terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Coisas de entristecer a pessoa


"There was that strange light which follows a day of persistent rain, when the sun comes out and the sky clears too late to be of any use. The earth makes a sound as of sighs and the last drops fall from the emptied cloudless sky. A small boy, stretching out his hands and looking up at the blue sky, asked his mother how such a thing was possible. Fuck off, she said."

Na edição brasileira (de título Novelas, uma brochurinha simpática com a carona do Beckett na capa) a fala da mãe ficou traduzida como "me deixe em paz".

Ulisses (sim)

Semana passada terminei de ler Ulisses. Parece que quando se trata de clássicos o tom dominante é falar que tudo já foi falado sobre tal livro, ou muito já foi falado e não se pode querer acrescentar algo sem um ponto de partida radicalmente diferente na leitura... Ainda que todo tom dominante vá naturalmente adquirindo seu quê de cansaço, em Ulisses dificilmente se encontraria alguma postura mais apropriada. Ainda mais considerando que eu só li o livro, e não o estudei (e Ulisses parece mesmo ser um livro a ser estudado em vez de simplesmente lido), vou falar mesmo é da minha experiência com este über-romance.

Hesitei bastante em tomar a decisão de ler o livro. Parecia para mim um livro-código, que para mim é uma estética  bastante chata. A estética do código é aquela que a coisa que está na superfície não faz sentido nenhum, ou quase nenhum sentido, e é preciso decifrar qual o sentido oculto (quase sempre exato, definido, unívoco) da coisa para que se consiga discernir um mínimo do negócio. É aquele livro que tem que ser lido com a interpretação correta do lado. Como se num romance brasileiro um personagem tivesse o nome de 01041964: uma referência ao golpe de 64 que só faz sentido sendo esta referência, não fazendo sentido no mundo da verossimilhança nem na sequencia dos acontecimentos do enredo. Significados escondidos me fascinam, como quase a qualquer leitor de literatura, mas me fascinam mais se estão bem escondidos atrás de uma superfície que em si faz sentido. Me parece algo mais próximo da experiência de vida que temos, quando vemos uma coisa em nossas vidas que parece se dar por um motivo aparentemente fechado e na verdade vai se abrindo para outros sentidos quando paramos para pensar um pouco mais.

Ulisses certamente é talvez o mais livro-código de todos, com as referências à Odisseia e tudo mais, um parágrafo mudando radicalmente o estilo em relação ao anterior, etc etc. E sim, de forma geral ainda acho isto meio cansativo, ainda que aqui tenha um significado maior presente no livro todo (a pequeneza da vida dos personagens em Dublin, em si também uma cidade tida como insignificante no mundo cosmopolita da Europa, e ligações profundas com o Ocidente Maior, o Universal, etc). Digamos assim que não é um livro cuja a dificuldade de leitura tem sido  superestimada, na maioria dos casos. Não é ilegível, certamente, mas que exige paciência e disposição, exige.

O que me sustentou na leitura do negócio foi mesmo a linguagem. Como tive o privilégio de aprender inglês ainda jovem, pude pular a etapa da escolha da tradução (pelo pouco que folheei das três a do Galindo me pareceu superior, pegando realmente a natureza desbocada do texto, ainda que tenha um y inexplicável no título) e fui ao original, e pude ver direto como James Joyce cria beleza de absolutamente tudo. Penso que sua escolha pela banalidade do cotidiano de um dia qualquer tenha origem em parte do seu talento de fazer o cara sentado tomando chá uma coisa lindíssima:

 "On the boil sure enough: a plume of steam from the spout. He scalded and rinsed out the teapot and put in four full spoons of tea, tilting the kettle then to let the water flow in. Having set it to draw he took off the kettle, crushed the pan flat on the live coals and watched the lump of butter slide and melt. While he unwrapped the kidney the cat mewed hungrily against him. Give her too much meat she won't mouse. Say they won't eat pork. Kosher. Here. He let the bloodsmeared paper fall to her and dropped the kidney amid the sizzling butter sauce. Pepper. He sprinkled it through his fingers ringwise from the chipped eggcup."

(esse negócio de juntar palavras (que o Cormac McCarthy também faz direto) que no inglês soa super-natural tipo ringwise, eggcup, bloodsmeared, eu acho massa demais)

Os contrastes formais dentro do texto, um verdadeiro zoológico estilístico, acaba servindo muito para estes momentos que brotam de repente e fazem com que o leitor mais ligado na beleza da escolha das palavras consiga ânimo para continuar a leitura.

(existem comparações do Ulisses com Grande Sertão Veredas, mas me parecem totalmente descabidas para além do complexo de inferioridade brasileiro de querer ver sua produção validada pelo exterior, ainda que por meras comparações. GSV é uno, coeso, enquanto Ulisses é múltiplo, enlouquecido. Já foi mencionado aqui no blog a ideia do Rosa de que lá pela página 50 se acostuma com a fala de Riobaldo, em Ulisses não existe um "estar acostumado" com o livro, ele vive te dando rasteira)

O fato do livro estar firmemente calcado em uma forma de escrita que eu geralmente não aprecio (livro-código, teses ocultas que sustentam um livro que no nível da superfície, de enredo, não se sustenta, etc) e mesmo assim ter sido uma leitura prazerosa só serve de prova de que realmente se trata de um livro foda, não só no sentido da dificuldade. Mas dizer que se trata do suprassumo da literatura é a meu ver um contrassenso, é como dizer que Stockhausen ou John Cage é o máximo da música: tomar o máximo da vanguarda como padrão universal pode até fazer algum sentido dentro de um pensamento estritamente formalista, mas acaba sendo potencialmente danoso para o lugar da arte séria na sociedade. Imagino eu mesmo adolescente começando a ler literatura sendo entregue o Ulisses com a ordem de que "literatura é isto". Eu certamente teria voltado para os romances de escapismo. A vanguarda tem enorme valor, , mas acho que é mais produtivo (e fiel) manter um pouco o lugar de extremo no qual foi concebida.

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Realmente não tenho muito a dizer sobre o livro além de ficar elogiando alguns trechos bonitos, heaventree, whatness of allhorse, snotgreen, disappointed bridge, etc etc.

Mas uma coisa que eu achei marcante além deste plano do estilo é de como se trata de um livro alegre, de-bem-com-a-vida-apesar-de-tudo, coisa realmente rara na literatura, que em geral tende a ser depressiva, decepcionada, etc. A divisão clássica de gêneros narrativos em Tragédia e Comédia frequentemente dá a entender que tratariam do lado pesado e do lado leve da vida em equilíbrio, mas a comédia frequentemente não é leve, tanto que acho que seria bem possível rebatizar esta divisão como "Desgraça e Escárnio". Ulisses certamente é debochado, frequentemente bem engraçado mas não se vê desprezo em suas páginas (como se escuta em George Carlin, ou Louis CK, etc etc). O que se percebe é realmente uma felicidade quase bizarra com a humanidade.

domingo, 9 de dezembro de 2012

Música (3)

Subvertendo a ordem burguesa das coisas, ou talvez só mera incompetência expressiva, comparei o repertório de técnicas da escrita do DFW ao de Ernst Reijseger, tentando elucidar um aspecto um artista vagamente obscuro (pelo menos no Brasil) por meio de uma comparação com um artista ainda mais obscuro.

Bem, aqui dois exemplos do Ernst Reijseger, que descobri completamente por acidente quando ele tocou em Brasília (!) no que foi a apresentação musical mais memorável que vi.

e
(meio Francis Bacon a boca dele nesta imagem congelada do segundo video, né?)

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

O morto do dia

Tenho alguma desconfiança em relação a um dos lugares-comuns favoritos de intelectuais (talvez tamanha predominância seja coisa de brasileiro ou de outros sistemas subalternos) de que a forma está inexoravelmente ligada ao conteúdo, que estética é também uma ética. Coisas do tipo "a estrutura deste romance denuncia entrelinhas fascistas", como algum autoritarismo inerente à terceira pessoa onisciente ou de que uma ausência de fragmentação hoje em dia necessariamente seria irônica. Acho que cada caso é um caso, e que moldes-de-leitura excessivamente específicos podem fazer com que o leitor ou crítico se torne aquela pessoa na eterna busca daquilo já definido, procurando nas obras dos outros confirmação daquilo que já sabe ou é.

Esta junção a meu ver meio problemática de estética e ética é mais fácil quando o assunto é arquitetura. Uma arquitetura que declaradamente não se importa com as pessoas que vão usar o prédio é uma arquitetura estúpida, autoritária, em que a Grande Ideia é mais importante e pode sacrificar qualquer conforto ou razoabilidade. Uma arquitetura que só negocia com a tecnologia e a força da gravidade e seus próprios ideias e nunca com as pessoas.

O fato da maioria de seus prédios pertencerem ao Estado só torna a coisa mais sinistra.

