor é hábil em inventar) e cenas interessantes (como toda boa seita deve proporcionar), mas o desinteresse da protagonista pela arte (mesmo sem “a” maiúsculo) acaba por contagiar o leitor no que diz respeito as questões levantadas. A opinião fervorosa de Holden e seu grupo bate de frente com a apatia de Anita, que simplesmente toma por ridícula as idéias deles e no entanto continua comparecendo às reuniões, talvez simplesmente por falta de algo melhor por fazer.
            Isto acaba por criar uma ambigüidade inquietante. É possível ver que as opiniões de Anita (como a interpretação da vida como uma narrativa e a importância do autor buscar alguma separação de seus personagens) sendo usadas por Galera como base para a escrita de Cordilheira. Isto, no entanto, se dá ao mesmo tempo em que o enredo não consegue deixar de acompanhar as práticas bizarras da seita, seus rituais. É estabelecido um tipo de fascínio por aquilo que se considera errado (ver a literatura com L maiúsculo, como algo maior que a vida, etc), um tipo de romance-tese às avessas. Infelizmente, o desfecho deste envolvimento se dá de forma apressada, roubando o enredo da tensão e força que poderiam alcançar. No final, assim como em todo o livro, as coisas acontecem como que ao léu, uma entre várias possibilidades igualmente válidas, diferentemente da claustrofobia de Até o Dia em que o Cão Morreu ou da estrutura “amarrada” de Mãos de Cavalo.
            É louvável que Galera busque fazer algo novo depois dos elogios quase-unânimes de seu livro anterior. As ausências de uma estrutura e de um rumo forte na narrativa provavelmente serão criticadas por alguns, mas para qualquer leitor mais atento fica claro que trata-se de uma escolha deliberada do autor. Reflete talvez a falta de estrutura da vida de Anita depois da morte do pai, perdida em seus pensamentos e no mundo, perambulando sem destino, seja em Buenos Aires ou qualquer outro lugar pelo qual passe.
CORDILHEIRA, de Daniel Galera. Companhia das Letras, 175 páginas. R$37
Trecho: “Deitada no sofá, pensei que a idéia de um entrelaçamento definitivo entre a literatura e a vida me parecia a mais pura besteira. Descansando ali no centro da sala de estar da casa de Holden, morando com um homem que tinha conhecido havia cerca de dois meses, movida pelo plano mais egoísta que se pode conceber, tentei me ver como uma personagem de mim mesma, mas era impossível. Meu desejo de ter esse filho era real, real até demais, e só de voltar a pensar no assunto minhas pernas se contorciam e eu esquecia de respirar. Meus olhos projetavam fantasias de acasalamento e amamentação no encosto daquele sofá cujo tecido vermelho tinha a cor que vemos quando fechamos os olhos e encaramos o sol num dia de céu limpo.”
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1) Engraçado que o trecho que selecionei parece mesmo um trecho escrito para ser selecionado, é um resumo completinho do enredo do livro e ainda mostra o principal talento de Galera, a construção de imagens, descrições visuais, etc (o que faz da incursão dele para os quadrinhos algo que me causa certa perplexidade, é como um roteirista forte em diálogos passasse a escrever filmes mudos ou estilo Wall-E).

2) Cordilheira foi um livro que ficou na minha memória por alguns motivos. O primeiro, foi a decepção. Mãos de Cavalo é um dos meus romances favoritos da literatura brasileira, e não digo isso por identificação nostálgica sobre as partes dos videogames (a pior parte do livro, mas não pelos motivos apontados por velhacos denunciando uma supostamente absurda presença de cultura pop/comercial). O livro todo é muito bom, a estrutura corajosamente exposta, explícita, o enredo interessante, as imagens, a capacidade de expressar o deslocamento sem ser outra narrativa sobre gente que não faz nada ("Até o dia em que o cão" é uma dos exemplos menos ilegíveis deste gênero chatíssimo). O primeiro capítulo, um dos melhores primeiros capítulos da literatura brasileira (uma literatura pródiga em primeiros capítulos memoráveis).