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Uma das minhas maiores alegrias ao morar em Belo Horizonte era falar mal dele. Lá, ele era praticamente um herói, orgulho de Minas, etc, e eu chegava com uma lista de umas dez histórias em que ele mostrava sua capacidade para o absurdo. De quando ele impediu a reforma acústica do teatro nacional porque ele estupidamente curtia carpete nas paredes, ainda que fosse péssimo para qualquer apresentação (musical ou não). Ou quando ele se colocou contra uma reforma que aumentaria significativamente a segurança do Eixo Rodoviário se justificando simplesmente com "não foi assim que eu imaginei Brasília" (e os governantes imediatamente cederam à sua exigência ridícula... como se ele tivesse desenhado a pista). De como ele até hoje defendia o Stalin sem reservas (sem nem as mínimas reservas com as quais o Heidegger deixou de  renunciar o nazismo) e todo mundo passava a mão na cabeça daquele orgulho brasileiro, eternamente gratos por termos alguém que a Civilização Desenvolvida gostou (bem menos que nós mesmos, claro, garbosos e felizes por sermos talvez um pouco mais que futebol e bunda).

Todo mundo que fala bem de Brasília (e eu não sou um deles) fala de como o desenho da cidade é fascinante, que Niemeyer é um gênio. Esquecem que o desenho da cidade é do Lúcio Costa, o Niemeyer  fez foi os prédios, prédios que precisam de luz acesa ao meio dia, prédios de sub-utilização estúpida de espaço, de uma tara perpétua por concreto, quase tudo parecendo ou prisão soviética ou aquário abandonado.

domingo, 25 de novembro de 2012

Música (2)

(com todas as cordas)

Barba enganada?

O post de hoje tem origem neste texto: http://etudeslusophonesparis4.blogspot.fr/2012/11/barbas-pouco-confiaveis.html .

Eu gostei do romance e a Elvira não gostou. Parece que a prática cabível seria de dar os ombros e ignorar a existência ou qualquer validade do texto ou tentar escrever uma resposta furiosa-nas-entrelinhas dos porquês ela estaria errada. Afinal, o campo literário seria feito de disputas, não? É, não sei se acredito tanto nisto, ou pelo menos que eu teria interesse em participar desta maneira. O texto é bem escrito, bem argumentado, cita as coisas com pertinência. Certamente tem bem mais propriedade do que as primeiras impressões que postei aqui umas semanas atrás.

Conversei brevemente com ela pelo twitter hoje, esbarrando toda hora no limite dos 140 caracteres, então resolvi fazer um post aqui, já que seus comentários inspiraram algumas ideias novas. 

(tenho como certeza de que os livros não terminam quando a gente lê a última página; quando a obra não é imediatamente esquecível, a gente vai relendo mentalmente, usando nossa memória faltosa, pelo resto da vida. Por isso é acho a resenha-de-lançamento é um desafio interessante porém bizarro, quase artificial, como um violonista tocando sem certas cordas)

(spoilers abstratos: não digo o que acontece no final da história mas vou esmiuçando o que vejo nas entrelinhas)

(Não vou escrever necessariamente para rebater o que a Elvira disse, este post é meio que escrito pensando em voz alta.)

Vi no twitter os primeiros comentários da Elvira sobre a leitura do livro do Galera e já imaginei que ela não fosse gostar. O livro de Galera não é um livro intelectual, crítico, como Elvira Vigna é (e não dou valor de "qualidade desejável" automático a essas duas palavras). É um livro de historinha, bem quadrado, e quem leu qualquer livro da Elvira sabe que não é bem este o caminho que ela trilha. 

Acho que um obstáculo central é a deliberada (ou aparentemente deliberada) falta de vontade de crítica em Galera. O que há é uma vontade de simplesmente ver, em vez de ver defeitos, construir, no lugar de refazer (melhor, diferente). Não é uma postura tão popular nos meios acadêmicos, ainda mais brasileiros. O intelectual no Brasil sempre se fez pela vontade de mudança diante da realidade tétrica do país (talvez um pouco menos hoje já que dá pra pobre comprar iPhone). Iniciativas intelectuais precisariam pautar por caminhos de mudança, ou crítica apontada e delineada, como quem sempre pergunta "o que há de errado?"

Vejo inteligência e sensibilidade na literatura de Galera, mas pelo que vejo ele não negocia com este repertório. Este caminho consagrado é um que conseguiria responder sem titubear a pergunta "no fim das contas, o que é que você está dizendo com este livro", e imagino o Galera meio perplexo se alguém chegasse a ele com esta pergunta. O livro simplesmente é.

Como exemplo deste aspecto de sua obra, acho que é possível citar a questão do sexo , sempre presente em seus livros mas sempre (pelo que consigo lembrar) sem qualquer libertação do cristianismo pudico. As mulheres no livro de Galera não aparecem gloriosamente libertas das amarras de casar virgens, ou de só fazer sexo por amor, depois de vários encontros "para ver se o cara é mesmo sério". Elas só trepam. Não são elogiadas como inteligentes /libertas/certas por fazer isto. Elas só fazem, com amor, sem amor, gozando e às vezes não. É algo que existe.

O método da obra dele é como se a todo tempo o autor falasse "olha".

(claro que não defendo que o autor é isento, imparcial, e "mostra a realidade como ela realmente é", etc etc, Não estou falando que é errado criticar as escolhas do livro ou o método do autor, só acho interessante notar o que há de diferente de muito que foi feito em literatura e crítica no Brasil)

É meio estranho lidar com um método estético como este. Posso citar como referência o reverenciado  (por mim e pelo Galera) Cormac McCarthy. Como dá pra perceber, gosto de falar de literatura, de tentar destrinchar um pouco o que acho de interessante, etc etc. Fico (se me deixarem)  horas e horas falando sobre o David Foster Wallace, sobre o Coetzee, sobre o Machado de Assis, sobre o Sérgio Sant'Anna. Com o Cormac McCarthy, só posso dizer que o cara é foda*. É outro cara que ressalta o que há de material, de plástico, (só que em um nível bem superior ao de Galera. Não que seja demérito a Galera estar aquém do Cormac, estaríamos (quase) todos fodidos se isto fosse um xingamento). Blood Meridian, por exemplo, é um livro sobre chacina contínua, genocídio mesmo, sangue e ossos e cadáveres, sem qualquer  dicção do medo ou do nojento, e em nenhum momento vemos qualquer crítica, explícita ou implícita, na narrativa. O All the Pretty Horses passa um tempão falando de coisas que decorreram da revolução mexicana, e o tratamento da coisa é quase como se tivesse sido um evento do clima.

* O palavroso DFW falando sobre o Cormac: http://www.salon.com/1999/04/12/wallace/ : "Don't even ask".

Não vejo o Galera como um seguidor/copiador do Cormac (existe um interesse pela oralidade bem diferente do laconismo quase bizarro dos diálogos do Cormac, por exemplo, e também uma vontade de registro de contemporaneidade e pequenas banalidades que não são as banalidades-levado-ao-grau-cósmico tudo-é-banal/genocídio-é-banal do Cormac. Quase tudo no Cormac é no grau cósmico), e sim como dois autores de sensibilidade produtiva semelhante. A obra de Galera é como uma foto (proposital, sim, autoral, sim, escolhida, sim) daquilo que ele viu. Uma foto muito bem escrita.

Mencionei este aspecto não-intelectual do livro para Elvira como indicativo de que ela não fosse gostar e ela falou que o novo livro do Lísias, sobre suicídio, não é um livro intelectual mas que ela gostou. A questão que vejo aí é que o livro de Lísias é pessoal, e o livro de Galera é impessoal. Quase tão impessoal quanto o Mãos de Cavalo (e tenho dificuldade em pensar em um livro mais frio na literatura brasileira, tirando os poemas do Cabral). O problema é que vejo como sendo os momentos mais pessoais do Barba como os piores, em que  se fala (em vez de se encenar) sobre o budismo, personagens conversando só para o Galera falar pro leitor a opinião dele (não muito comum, não desprovida de interesse, mas falada, meio achatada), e os mais distanciados, descrições de cenário e etc, da ação, como sendo os melhores. Como falei antes, um autor que me parece mais produtivo no caminho da especificação/especialização do que na vontade de abarcar todas as possibilidades presentes no texto.

(achei meio maldoso chamar a Jasmim de de "recepcionista de lojinha de turismo que fala sobre mito" , o que dá a ideia de algo meio artificial/incomum/idiossincrático (como me parece a prostituta que lê Nietzsche), quando o que vi foi uma mestranda que tira uma grana naquele servicinho turístico. Gostei da composição da personagem dela)

No final do texto da Elvira há um certo pedido/vontade de explicitação do processo ficcional, de abertura para o diálogo, e de fato isto não existe. 

Pelo que transitei e transito pelo mundo acadêmico/intelectual, vejo que esta é outra constante. O intelectual quer falar, quer discutir. Sim, isto é valoroso (e este post é uma vontade de conversa), mas de novo é uma ausência em Galera que me parece deliberada, proposital. Há uma ideia meio difundida no meio intelectual que diz que um livro hoje em dia que não explicita seus quês de artifício tem algo de mentiroso (sem qualquer conotação lúdica à palavra), que haveria aí uma vontade de objetividade, imparcialidade, superioridade implícita em procedimentos narrativos "naturais" ou "naturalizados". Que mostrar os andaimes é como que a coisa honesta a ser feita.

Será mesmo assim? A metalinguagem me parece interessante para enxergar os procedimentos e reconhecê-los como tal, mas seu encenamento artístico nem sempre é produtivo, não vejo que ela deve ser tomada como método contínuo. Os trechos sobre literatura no Cordilheira são os mais fracos do livro, a conversa do escultor em Cachalote eu achei um saco. Como postei anteriormente, é um autor do material, e não do abstrato. É uma coisa valorosa de se ter em consideração, mas nem sempre presente de forma explícita. E o que dessa predominância dos andaimes (no meio intelectual, nos romances literários, metalinguísticos, lidos no mundo acadêmico) expostos não teria de mera repetição?

Acho que este encobrimento é uma característica importante do texto: o livro é cheio de silêncios implícitos, meio fora de moda diante de tantos silêncios explícitos em outros textos.No lugar de falar tanto sobre a dificuldade de falar, sobre as imposições do falar, simplesmente se deixa os silêncios em silêncio, e achei eles suficientemente fortes desta forma, diria até mesmo perfeitamente cabível. 

O romance todo é uma coisa que não quer conversa (apesar de ter tantos diálogos) porque a enxerga como não sendo possível, não é só o pai do início do livro que acha que é impossível convencer alguém de qualquer coisa (um publicitário premiado, vale lembrar). O personagem ao fim chega a explicitar: não temos escolha, mas precisamos agir/pensar como se tivéssemos. É o radicalismo de um personagem radicalista, mas o que se sobressai do espírito da obra (e do Mãos de Cavalo, que narra uma tentativa fracassada de construção pessoal) é a de que os principais eventos de nossa vida estão fora de nosso controle, que somos arremessados para a existência com muito de nossas vidas já decidido por nós (raça, sexo, início social, impedimentos neurológicos, mundo com o qual temos que negociar). Temos um espaço de movimentação para não sermos sufocados (alguns de nós, pelo menos, e no livro nem isto é uma certeza), mas as questões e impasses que nos são impostos não são de escolha nossa. Não é tanto um destino que em algum lugar está traçado para nós (embora o livro negocie de forma incomum com o mítico...) quanto o reconhecimento de uma fraqueza inescapável. É um livro de desespero tranquilo.

Um livro que se mostrasse como construção seria um enfraquecimento destas entrelinhas (e linhas, quando o personagem fala). Construção não implica escolha?

Encerrando, vou rebater de forma mais pontual uma crítica da Elvira: é verdade que o livro é construído em dualismos, mas a meu ver eles não são "falsos no livro", e sim borrados: há a separação da vida urbana em relação a "vida afastada", mas qualquer paraíso possível de Garopaba é minado por uma corrente subterrânea de sinistro que permeia o livro, de segredos que ninguém fala, de cochichos que comentam todo movimento numa vígila incômoda. O próprio protagonista com sua condição neurológica ficaria bem mais bem servido no anonimato da urbe. O duelo do homem versus a natureza é feito, para nós, de vitórias sucessivas e derrotas aleatórias, que tiram o caráter definitivo das vitórias mas que não as destrói: o protagonista é exímio nadador e morre afogado. Continua tendo sido grande nadador. Não há lado que se sobressai, certo e errado claros, e sequer vejo uma tentativa de equilíbrio. A do destino, por exemplo, devemos reconhecer o destino e fingir que ele não existe. Qual a solução? A solução é que não existe solução.

(sobre a questão de gênero, no livro, claramente pertinente, não tenho o que dizer. Acho o livro curioso neste aspecto, mas não tenho leituras no assunto para falar muito. Talvez um dos privilégios de ser homem-branco é que o guideline genérico "don't be an asshole" me pareceu suficiente para lidar com questões assim. O que um homem heterossexual pode falar disso? A resposta não é "nada", mas eu não sei o que é. O livro parece ser algo neste sentido, mas não sei ainda se acho ele bom ou ruim por este lado)

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Post-scriptum mal escrito: Ah, se alguém se interessou em ler o Cormac, leia em inglês. Estou lendo "The Road" (bom, mas não é dos melhores) e por curiosidade abri a tradução brasileira e me desagradou logo no primeiro parágrafo. É uma história pós-apocalíptica, e a abertura do livro escreve como cada dia é mais cinza e frio que o anterior escrevendo "like the onset of some cold glaucoma dimming away the world". Não lembro exatamente das palavras da tradução, mas sei que foi colocado a palavra "progressivamente" no meio. "Progressivamente", pelo menos pra mim, ressoa como uma palavra do mundo moderno, da técnica, e a linguagem do Cormac é toda bíblica, mítica, épica (e todas essas coisas fora-de-moda "impossíveis hoje em dia"). E no Cormac a linguagem é só quase tudo.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Entre Aspas, com tradução


Li faz alguns meses (já postei trechos desse livro) mas ontem de noite lembrei de um trecho foda (The Tunnel, William Gass):
“Do Rivers
She preferred me to begin at the base of her neck. I preferred to begin a bit higher up, on the shoreline of her hair. With my right forefinger slanted slightly to bring the nail into play, I would inscribe the course of a river – so gently, so slowly, it might ha
ve been a tear’s trail – running its convoluted way the length of Lou’s back, semicircling a buttock, and concluding in her crack, at a fulfillment one might call a delta.
Do rivers. That was the command. She would be lying only somewhat on her side. Do rivers meant she was happy, but wanted, now, to sleep. I would have to unspoon myself in order to obey, allow some space for the play of my arm. Then I’d trace the meandering of a little stream, or the sluggish flow of a broad expanse of water, depending on whether I was using the edge of a nail or the ball of my finger. Water, in our world, did not simply flow downhill, however. Rivers rose over shoulder blades; they turned up the slope of a buttock; they slid sideways, rippling over ribs, or subsided towards the small of the back as a raindrop does to create a puddle. Hydraulics didn’t matter; only the shape of the line, the speed of its passage, and the feel of the riverbed on Lou’s back made a difference to her, while I kept my mind on the meaning of its motion, because each river inscribed a message, at least in the beginning, when rivering was the summation of us – was what our love was – just as the expression “going to the river” meant making out, particularly canoodling out-of-doors, in a private corner of a park, or on a secluded sandbar, preferably one with handsome overhanging trees.”

Tentativa rápida de tradução:
Faça rios
Ela preferia que eu começasse na base de seu pescoço. Eu preferia começar um pouco mais em cima, na linha costeira de seu cabelo. Com meu indicador direito ligeiramente inclinado para trazer a unha para o ato, 
eu inscreveria o curso de um rio - tão levemente, tão lentamente, que poderia ser um rastro de lágrima – correndo seu caminho torcido pelo comprimento das costas de Lou, semi-circulando uma nádega, e concluindo em sua fenda, um encontro que poderia ser chamado de um delta. 
Faça rios. Era este o comando. Ela ficaria deitada apenas um pouco de lado. Faça rios queria dizer que ela estava feliz, mas queria, agora, dormir. Eu tinha que me desenconchar para poder obedecer, permitir algum espaço para o brincar de minha mão. Então eu traçaria o meandro de um riacho pequenino, ou o fluir preguiçoso de uma larga expansão de água, dependendo se eu estava usando a ponta da unha ou o dedo inteiro. Água, em nosso mundo, não fluía simplesmente morro-abaixo, contudo. Rios subiam por ombros, curvavam na inclinação de uma nádega, deslizavam para os lados, correndo sobre as costelas, ou se diminuíam na direção da parte de baixo das costas como uma gota de chuva faz para criar uma poça. Hidráulica não importava, só a forma da linha, a velocidade de sua passagem, e a sensação da bacia hidrográfica nas costas de Lou faziam uma diferença para ela, enquanto eu mantinha minha mente no significado de seu movimento, porque cada rio inscrevia uma mensagem, pelo menos no início, quando riar era a somação de nós – o que nosso amor era - apenas como a expressão “ir para o rio” queria dizer dar uns amassos, particularmente ao ar livre, em um pedaço privado de um parque, em um canto recluso, preferivelmente um com belas árvores com galhos pendendo por cima.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

O monge e o sangue

O novo livro do Daniel Galera é ótimo. Escrevo este post poucas horas depois de ter terminado a leitura, ainda estou ruminando o romance um pouco, mas certamente tem muita coisa de interesse nele.  O James Wood começa a falar do Brief Interviews with hideous men do DFW citando vários trechos do livro, para ressaltar seu estilo, seu tom, seu interesse. Auerbach, com maior profundidade do distanciamento histórico, faz o mesmo. Acho um bom método.