3) Cordilheira não tem nem a estrutura forte, nem o enredo interessante de Mãos de Cavalo. Ele aposta em uma metalinguagem meio estranha, uma artista cujo desencanto acaba por não despertar muito interesse no leitor. No livro você acaba com dois pólos, os loucos da seita (cujas bizarrias são até divertidas, mas nunca realmente interessantes) ou a ex-escritora, e nenhum dos dois cativa muito. Não que eu exija do livro "uma solução" (mesmo porque não vai existir só "uma" solução para como "deveria ser" o envolvimento com a arte), mas o problema não fica interessantemente encenado ou apresentado. De qualquer forma, os pontos fortes que percebo em Daniel Galera são a imagem, a violência e o deslocamento (vide epígrafe de Bataille em "Até o dia" e a cinematográfica do "Mãos"). Desses três, só o terceiro aparece de forma marcante em Cordilheira, mas ao se fundamentar na metalinguagem acaba partindo para o abstrato, e os talentos de Galera mostram mais expressividade com o concreto.

4) Alguma dúvida quanto a este poder do concreto, é só ler o trecho do parto em Mãos de Cavalo.
É de se acreditar que realmente tínhamos um autor pronto, mesmo. (o próprio autor afirmou em entrevista que estava se arriscando ao escrever Cordilheira, que queria algo diferente)

5) Mas parte do fracasso de Cordilheira provocou uma reflexão interessante, que fez com que a leitura se tornasse bastante proveitosa. O livro repetidas vezes descreve a narradora como introspectiva. A história é narrada na primeira pessoa. Isto é, ou é ela falando que é introspectiva, ou (e acho que é este o mais frequente) ela relatando de outras pessoas descrevendo-a como introspectiva. No livro, lemos 175 páginas de palavras da pessoa introspectiva, ela acabando seu namoro de forma meio explosiva, indo para outro país, se envolvendo com um grupo de malucos, escalando uma montanha. Acontecem muitas coisas.  A descrição de "introspectiva" não acaba ressoando com muita legitimidade com a experiência de leitura do livro, uma vez que ouvimos e ouvimos mais e mais palavras dessa mulher introspectiva, é quase como uma pessoa tivesse nos interpelado de repente no meio da rua e entre suas colocações está uma auto-descrição de timidez. É possível que aquela interpelação tenha sido um momento atípico daquela pessoa, mas ainda assim saímos com pelo menos uma impressão do tipo "bem, não tão tímido assim".

6) Será possível uma personagem introspectiva E eloquente narrar uma história na primeira pessoa e isto não parecer meio "o autor quer que o leitor ache que o personagem é introspectivo" (isto é, uma descrição meio forçada) no lugar de realmente passar a impressão de introspectividade? Pode uma pessoa caladona ser narradora, o mero ato de falar (e ainda mais falar longamente, num romance) não prejudica este qualificativo? A não ser que a coisa descambe para uma estilização do atrofiamento, frases de quatro, cinco palavras em que repetidas vezes o narrador não responde a perguntas feitas a ele... o que facilmente ficaria ridículo.

(se bem que qualquer literatura que busca expressar algo vivo está sempre correndo o risco do ridículo)

7) Um ponto muito positivo do romance é a voz feminina que convence e não é uma estilização de Clarice Lispector e suas xerocadoras. A ideia da existência de uma voz feminina transcendental é ridícula, ninguém discute a existência de uma voz masculina. Cordilheira convence que é uma pessoa de outro sexo narrando sem adequá-la aos moldes de uma expectativa medíocre.

8) Lendo agora a resenha, é curioso ver que hoje eu não lembrava de NADA da eloquência a respeito do afeto da narradora com seu pai, nem a parte da mãe morta. Nem lembrava desses personagens.

9) O próximo livro de Galera se chama "Barba ensopada de sangue". É engraçado que a primeira vez que vi o título, o autor falando em uma entrevista, achei que ele estava brincando, mas agora acho um dos títulos mais interessantes que vi nos últimos tempos. Se formos julgar pelo título (em tempos de e-book não julgamos mais livros pela capa), Mãos de Cavalo também tinha um título bizarro e fascinante, então acho que posso voltar a ter boas expectativas.