[Beta é a cadela do protagonista, o lugar é Garopaba, cidadezinha-linda-turística dez vezes mais cheia e cara no verão que em outras estações (em outro trecho o narrador ou um personagem fala que existe verão e o resto é inverno]

"Volta pela casa andando e empurrando a bicicleta pelas ruas que contornam a lagoa das Capivaras. A luz dos postes tinge de amarelo oleoso o carpete de salvínias que cobre quase toda a superfície da água poluída. Um turbilhão de mosquitos paira em cima do pequeno trapiche apodrecido. Cachorros imensos começam a sair do mato de um terreno baldio e ele enfia o dedo na coleira de Beta por precaução. Muitos integrantes da matilha são cães de raça, rottweilers, pastores alemães ou cruzamentos nos quais reconhece traços de collies e labradores, todos com a pelagem eriçada de suor e frio, imundos e magricelas, com as línguas de fora, percorrendo a noite sem destino aparente como se despistados por um líder fantasmagórico. São figuras típicas da cidade. Cães de grande porte abandonados por veranistas que vivem a centenas de quilômetros dali. Seus instintos não parecem capazes de sufocar  por completo o desejo impossível de voltar para casa"

É um livro sobre a relação da realidade (e seus momentos banais e curiosos) com o mito localmente construído, as distâncias e as conexões entre essas duas coisas, sobre a vontade e as dificuldades de se  isolar, de fugir, sobre fidelidade e as duras penas da coerência. Não é este o enredo do livro, mas é um livro cujo espírito ou corrente subterrânea me faz pensar em uma das poucas frases realmente bonitas ditas pelo Woody Allen (que na maioria das vezes se contenta em usar sua inteligência simplesmente para ser espertinho), algo do tipo "a única coisa que é para sempre é o amor não-correspondido".

A estrutura do livro não é forte como a de Mãos de Cavalo, mas também não é fraca como a de Cordilheira. É um livro longo, às vezes arrastado, mas a lentidão serve seu propósito dentro do todo da coisa. Para mim ficou claro que o tamanho do texto não fez com que o autor deixasse de pensar a utilidade interna de cada pedaço da narrativa.

Meu primeiro instinto seria questionar o valor das discussões sobre budismo e de narrar o contínuo rechaçamento da doutrina pelo protagonista (soa como uma coisa que tá meio que explicando o livro no meio do livro, o que geralmente tira a graça da ficção), sinto a vontade da arrogância do crítico de tomá-la "objetivamente" como uma parte menos interessante da narrativa, mas me dou conta que esta antipatia é uma coisa das minhas leituras mesmo: quando li Ana Kariênina achei um saco todas as discussões sobre o futuro da Rússia, fui ler os Irmãos Karamazov e larguei no início porque não gosto muito quando a ficção vira palco de troca direta e explícita de ideias (o único que me agrada nisto é o Delillo, que faz de forma bizarramente atravessada, numa ironia mais profunda do que a ridícula/engraçadinha que hoje nos contamina). Não taxo de defeito do livro, portanto, especialmente considerando que é uma coisa que faz bastante sentido (talvez até demais) com o resto da história, coloco mais como uma coisa que não gostei tanto. De novo, o poder do Galera está no lirismo e na materialidade. Acho que perto disto o que há de abstrato é fraco. Não é propriamente ruim, só fica em desnível com a qualidade marcante do resto. Felizmente, este é um livro bem calcado no material, no físico.

No meu post sobre Cordilheira eu tinha falado do título, de como eu o achava interessante. Tinha um apelo ligeiramente trash, mas sabendo que o autor estava longe (felizmente) da estética do kitsch ou de ironias tristes de risinho de canto de boca, a impressão inicial era a de um desafio lançado logo na capa. Como escrever um romance straight-face e inteligente com um título deste? Tendo lido, fica o gosto meio ruim de um apelo mais mercadológico para a escolha, porque certamente é um título que chama bastante a atenção na estante da livraria ou em menções en passant, e embora não seja completamente descabido dentro da narrativa, acho que era possível encontrar um título melhor para o livro. A calmaria (necessária) da primeira parte do livro, do protagonista estabelecendo sua rotina no lugar novo é lido com uma sobrancelha meio erguida, quase fazendo com que o leitor feche rapidamente o romance para verificar na capa se o título é aquele mesmo. Sem contar que (como tem um pouco de spoiler, continuo no comentário).

Talvez no futuro eu consiga tirar um texto mais coerente e detalhado dessa leitura. Há uma metáfora interessantíssima (ou pelo menos alguns desdobramentos mais profundos) na condição neurológica do protagonista, e também há terreno fértil para um pensamento sobre o que se entende por masculinidade nos dias de hoje e no passado. No momento estou só naquela satisfação meio silenciosa de ter acabado de ler um bom livro.

domingo, 11 de novembro de 2012

Abre aspas 6


Ainda estou na página 100 (final de semana de preguiça, como a maioria) mas estou gostando do Barba Ensopada de Sangue, do Daniel Galera:

(os diálogos não são marcados com travessão, estilo Cormac. É um pai falando com o filho sobre seu suicídio)

"Eu vou me matar amanhã.
Pensa sobre o que acabou de ouvir por um bom tempo, ouvindo a respiração descompassada sair em curtos disparos pelas narinas. Um cansaço imenso cai sobre seus ombros de repente. Enfia a foto do avô no bolso, seca as mãos na bermuda, se levanta e caminha em direção à porta da rua
Volta aqui.
Pra quê? O que tu quer que eu faça depois de ouvir uma merda dessas? Porque de duas uma, ou tu tá falando sério e quer que eu te convença a mudar de ideia, o que seria a pior sacanagem que tu já me fez na vida, ou tá tirando uma da minha cara, o que seria tão sem noção que prefiro nem descobrir agora. Tchau.
Volta, porra.
Fica parado ao lado da porta, olhando para trás, para o piso triste de lajotas de argila rosada separadas por listras de cimento, para a samambaia viçosa tentando escapar de um xaxim pendurado ao teto por finas correntes presas a um gancho, para a atmosfera perene de fumaça de charto que habita a sala com sua consistência invisível e cheiro adocicado e estranhamente animal.
Não tô brincando e não quero que tu me convença de nada. To te informando de uma coisaq ue vai acontecer.
Não vai acontecer nada.
Entende o seguinte. É inevitável. Decidi faz semanas num momento da mais pura lucidez. Eu tô cansado. Tô de saco cheio. Acho que começou com aquela cirurgia de hemorroida. No meu último checape o médico viu os exames e me olhou com uma cara de morte, de decepção por toda a raça humana. Tive impressão que ele ia se demitir da minha causa como se fosse um advogado. E ele tem razão. Tô começando a ficar doente e não tô a fim. Não sinto mais o gosto da cerveja, os charutos tão me fazendo mal e e não consigo parar, não tenho vontade nem de tomar Viagra pra fuder, não tenho nem a nostalgia de fuder. Essa vida é comprida demais e não tenho paciência. Viver depois dos sessenta, pra quem teve uma vida como a minha, é uma questão de teimosia. Respeito quem investe nisso, mas não tô a fim. Fui feliz até uns dois anos atrás e agora quero ir embora. Quem acha errado que viva até os cem se quiser, desejo sucesso. Nada contra."

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Biografado

Esse fim de semana (e uns dias antes, já que andei meio atrapalhado) foi tempo de leitura da biografia do David Foster Wallace. A opinião a respeito do livro tem sido meio mista: o cara de fato revela muitas coisas que leitores assíduos (semi-enlouquecidos) da obra do Wallace e dos destroços surgidos de sua morte (flerte com a fulana do Prozac Nation, etc) não conheciam. O texto, também, é bem escrito, escrito com sensibilidade e verdadeiro interesse no assunto e na pessoa. No entanto, há bastante desigualdade no tempo que se passa com certas partes: pouca coisa da infância de Wallace é desenvolvida, em especial o relacionamento meio problemático/bizarro que tinha com a mãe, elemento quase tão ou talvez até mais importante para sua formação pessoal quanto seu alcoolismo e sua carreira brilhante. A infância é narrada como uma espécie de idílio lindo, de pais segurando as mãos lendo Ulisses, e de repente ela sai de casa, e de repente Wallace meio que odeia-e-ama a mãe. O menino é tratado com amor, mas quando se muda para a faculdade é como se não tivesse mais família... A elipse é recurso cabível quando se escreve literatura, ficção. Pra biografia, bem menos.

Quem se interessa por Wallace se beneficia de ler, e é uma leitura ágil, agradável (na medida em que é possível dado o final da história), mas quem se interessa por Wallace já comprou ou já vai comprar o livro. Está longe de poder querer ser o livro definitivo sobre o cara.
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"Soon afterward, he got so mad at her that he threw her coffee table at her. He sent her $100 for the remnants. She had a friend who was a lawyer write back to say she still owned the table, all he'd bought was the "brokenness""

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Poemas da Mary Karr, ex-namorada/noiva/mulher-problema da vida de Wallace, sobre o suicídio dele:
Não sei o que pensar desses poemas.

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Lendo resenhas na Amazon, bizarro ver gente lendo a biografia do cara e resenhando e mencionando que não leu nada da ficção dele. Uma dessas figuras estranhas reclamou que o livro era ruim porque não dava a ver por que o cara era tão bom quanto dizem... Resenhas reclamando que o biógrafo opina demais, outras reclamando que ele opina de menos... Lição (sempre repetida, sempre necessária) de que é impossível agradar a todos.

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Uma rápida máxima, pensada neste momento: o Infinite Jest é um livro alcoólatra, o The Pale King é um livro ex-alcoólatra.  O triste é que The Pale King é um livro impossível...

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Segunda Resenha para o Jornal Rascunho


Sérgio Sant'Anna, Páginas sem glória.

A título de curiosidade, alguém conhece um grande autor que tenha publicado um grande livro depois dos 70 anos? Saramago não conta, já que ele começou a carreira dele já aos 50...

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Iniciante / Consagrado

Talvez foi maldade, mas li no mesmo dia os ótimos quadrinhos de André Valente ( http://oandrevalente.com/ ) "Não Fui Eu" e "Batima" e a nova obra do Chris Ware, o Building stories.

Do que li de André Valente, não tem nenhum outro quadrinista no Brasil que trabalhe o elemento visual como ele. Um jovem pai tenta fazer dormir seu bebê e a sequência cronológica é desenhada em forma de espiral que progride para o centro, e não nas horizontais empilhadas consagradas na forma do quadrinho, dando a entender uma passagem de tempo que se torna mais forte com cada minuto insone... Batman mente para a mãe em uma carta falando que está tudo bem, enquanto os tétricos desenhos mostram sua rotina de funcionário de McDonalds, em dissonância intensa.

Mas Chris Ware é covardia. Até arrisco dizer que Chris Ware acaba tornando o meio dos quadrinhos menos interessante, com ele vivo e produzindo não dá pra ter aquelas inúteis e intermináveis conversas sobre "quem é melhor", todas adoravelmente veementes como se fosse possível determinar isto de maneira definitiva e objetiva.... quando se fala de quadrinhos, a meu ver não tem discussão, Chris Ware é mestre. Tem que esperar ele morrer para podermos debater neste tão importante campo.

Conversei brevemente com André e tinha falado que o único defeito que tinha visto em sua coletânea "Não Fui eu" é uma mistura de histórias de humor escrachado com outras de melancolia mais fina, mais sutil. São todas histórias bem curtas, e o registro da leitura acaba oscilando feito sismógrafo em tragédia tectônica. Imaginei que a coletânea não tivesse sido muito planejada como uma unidade de leitura, e sim a reunião do trabalho que ele achava mais interessante de publicar, já que é a primeira publicação de um cara bem jovem, e tudo mais. Na conversa, ele acabou dizendo que tinha sido mais ou menos isso, vontade de publicar logo as coisas que ele achava de melhor qualidade. E de fato são muito boas, em sua maioria, só que não tem aquela coesão que acaba beneficiando o todo.

Depois, fui ler Building Stories. Para quem não conhece:
É uma caixa com 14 folhetos/livros/posteres/jornais/cadernos separados em que Ware conta a história de uma mulher que perdeu uma perna em um acidente ainda criança e que (em alguns dos folhetos) mora no terceiro andar de um prédio sem elevador. Narra sua solidão, seu casamento, maternidade, infância, etc. Não existe ordem definida de leitura dos fascículos. 

É uma obra que chega a ser desagradável tentar descrever, já que precisamos usar adjetivos já gastos (sensacional, fascinante, maravilhoso, etc etc) com coisas que não são tão... É como falar que o acervo do Louvre é "grande", ou que a Nona de Beethoven é "muito boa".

Dentre os folhetos/etc estão dois falando a história de uma abelha, e em um deles em especial me fez lembrar do comentário que fiz ao André, essa coisa de um registro narrativo que destoa: é justamente neste livrinho vermelhinho com um círculo preto no centro que aparece na imagem acima (como não colocá-lo em cima de tudo?). Dentre a melancolia da solidão e incertezas da protagonista, temos a narrativa neurótica/obsessiva/ridícula (ou ridicularizada) de uma abelha, que me causou bastante incômodo (e não o incômodo-chique que tornou a palavra super-utilizada em discursos de  interpretação de obras artísticas). Mais adiante, em um momento de outro fascículo, consegui enxergar melhor o lugar deste livrinho vermelho e meio histérico entre os outros de qualidade tão imediatamente perceptível.

Estou há um tempo adiando escrever um texto rápido sobre a questão do clássico versus o contemporâneo, que o clássico já conta com certa pré-aprovação e que o contemporâneo o leitor tende a ter mais poder de decisão sobre aquilo que lê (não gostar de Machado de Assis é de certa forma uma ousadia. Não gostar de Ian McEwan é ok) e de como me agrada este aspecto do contemporâneo. Mas lendo agora o André Valente e o Chris Ware juntos, vejo que mesmo entre contemporâneos (para a desgraça de Valente, que disse "como eu posso querer ser cubista se Picasso ainda é vivo?") há também esta desigualdade na recepção, já que o desnível visto (depois corrigido) em Ware causou um impacto muito maior do que o em Não Fui Eu, puramente causado pela expectativa de ler uma obra de um autor consagrado (e por mim idolatrado) e um estreante...

***

Só uma nota final, para minha interpretação de Jimmy Corrigan apresentada no evento sobre quadrinhos na UnB algumas semanas atrás eu acabei focando no final e no início do quadrinho, lembrando aquela máxima de que o início e o fim de uma obra narrativa são elementos particularmente marcados na obra, que se há alguma dúvida sobre algum sentido mais ou menos uno de tudo que se leu, basta olhar a forma como o autor começou e encerrou sua obra. Para Jimmy Corrigan, foi muito útil (os textos do evento em breve serão disponibilizados online, postarei aqui) para tentar ver que o livro tinha mais em seu fundo do que sua superfície (linda) de ladainha depressiva. Agora chega o Chris Ware, embaralhando as folhas, misturando tudo. Gênio cretino.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Abre Aspas - 5


‎"Not all the people living at Beverly Home were old and helpless. Some were young but paralyzed. Some weren't past middle age but were already demented. Others were fine, except that they couldn't be allowed out on the street with their impossible deformities. They made God look like a senseless maniac. One man had a congenital bone ailment that had turned him into a seven-foot-tall monster. His name was Robert. Each day Robert dressed himself in a fine suit, or a blazer-and-trouser combination. His hands were eighteen inches long. His head was like a fifty-pound Brazil nut with a face. You and I don't know about these diseases until we get them, in which case we also will be put out of sight.
This was a part-time work. I was responsible for the facility's newsletter, just a few mimeographed pages issued twice a month. Also it was part of my job to touch people. The patients had nothing to do but stumble or wheel themselves through the wide halls in a herd. Traffic flowed in one direction only, those were the rules. I walked against the tide, acording to my instructions, greeting everybody and grasping their hands or squeezing their shoulders, because they need to be touched, and they didn't get much of that. I always said hello to a grey-haired man in his early forties, vigorous and muscular, but completely senile. He'd take me by the shirtfront and say things like "There's a price to be paid for dreaming" I covered his fingers with my own. Nearby was a woman nearly falling out fo her wheelchair and hollering "Lord? Lord?" Her feet pointed left, her head looked to the right, and her arms twisted around her like ribbons around a Maypole. I put my hands in her hair. Meanwhile around us ambled all these people whose eyes made me think of clouds and whose bodies made me think of pillows. And there were others out of whom all the meat appeard to have been sucked by the strange machines they kept in the closets around here- hygienic things. Most of these people were far enough gone that they couldn't bathe themselves. They had to be given their baths by professionals using shiny hoses with sophisticated nozzles.
There was a guy with something like multiple sclerosis. A perpetual spasm forced him to perch sideways on his wheelchair and peer down along his nose at his knotted fingers. This condition had descended on him suddenly. He got no visitors. His wife was divorcing him. He was only thirty-three, I believe he said, but it was hard to guess what he told about himself because he really couldn't talk anymore, beyond clamping his lips repeatedly around his proturding tongue while groaning.
No more pretending for him! He was completely and openly a mess. Meanwhile the rest of us go on trying to fool each other.
I always looked in on a man named Frank, amputated above both knees, who greeted me with a magisterial sadness and a nod at his empty pajama-pants legs. All day long he watched television from his bed. It wasn't his physical conditon that kept him here, but his sadness."
Segunda e terceira páginas do conto "Beverly Home", do livro "Jesus' Son", Denis Johnson.

Pensei em traduzir mas acho difícil este estilo minimalista, mais difícil de contornar imperfeições.

domingo, 7 de outubro de 2012

Pensamentos soltos

Enquanto não supero a preguiça pra fazer um post sobre ler literatura contemporânea vs. ler clássicos, aqui vão alguns pensamentos soltos que resolvi reunir aqui:

x-x

- Vontade de escrever um texto que diz que "uma pedra no meio do caminho" conseguiu prever os males urbanos oriundos do crack. Poesia brasileira, sempre engajada.

x-x

- Sei que não devo ser o primeiro a pensar ou dizer isto, mas vendo Cosmópolis ontem me dei conta que o Delillo é o Dostoievski do nosso tempo.

x-x

- Saudosas aulas de literatura do segundo grau:


"Então, alunos, o que Drummond faz neste poema Boitempo é um neologismo, ele inventou uma nova palavra"
"Quer dizer, professora, que se eu quiser eu posso simplesmente inventar uma palavra?"
"Nada disso. Só um grande poeta pode inventar palavras" 
Quando lembro deste momento, sempre imagino o Drummond pausando no meio da escrita do poema para se olhar no espelho e se perguntar "será que eu sou um Grande Poeta?" Ele daria uma pausa, pensaria um pouquinho, dá um sorrisim maroto e chega a conclusão "sim, sim, sou mesmo um Grande Poeta" e cria o neologismo.

sábado, 29 de setembro de 2012

Outro conto

B7
Ele viu o cavalo comendo a torre. Percebeu então que algo não devia estar dando certo. Ficou chocado com aquilo acontecendo bem na sua frente. Presenciar um desastre tão de perto. Não é todo dia. Ali. Na sua frente.
            Não era tão perto assim. Não conseguiria alcançá-los se tentasse. Mas sua posição permitiu que testemunhasse tudo. Tudinho.
            Talvez assim ficasse acordado. Era o fim daquela enrolação infinita. Melhor assim. Mesmo custando um companheiro seu. Não aguentava mais aquele vai-e-volta sem propósito. Uma enrolação sem fim. Indo de um lado pro outro à toa. Só ocupando espaço. Encheção de saco. Imaginava que era errado pensar assim. Que não deveria pensar assim. Mas pensava.

            Em seguida o cavalo foi pego pela rainha. Sumariamente. Sem chances. E ele viu tudo. Dois notáveis eventos consecutivos. Agora que a coisa anda de vez. Pelo menos foi o que pensou.

            E não há ninguém para pegar a rainha depois. Seria coisa demais. Três assim? Não acontece. Talvez seja errado desejar mais. Mas não aguentava mais o marasmo. Mexeção sem fim. Indo pra lugar nenhum. Podia ser que havia algo por trás disso tudo. Algum plano aí. Podia ser. Mas ele não via nada. Não sabia de nada. Sua posição era desprivilegiada. Nada passava por ele. Só ficava parado. Olhando.
            Que pelo menos tivesse algo pra olhar.
           
            Um de seus colegas mais imediatos avançou para proteger a rainha. Bem ali do lado. Agora qualquer coisa que acontecesse algo com ela o troco viria na hora. E ele poderia ver tudo. Mas o mais provável era que nada acontecesse. O que não impedia que ele ficasse torcendo.
            Ele ficou pensando na rainha. Que poder impressionante. Tudo que ela faz deve ser muito bem pensado. Seu peso é enorme. Como consegue alcançar quase qualquer coisa. Como deve estar sempre sob cuidados. Protegida por outros menos importantes. Claro. Depois dela só há menos importantes. Não só ele e seu colega imediato. Não. Eles estão abaixo de tudo. Até um cavalo e uma torre estão abaixo da rainha. Tudo está abaixo dela.
            Isso não contando o rei. Claro. Mas ele não conta. Não faz nada. Só fica lá fugindo. A rainha é quem faz tudo. Ou ao menos quem pode tudo. É um orgulho simplesmente estar perto dela. Seria pra ele. Se tivesse sido ele o protetor.

            A próxima ação ele só percebe por uns vultos. Algo no cenário se modificou. Algo sutil. Longe demais dele. Fora do alcance de sua visão. Certamente alguma coisa mudou. Não saberia dizer o quê. E não lhe informam o quê. Pra ele ficou na mesma. Como se não tivessem feito nada.
            Ele sabe que fizeram alguma coisa. Só julgam que para ele não faz diferença. Talvez não faça. Mas talvez faça. Pode ser por causa disso que ele se dê mal no fim. Mas não sabe. Não vê e não lhe contam.
            Não sente medo. Sente frustração.

            Um bispo se mexe. Atravessa larga distância. Passa por vários inimigos. Não causa dano algum. Nada de novo.
            Sentia medo. Relutância. Mas era como uma camada por cima de uma grande empolgação interior. Uma forte vontade de participar. Uma possível brutalidade era uma sugestão menos forte que a glória certa prometida. Era isto o principal. Qualquer coisa que depois viesse viria por cima. Sem afetar essa fundação. Vinha, empilhava e, sim, ficava, mas sem parecer que fosse comprometer o principal.
            Não que tivesse escolha. Estar ali ou não. Não nessa questão. Era o que era e ponto final. Mas ainda sim no início ele via algum ideal ali. Ou pelo menos algum motivo. Alguma motivação.
            O comprometimento da base veio depois. O tremor do medo se transformou em um tremor de inquietação. Já não aguentava mais a mesma pasmaceira. A repetição. Parecia esperar por algo desconhecido. A demora era pior por essa indefinição. Na sua imaginação ela se estendia até além do horizonte. Até lá, tudo parado. E a inquietação se transformando em um tédio que atravessava ossos.
           
            Uma torre inimiga se aproximou. Ou uma rainha. Ou alguém como ele. Só deu pra ver o tipo de movimentação. Quem realizou, não. Nem quis saber.
            Talvez pudesse acompanhar melhor os acontecimentos. Isso se não fosse aquele tédio e desinteresse para com ele. Aquela imobilidade imposta. Aquele isolamento irritante. Ficar parado ali só olhando o chão. O pequeno espaço ao qual ele foi designado. Permanentemente, parece. Se o solo fosse da mesma cor que seu corpo talvez já tivesse começado a se fundir. E quando fosse convocado não teria mais como atender às ordens. Excesso de espera. Grudado no chão, não dá, desculpe.

            Riu um pouco de si próprio. Uma imaginação à solta tem seus perigos. Já estava viajando. Mas também. Ia fazer o quê? Perto dele só havia um cavalo. E nem bloqueado por ele o maldito estava. Pra piorar ele era o único que não atrapalhava o de trás, dizia para si mesmo. Qualquer coisa é só passar por cima. Um total inútil. Não vale nada. Que morresse também, o maldito. Mesmo sendo o último que sobrava ali. Que morresse também.

            Não era o último cavalo. O inimigo acabou de mostrar isso. Era um recuo, mas de tal forma que agora ele conseguia enxergar melhor. Antes, não via. Inimigos covardes. Ou não, talvez houvesse alguma ideia por trás.
            Era uma merda. Não sabia de nada. Ficava lá sem saber de nada. Se bobear, ainda tinha um terceiro cavalo sobrando sem ele saber. Que todos fossem pro inferno. Ele não se importava mais. De que adianta?
            Aliás, qual é o propósito disso tudo? Para que estavam todos ali? Para que que ele estava ali? Para que toda essa disputa? Seria realmente necessária? Talvez nem precisasse estar ali...

            Era melhor não pensar nessas coisas. Não servia de nada. Mesmo se concluísse que aquilo era errado. Que não deveriam estar fazendo aquilo. Teria que continuar de qualquer jeito. Não havia escolha.
            Pois que fosse um bom espetáculo. Muita ação, muitas mortes ali na sua frente. Tudo rápido. Se não há sentido, que haja sangue.
            Sua crueldade provinha da frustração daquele marasmo alienado. Não é preciso que ele perceba ou conclua isso e nem que seja com essas palavras para que seja verdade. Sente o tédio e sofre a alienação. Nesse fracasso ele busca alguma saída. O desinteresse com o qual agem com ele é contagioso e revertido. Ele passa a se importar pouco com o todo. É claro que sentiria medo de expressar abertamente essas suas vontades. Provavelmente negaria tudo com veemência caso fosse confrontado.
            Não que fossem perguntar.

            Um conhecimento superior não lhe era impossível. Ele até pressentia de forma vaga aspectos da realidade que lhe eram desconhecidos. Complexidades ocultas. As milhares de possibilidades. Mais do que o número de átomos do universo. Mas mesmo assim... As possibilidades não eram dele. Ele não importava. A vista de cima talvez fosse interessante. De onde estava é que não era. Ele era dispensável. Não tinha voz. Nunca teria.
            Sentia que sua pequenez era tamanha que nem se por algum motivo buscassem seu ponto de vista realmente lhe seria dada a voz.

            Seu colega imediato mais próximo avançou dois espaços. Um salto. Como se tivesse se atirado adiante. Para o nada. Para nada.
            Ele se irritou com aquilo. Mesmo de longe. Não via motivo. Não havia nada lá na frente pra ele fazer. Nada para ele proteger. Nada para ele atacar. Nada. Não havia propósito. Era uma coisa sem razão. Era só para se mostrar. Mostrar que pode. Olha, olha só o que eu faço! Uma imbecilidade. Poder, qualquer um pode. Ele mesmo pode. Os outros todos podem. Não é por isso que precisa fazer. É por merdas assim que se bota tudo a perder.
            Talvez essa afobação fosse para chegar logo no fim do outro lado. A última linha. Ele mesmo já tinha ouvido essa conversa várias vezes. Chegando ele ou um de seus semelhantes no ponto mais longe haveria uma promoção. Poderia virar cavalo, bispo, torre. Rainha, até. Diziam que quase sempre dava rainha. Mais uma rainha no time. Outra força avassaladora. Não sabia como seria a transformação (e no caso da rainha, quase não queria saber). Nem sabia se era verdade. Todos falavam nisso e ninguém confirmava se era verdade.
            Mas talvez fosse. E talvez fosse isso que aquele seu colega afobado queria. Mas era muito longe e o caminho nem estava livre de inimigos. Impossível. Impossível que fosse verdade e impossível que ele chegasse lá. Era só um babaca, mesmo. Um grande babaca.

            O colega que havia avançado foi pego pelo inimigo. Um bispo veio e tomou seu lugar. Fez com que deixasse de existir. Saiu de cena sem deixar mancha nem cheiro. Nem mesmo uma mínima marca no chão de onde desaparecera.
            Sua reação inicial foi de comemoração. Parecia uma punição adequada àquela estupidez anterior. Uma vingança invisível. Como se ele mesmo fosse quem tivesse designado aquilo para acontecer. O responsável distante. Quem assinou embaixo. Isso, durante.
            Depois, outro gosto veio à tona. Uma força por detrás daquilo. Atravessando cortinas até chegar a ele. A limpeza da brutalidade. A eficiência e rapidez. A inconsequência. A leveza na irreversibilidade. Como se fosse fácil. Talvez fosse.
            Como se não custasse nada.
            E poderia ter sido com ele.

            O bispo leva a dele com a torre. O mesmo que matou seu colega agora se junta a ele. Se é que não ficam separados também quando passam pro outro lado, inimigos eternos.
            Não era em metafísicas que ele pensava agora. Sua preocupação era com as coisas mais palpáveis. Agora percebia melhor tudo. Ou talvez parte do todo. E não se parabenizava por isso. Sabia que até alguém ainda mais burro entenderia. E se ele mesmo não fosse tão burro, pensou, já teria percebido antes.
            Seu colega tinha sido isca. Eles sabiam o que aconteceria com o coitado. Lançaram-no cientes disso. Seria um sacrifício necessário. Cede-se um pedaço para abocanhar outro maior. Um bispo faz mais falta do que seu colega. Fazia mais falta do que ele. O saldo era positivo. Uma transação lucrativa.
            Foi assim que o colega foi. Com um monte de esperanças em cima dele. Torcendo para que desse certo. Para que ele morresse. Muito produtivo. Sua morte fazia funcionar o plano.

            E poderia ter sido com ele. Ele também avançaria confiante. Sem saber de nada. Certamente seu colega sequer suspeitava. Os outros que nem ele também não.
            Talvez as torres soubessem. Ou a torre que restava, pelo menos. Talvez até os cavalos soubessem. Ou o cavalo. O que sobrasse. Talvez todos soubessem. Só ele que não. Agora, não mais.
            Parte de si que agora sabia ansiava pela ignorância de antes. Se a verdade era essa talvez fosse melhor não entender. Já não sentia o tédio e o ressentimento. Só a raiva, diferente da raiva que sentia antes. Era um outro amargor.

            O frio que o trespassou não ia embora. Como é que algo ao mesmo tempo atravessa e fica? Como que eles podem fazem isso? Será que não há hesitação? Eles mandam-no à morte como se fosse nada? Certamente com ele seria a mesma coisa. É só aparecer a oportunidade. Seriam os inimigos assim também? Não lembrava disso ter acontecido do outro lado. Uma sucessão assim. Um sacrifício parecido. Talvez eles fossem os corretos da disputa. Certamente esse era um bom indício, não deixar seus próprios morrerem desse jeito. Claro que muitos acabavam mortos de qualquer jeito, mas nenhum assim. De propósito.

            Ele viu os outros decidirem mover o cavalo. Não sabia o porquê. Uma estratégia complexa, um avanço sem propósito, ou talvez outra coisa. Sem dúvida não era para alguma armadilha omo a que há pouco matou seu colega. Eles não fariam isso. Nunca fizeram. Muito menos começariam agora. Ainda mais com um cavalo.

            Ele continuou parado. Felizmente. Agora torcia para que não o escolhessem. Melhor ficar parado ali. Mesmo que mofasse. Mesmo que crescesse raízes. Que grudasse pra sempre no chão. Que não fizesse nada. Que fossem os outros os sacrificados. Nem saberia dizer quem tinha avançado dessa vez. Só se concentrou em si mesmo. Relaxou por completo ao ver que continuaria parado. Por enquanto estaria a salvo. Seria assim até o final? Nessa agonia? Que acabasse logo, então. Vitória, derrota. De qualquer jeito.

            A rainha está morta. De alguma forma isso aconteceu. De algum jeito. Não estava prestando atenção, olhando pra si mesmo. E ela não estava mais lá depois que se deu conta. Mas tinha sido agora. Tinha certeza. Não tem como algo assim ter acontecido antes e ele não ter percebido.
            Eis todos os detalhes do começo da derrota. Foi o que concluiu. Derrota. Sim. Não havia recuperação de um vacilo desses. Vacilo, claro. Um deslize monstruoso. Como é que pode?
            Estava do lado errado. Não de ideais ou motivos. Errado de resultado. Iam perder. Não havia dúvida. Uma sensação terrível. Estar diante do inevitável iminente. Prestes a ser esmagado. Talvez fosse melhor assim. Melhor do que o que havia acontecido até agora. Era o fim da espera. A entediante de antes e a amedrontadora de agora. Sua experiência toda tinha sido uma de desgosto e angústia. O vazio que viria não tinha como ser pior do que tudo que acontecera até agora.

            Não adiantava fazer nada. Tudo depois da morte da rainha seria patético. Tão patético quanto essa manobra agora. Só um exercício idiota. Podia ser qualquer coisa, não tinha jeito. Não precisava nem se mover. Era só esperar parado, se pudesse. Só esperar. Quieto, calado, submisso. Desistir não era a melhor opção. Não era, pois não havia opções de verdade.

            E eles ainda avançam. Apressados. Tudo bem. Ele entende. Ele também teria. Não há por que enrolar. Que viessem. Sem demoras.

            Uma torre anda de lado. Fica na frente do rei inimigo. Uma última tentativa, parece. Uma tentativa de não fazer tão feio. Só pra manter alguma pose. Pra poder dizer depois que...
            Ela ficou alinhada com o rei inimigo. Mas... que babaquice. Apelar assim. Adianta de quê? É só ele mover um pouco e pronto. Sair da frente e só. Isso só atrasa as coisas. Que desespero ridículo. Uma péssima maneira de terminar tudo. Só pra encher o saco. O ressentimento estraga qualquer coisa. Só piora as coisas.
            É só o rei mover pra esquerda que
            Não, não dá. O cavalo comeria.
            Para a direita tem um bispo.
.           Para frente nem tem como considerar, claro, a torre continua lá.
            As diagonais estão bloqueadas.
            A não ser que... Não, não há quem possa. Ninguém tem como entrar na frente. Estão impossibilitados. Todos.
            Seria esta a vitória? É só pegar o rei. E eles não têm escapatória. Não. Não têm.
            É o fim. É a vitória. Assim que ele percebeu isto, algo cresceu dentro de si. Uma sensação esquisita. Passava por cima de todas as outras. Como que se lavasse tudo. Uma alegria esquisita. Quase azeda de tão forte. Pesada. Era como se tudo antes já tivesse sido esquecido. Enterrado pela vitória. Virando pano de fundo para essa novidade maior. A vitória. A glória.
            O esplendor completo.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Música

Não serão muitos os videos que indicarei aqui. Quase todos serão de música, mas ainda assim serão poucos.

Abre aspas 4 - Cynthia Ozick

"Quando ouvi que Isaac Kornfeld, um homem de fé e cérebro, havia se enforcado em um parque público, enfiei uma ficha na catraca do metrô e fui lá ver a árvore" Primeiro parágrafo do conto "o rabino pagão", Cynthia Ozick

(tradução de minha autoria)

Tem certos inícios que são maus inícios porque são tão bons que a gente não consegue continuar lendo imediatamente. Li este parágrafo há 3 dias e ainda não li o conto. Como que um conto consegue acompanhar um início desse?

Abre aspas 3 - Chris Ware


"Jimmy, tente manter seu casaco fechado - o trem pode não chegar aqui por um bom tempo e você não quer pegar uma gripe"
" "
"Mãe quando eu ficar velho eu vou ter um milhão de dólares e vou comprar um carro para gente, ok? Ok, mãe?"
SESSENTA ANOS DEPOIS
" "
" "
"Luvas térmicas"
"Estou pronto para o inverno"
" "

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Mais um conto


?

            Parece-me cada vez mais apropriado pensar na vida como nada mais que uma porção de perguntas reunidas com propósito nenhum além de sua auto-perpetuação. Cada vez mais vejo peças novas acrescentadas a esse quebra-cabeça infinito, todas se encaixando perfeitamente com suas vizinhas, sem a menor brecha sobrando, mas nunca formando uma imagem definida, sempre dando indício de um final próximo, um pouco além das pontas dos dedos, sempre somente aumentando o tamanho do todo, dando mais margem para junção de mais informações, uma agregação sem fim que apenas continua.
            O começo, por exemplo. A cópula dos antecessores, ou a trepada dos pais; qualquer que seja a descrição escolhida, é um ato repleto de perguntas, não importa o ponto de vista que se escolha. Nenhum é seguro. A própria criança que naquele momento está sendo gerada não entenderia patavinas (usando aqui seu hipotético vocabulário) do que acontecia naquele momento. Uma espécie de luta ou dança esquisita, um pouco violenta, sei lá. Nojento. Aquilo continuará uma incógnita na sua cabeça por anos e anos, até o ato específico em questão ser tão distante no seu tempo que quase deixou de existir realmente.
            O seu desafio então já deixou de ser o de entender aquilo, e sim tentar fazer aquilo com alguém que se interesse a tal. E logo chegam mais perguntas. Por exemplo, nesse caso: "quem”.
            Assim continua a vida do coitado. As respostas só vêm para trazer novas perguntas, muitas vezes mais inquietantes, ou em maior número; não há paz, não existe silêncio, nunca. Ao menos não em vida.
            Pouco após a solução desse problema, o do início (se é que ele é realmente resolvido), surge o outro, o único que é tão grande quanto ele, talvez até maior: o problema do fim.
            O que seria a morte, eis seu resumo mais conciso. No entanto isto resume muito mal, na verdade, pois qualquer um sabe que a morte é o fim das funções vitais, o coração para, os pulmões se esvaziam, as atividades cerebrais cessam etc, etc. A questão “verdadeira” é se a morte é mesmo o fim, como alguém desligando um interruptor, ou puxando um fio da tomada, ou qualquer outro clichê (imortal) do gênero. Inúmeros estudos, centenas de religiões e filosofias... há todo um esforço para entender a morte, vindo de todos os lados, desesperado, buscando alguma plenitude (ou talvez outra coisa). A situação aí não difere significativamente da do menino tentando entender dois adultos (esperamos que sejam adultos, ao menos) fodendo. Por mais que imaginem, especulem, considerem e reflitam, a coisa continua esquisita para todos que não fazem parte daquilo.
            Quem dera se ao menos fosse assim, simples, dividido entre os que entendiam e os que não entendiam, pois nem para os que estão lá na sua cama (esperamos que estejam numa cama, ao menos) a coisa é inteiramente esclarecida. É verdade que eles sabem o bastante, tanto é que estão lá, sob as cobertas (ou não), mas somente os movimentos são instintivos. A cabeça, ou melhor, a consciência, não faz parte desse todo. Deseja-se um pouco de privacidade, não a de outras pessoas, esta um tanto simples e comum, mas sim a mais difícil, a dessas perguntas todas, pelo menos agora, que realmente não são pertinentes; mas são raras as ocasiões de uma ausência assim. Será que ela vai engravidar, será que hoje é seguro/tomou a pílula/a camisinha é confiável/ele tirou a tempo/a reza pra santa-das-trepadas funcionou/etc... E mesmo antes elas não cessam, quando ele não sabe se é hoje que ela finalmente vai liberar, ou ela não sabe o que vestir (e despir, depois)... ou durante, quando ele se pergunta se ela está gostando tanto quanto ele, se está gostando dele, se esta vai ser a única vez, etc...
            E mesmo no tarde demais, após já fecundado o desastre, que cresce junto com o ventre da coitada, elas não dão trégua, como agora com ela, alisando a barriga e se perguntando se algum dia conseguirá recompor a figura depois daquilo. É quase como se uma bala de canhão tivesse lhe atingido as costas, prendendo-se na pele da frente, do ventre, se me permitem esse pequeno plágio.
            Isso, claro, considerando que o coitado (feto) sobreviveu à primeira de todas as perguntas: e agora, vai ou não vai ter esse bebê, vai, não vai, vai, não vai... Há quem diga que não há escolha, ao menos não dentro da Lei, mas a verdade é que isso hoje em dia (se é que é só hoje em dia) dificilmente pode ser considerado um problema significativo, diferente dos outros que estão sendo discutidos aqui. Pelo menos isto.
            Enquanto isso o feto aumenta, solto, boiando no útero. Até mesmo seu corpo, aos poucos tomando forma, no início se parece com um ponto de interrogação, de carne, vivo, crescendo.
            Já perguntaram ao casal (assumindo que ele não sumiu ao receber a notícia) se é menino ou menina, sendo que ainda é cedo demais para perguntar, nem sabem se vai nascer mesmo, parece que ela sente algumas dores fortes de vez em quando, e por isso é que nem nome tem ainda, seja qual for o sexo, eles tentam não se apegar muito, não apostar alto pra depois quebrar a cara, já que o médico não parece muito otimista; nem atencioso o filho da puta é direito. Mas é verdade que ninguém sabe de coisas assim, pode ser que está tudo bem, que não há motivos para se preocupar, alarme falso, e pode aparecer um maníaco do nada e dar um tiro no umbigo estufado dela, assassinando ambos, loucamente declarando-se misericordioso.
            Assim às vezes é, chega antes do fim do primeiro problema o fim do segundo, terminando tudo, abrupto. Crianças morrem todos os dias, é verdade. As causas são todas as possíveis, acidentes, incidentes, ausências... mas mesmo assim, já na rotina, do todo-dia, já fato desgastado, a pergunta continua: por quê, por quê, e ecoa.
            Parece trapaça, alguma espécie estranha de trapaça em que não há figuras definidas, já que a suposta vítima talvez nem tenha sido privada de muita coisa, ou ao menos se julgue assim ao se ver tanto desprezo pela vida mundo afora. Também não teve chance de sentir o gosto das coisas que viriam depois, as amarguras, as malandragens e, acima de tudo, as perguntas, já que o que tivera até então não exigia justificativa, mas o que viria depois parece que sim.
            E se tudo isso aconteceu só depois do parto, ele (sim, menino), sobrevivente de todas as agruras de uma gestação complicada e uma infância de pernas meio tortas  (com todos os apelidos carinhosos criados por seus coleguinhas por conta disso) só para ser atropelado em uma faixa de pedestre no meio de uma metrópole anônima, continua rodeado de indagações, das mais variadas. Das que de tão prosaicas beiram a ofensa, como “quanto custa o enterro”, como as supostamente mais importantes, como ”quem é o culpado”.
            Os profissionais no porão do hospital escancaram o cadáver na mesa, querendo encontrar o que realmente matou o moleque, qual dos impactos, qual dos machucados, sendo que nada daquilo poderia ressuscitá-lo, aquilo sendo quase como um exercício, útil, mas, no final, fútil. Todo esse conhecimento técnico, preciso, é quase uma muleta no meio desse turbilhão de incógnitas indecifráveis, uma espécie de apoio diante do desconhecido, a pequena resistência que nos é possível, e nas pausas nos perguntamos se essa capacidade é dádiva ou maldade, essa de poder saber, mas nunca tudo.
            Mesmo nessa aparente tragédia sem tamanho, um pobre menino sendo atropelado e estatelando-se no asfalto enquanto o carro responsável foge, há pontos positivos. Nela, duas questões são resolvidas de imediato, questões que atormentam a todos individualmente. Elas podem ser facilmente resumidas, cada uma com uma palavra só: como e quando. As respostas: atropelado, pré-adolescente. E essas duas questões realmente atormentam e perseguem. Nesse caso, mais especificamente, mal tinha começado a fazê-las. A morte sempre tem uma cara de conclusão (embora talvez não seja) e às vezes vem com ares de finalmente, não menos por trazer respostas, já que são poucas as que encontramos hoje em dia.
            Mas essas duas soluções são muito simples, limitadas, tanto que podem ser brutalmente resumidas sem grande perda de significado. A pequena vantagem de possuí-las talvez seja desprezível perante outras perguntas, sangrentas, que continuam mesmo após fechadas as portas do carro funerário travestido de ambulância que parte frenético para o hospital, sem razão; talvez o motorista ache que ainda há esperança, porque teve um acidente parecido no seu passado (sofrido ou causado), ou um filho da mesma idade, um sobrinho ou vizinho simpático. Ou ele talvez apenas esteja aproveitando a ocasião para alcançar altas velocidades, aspecto que pode ter sido o motivo de ter optado por esse emprego, se é que teve escolha. Ninguém mais ali dentro saberia explicar aquele comportamento, e ninguém cutuca seu ombro a fim de questioná-lo; a força dos seus dedos agarrados ao volante e seu corpo curvado sobre o painel afastam este gesto, embora a curiosidade esteja na cabeça de cada um agachado ali dentro, se segurando entre a parafernália socorrista no trajeto sinuoso daquela cidade gigantesca em algum lugar do mundo.